Esgotos, porcos, amêijoas ilegais e o sonho das ostras

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Saída de esgotos não tratados: há problemas ainda por resolver Enric Vives-Rubio
Um terço dos esgotos sem tratamento

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Um terço dos esgotos sem tratamento

O cheiro a esgoto empesta o ar ao pé do cais mas os pescadores da Póvoa de Santa Iria já se habituaram. Não estranham a água castanho-escura que sai pela boca de esgoto e se mistura com o Tejo, porque a poluição já se entranhou na paisagem. Por ali ainda escorre uma parte das águas residuais domésticas não tratadas de um terço da população de Vila Franca de Xira. No total, segundo os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, são cerca de 1,6 milhões de metros cúbicos de efluentes por ano, produzidos por mais de 50 mil pessoas.

Só em 2012 deverá estar concluída a ligação de Póvoa de Santa Iria, Forte da Casa e Vialonga à Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) de Alverca, da Simtejo. Até lá, os esgotos continuarão a ir para o Tejo sem tratamento. "Não vou nessa cantiga. A câmara já dizia que era em Setembro do ano passado", diz um pescador sentado junto à água.

Abel Patrício, de 72 anos, é menos céptico. À conversa ao pé das casitas coloridas do Cais dos Pescadores, assentes em estacas de madeira, arrisca um diagnóstico para o rio. "Está melhor do que há 20 anos, antes era só porcaria, que vinha das fábricas. Mas só quando o esgoto parar de correr é que se vai notar a diferença."

Durante 21 anos, Abel trabalhou na Solvay, indústria de produtos químicos da Póvoa de Santa Iria. Ainda é do tempo em que as leis ambientais eram menos apertadas. "O tratamento das águas residuais era manual e às vezes havia descargas directas no rio", afirma.

Hoje, a unidade tem uma estação de tratamento onde faz a remoção dos sólidos em suspensão aos 20 milhões de metros cúbicos de águas residuais que produz anualmente. Depois desse pré-tratamento, as águas são despejadas no rio. Luís Saldanha da Gama, coordenador de higiene, segurança e ambiente da Solvay, explica que 17 milhões (esgotos domésticos, pluviais e de refrigeração) do total dos 20 passarão a ser tratados na ETAR de Alverca quando estiver concluída a rede da Simtejo na Póvoa de Santa Iria. "Sabemos que há atrasos com as obras da Simtejo e não acreditamos que as obras fiquem prontas até ao final do ano", afirma.

Já as águas residuais industriais - três milhões de metros cúbicos por ano - continuarão a ir para o Tejo. Por se tratar de uma indústria química inorgânica, aquelas águas têm "maioritariamente características minerais", que "não afectam a vida animal ou vegetal do rio", esclarece Saldanha da Gama. "No máximo, pode contribuir para o assoreamento do rio", remata.

As instalações da Adubos de Portugal - Fertilizantes, em Alverca do Ribatejo, também ainda não estão ligadas à ETAR de Alverca. Em 2010, esta unidade industrial descarregou no Tejo 177.257 metros cúbicos de águas residuais, após um tratamento primário que faz a decantação dos sólidos e remove óleos e gorduras.

De acordo com a vice-presidente da Administração da Região Hidrográfica (ARH) do Tejo, Simone Pio, as análises dos efluentes deitados no rio pelas duas empresas "têm estado em conformidade com o que é exigido na respectiva licença ambiental". Até à publicação desta reportagem, a ARH não tinha facultado o acesso a estas análises.

Na zona de descarga da Solvay, é visível a cor esbranquiçada do lodo, de onde saem pequenas nuvens de vapor de água. A Polícia Marítima, que levou o CIDADES numa viagem pelo estuário, vigia apenaso aspecto da água. Os agentes Amândio Bonacho e Inês Neves fiscalizam a cor, a presença de objectos, o cheiro e o aspecto gorduroso da água.

Apesar de ainda existirem focos de poluição, a Polícia Marítima assegura que é visível a evolução positiva da qualidade do rio nos últimos dois anos, sobretudo ao longo da margem norte. Em Lisboa, por exemplo, no Terreiro do Paço, as pedras destapadas pela maré baixa já foram negras, agora estão cobertas por uma espécie de musgo. Antes do desvio dos esgotos para a ETAR de Alcântara, no final de Janeiro, Amândio Bonacho diz que "havia de tudo" na água: dejectos, preservativos, pensos higiénicos, rolos de papel. Agora, está melhor. Na Póvoa de Santa Iria, os pescadores esperam resultados idênticos.

Suiniculturas à espera de solução colectiva

O pescador Custódio Pereira já perdeu a conta às vezes que detectou descargas de efluentes de suiniculturas na pequena ribeira que atravessa o Sítio das Hortas, em Alcochete, em direcção ao rio Tejo. "Acontece mais durante a noite e quando chove. Quando chegamos, vemos a urina à beira da água. E o cheiro é horrível. Quando o vento vem de sul, não se pode estar aqui". As queixas feitas à Polícia Marítima e aos responsáveis da Reserva Natural do Estuário do Tejo (RNET) "não valem de nada", lamenta o pescador, de 71 anos.

O Sítio das Hortas, onde funciona um pólo de interpretação ambiental, está inserido numa zona de protecção especial para aves e faz fronteira com a RNET. O local está identificado no plano de ordenamento e gestão da reserva natural, de 2007, como zona de descarga directa de suiniculturas. No concelho de Alcochete, há pelo menos 16 explorações activas, segundo a Direcção de Intervenção Veterinária de Setúbal.

Uma suinicultura a poucos metros do Sítio das Hortas é, dizem os pescadores, a responsável pelas descargas. E já foi pior, afiança Custódio. "Há alguns anos, até havia porcos à beira da água."

O filho do proprietário da suinicultura Manuel Guarda & Filhos, Rafael Guarda, contesta as acusações. "Não faço descargas directas no rio, nem pensar." Na exploração, que o CIDADES visitou, existe uma máquina separadora dos efluentes produzidos por cerca de 2200 animais. Os líquidos são encaminhados para três lagoas descobertas, onde, segundo o responsável, ficam durante seis meses. "Os sólidos são usados como adubo e a água é espalhada em campos agrícolas que ficam a 1,5 quilómetros daqui", assegura.

Ao proprietário, a RNET levantou já dois autos de notícia - em 1996 e em 2000 - por descarga ilegal de efluentes. O director da reserva, João Carlos Farinha, lembra que para multar os responsáveis os agentes têm que assistir à descarga enquanto ela ocorre. "Quando as denúncias são realizadas após o acto, apenas se podem levantar autos contra desconhecidos, que geralmente são arquivados", esclarece.

Desde 2008, está prevista a construção de uma estação de tratamento dos efluentes pecuários da península de Setúbal. No entanto, a solução, que custará cerca de 100 milhões de euros, está num impasse. "Enquanto a tarifa a pagar pelos aderentes não baixar dos oito para os quatro euros por metro cúbico, o processo não avança. É incomportável", explica Luís Dias, presidente da Associação Livre de Suinicultores.

O estudo de viabilidade económico-financeira do projecto baseia a tarifa numa taxa de financiamento a 40 por cento do Programa de Desenvolvimento Rural (Proder). A Federação Portuguesa de Associações de Suinicultores solicitou ao Ministério da Agricultura, no início de 2010, o aumento da taxa de financiamento, mas ainda não obteve resposta. Luís Rego, assessor do ministério, disse que "o assunto está em análise".

Festim de amêijoas em zonas poluídas

A imagem já se tornou rotina, sobretudo em dias de sol: andam às dezenas, homens e mulheres, jovens e mais velhos, armados de ancinhos, pequenos sachos, baldes e galochas. Todos de olhos postos no fundo do rio Tejo, destapado pela maré baixa, procuram amêijoas, berbigão, lambujinha, canivetes. No Barreiro, a apanha de bivalves para consumo ou venda imediatos é proibida. Mas isso não impede as pessoas de arriscar.

"Anda muita gente a governar-se com isto", garante José Fernando. À beira da água, de cócoras, José apanha água do rio para um garrafão de plástico. "É para mudar a água às amêijoas que apanhei ontem", conta o antigo trabalhador da CUF, agora reformado, com 71 anos. É ali que passa algum do tempo livre, à procura do marisco "para comer ou dar aos amigos".

Em dias bons, já chegou a levar para casa 15 quilos de amêijoa. "Não apanhei mais porque não quis. E é tudo amêijoa grande." Esta espécie grande, conhecida como amêijoa japónica, é exótica e não se sabe ao certo como foi introduzida no estuário. Existe hoje em abundância no Barreiro, Almada, Seixal, Montijo e Alcochete. Estas são consideradas zonas C pelo Instituto de Investigação das Pescas e do Mar (Ipimar), por estarem poluídas com coliformes fecais. Os bivalves aí apanhados só podem ser consumidos se forem transpostos vivos para outro meio natural não contaminado e aí permanecerem por mais de dois meses. Caso contrário, servem apenas para transformação industrial.

Além da poluição fecal, o Barreiro é uma das zonas do Tejo cujos sedimentos estão mais contaminados com metais pesados, como arsénio, chumbo e cádmio. Ainda assim, a apanha continua e ninguém sai do rio de mãos a abanar. Maria Antónia anda com o marido e cada um tem o seu balde. Aos 56 anos, está desempregada há sete, tal como o marido. Vai para a praia do Clube Naval do Barreiro sempre que pode, mas diz que apanha amêijoa só "para passar o tempo". Outros actuam de forma mais coordenada: "Há famílias inteiras, com restaurantes no Barreiro, que passam aqui horas", conta José, sublinhando que é raro ver a Polícia Marítima por ali.

Contudo, em 2011, até ao final de Fevereiro, a Polícia Marítima levantou 23 autos por pesca ilegal de bivalves: cinco a montante da Ponte Vasco da Gama, a embarcações com ganchorra; e 18 entre as duas pontes, na margem sul do Tejo, a pescadores apeados com utensílios ilegais. Em 2010, foram levantados 125 autos.

Apesar das multas -até 3740 euros, para pessoas singulares -, a actividade continua em força. Com a fartura de amêijoa, o preço deste marisco no mercado, que já esteve a seis euros por quilo, baixou para metade. "Há quem cá venha todos os dias. Se levar 10 quilos por dia, tem um ordenado ao fim do mês." A crise e o desemprego também são aqui desculpa para o aumento de mariscadores.

Durante os 32 anos que José trabalhou na CUF, "ninguém apanhava aqui amêijoas". Estavam mortas. Agora, "não há comparação possível". E não é só nos bivalves que se nota a diferença. Há mais chocos, "boas douradas", robalos. Com a entrada em funcionamento da estação de tratamento dos efluentes do Barreiro e da Moita, que será inaugurada na primeira semana de Abril, esperam-se melhorias.

Despoluição do Trancão não resolveu tudo

Gastaram-se milhões e as melhorias foram substanciais. Mas não bastou: o rio Trancão ainda está poluído. Não tanto, é certo, como em 1985, quando Rui Pinheiro, então com 23 anos, lançou-se numa campanha para a sua limpeza. Juntou-se a outros jovens, encheu garrafas com a água pestilenta do rio moribundo e entregou-as a membros do Governo, a deputados, ao Presidente da República. "Uma garrafinha daquelas era uma coisa nojenta", afirma Pinheiro, hoje vice-presidente da Associação de Defesa do Ambiente de Loures.

Anos depois, a Expo "98 ofereceu ao Trancão uma grande operação de dragagem, ordenamento e despoluição. Ao mesmo tempo, foi inaugurada a Estação de Tratamento de Águas Residuais de Frielas, para os esgotos urbanos e industriais que antes seguiam para o rio.

A situação melhorou, mas os dados mais recentes do Instituto da Água (2008) ainda classificam o Trancão como um rio sujo. Em vários pontos do seu curso, o rio mantém qualidade "muito má", significando "águas extremamente poluídas e inadequadas para a maioria dos usos". Alguns indicadores têm melhorado, como os que sugerem poluição industrial, mas outros persistem no vermelho, como os nutrientes.

A ETAR de Frielas não resolveu por completo o problema dos esgotos. Entre 2003 e 2005, só na ribeira da Póvoa, afluente do Trancão, foram identificados pela Simtejo cerca de 200 pontos de descargas indevidas - que cabe às câmaras municipais controlar.Na ribeira do Casal Novo, em Mafra, eram 85. Muitas destas situações mantêm-se. "Admito que haja descargas pontuais na linha de água, mas não são responsabilidade nossa e não têm significado do ponto de vista da poluição do Tejo", afirma Arnaldo Pego, presidente da Simtejo. O próprio funcionamento das ETAR é dificultado pela incapacidade em se controlar a qualidade dos esgotos que as indústrias lançam na rede municipal.

Na Póvoa da Galega, onde o Trancão tem origem, as suiniculturas ainda são um problema. "De vez em quando descarregam, mas já não é tanto como antigamente", diz José António, de 72 anos, residente naquela freguesia. Num relatório publicado em 2010, a Inspecção-Geral do Ambiente e Ordenamento do Território (IGAOT) aponta as suiniculturas como um dos maiores responsáveis pela degradação do Trancão. De sete unidades visitadas pela IGAOT em anos recentes, apenas duas cumpriam as normas de descarga de esgotos no rio. Quatro não faziam análises à qualidade dos efluentes. Cinco não tinham licença válida.

Na sua foz, o Trancão é um rio ambivalente. Já não cheira como antes. Mas as análises mais recentes, na estação do Cais de Sacavém, revelam que há pelo menos cinco indicadores de poluição com níveis extremamente elevados - fosfatos, azoto, fósforo, condutividade e oxidabilidade.Rui Pinheiro aponta para alguns tubos a sair das margens e suspeita de descargas ilegais. "Muitas dessas coisas são invisíveis", alerta. Mas às vezes, completa o ambientalista, "vêem-se tufos de espuma".

O rio desagua no Tejo num cenário também paradoxal. Numa manhã recente de Março, viam-se gaivotas, patos, corvos, pernas-longas e outras aves no lodo descoberto pela maré. Mas também se via lixo, espalhado pelas chuvas para além da embocadura do Trancão: garrafas de plástico, um pára-choques de automóvel, lâmpadas, um par de ténis, plásticos diversos, restos de uma sanita, um frigorífico. E uma cabra morta.

Ostras no Tejo poderiam valer até 60 milhões

26 de Agosto de 1966. A data, que José Soares Pedro guarda na memória, marca o início do fim das ostras no estuário do Tejo, que chegou a ser o maior fornecedor destes bivalves na Europa. Nessa sexta-feira, a unidade industrial da CUF descarregou acidentalmente 700 toneladas de ácido sulfúrico no rio, na zona do Barreiro. "No dia seguinte, de manhã, a água estava amarelada e era só peixes mortos nas margens", recorda. As ostras, mais resistentes, ainda aguentaram uns anos. "Foram morrendo devagar. Em 1970, acabou-se". Desde então, não voltaram.

José, de 79 anos, foi um dos dois funcionários do Posto de Depuração de Ostras do Tejo, que começou a operar em 1954 na Moita. Entrou aos 22 anos como auxiliar e chegou a encarregado-geral. Tratava do processo de depuração das ostras. O marisco ficava em cinco tanques e em 36 horas levava três banhos com água do rio, tratada com cloro. Dali, as ostras iam para o resto do país e para Espanha, França e Inglaterra.

A apanha de ostras dava emprego a centenas de pessoas da região. Em 1960, 120 empresas exploravam o marisco no estuário, enquanto em 1972 existiam apenas oito. Pelo menos até 1964, saíam do Tejo cerca de 10 mil toneladas de ostras por ano, segundo dados do Instituto de Investigação das Pescas e do Mar (Ipimar).

A poluição industrial (o tributil de estanho das tintas usadas pela Lisnave nas embarcações também é tido como responsável pela eliminação das ostras), a poluição agropecuária vinda da lezíria e o aumento populacional nos municípios ribeirinhos - até há poucos anos sem tratamento de esgotos - ditaram o fim da fartura. Em 1970, as ostras do Tejo acabaram, mas continuaram a chegar ao posto as de Setúbal e do Algarve. "As últimas estiveram aqui em Dezembro de 1996".

Há cerca de quatro anos, o Ipimar tentou introduzir no Tejo as ostras do estuário do Sado, ainda em exploração. Mas a experiência, repetida durante dois anos, falhou.

A Administração de Região Hidrográfica do Tejo, responsável pela elaboração do Plano de Ordenamento do Estuário, está a analisar a possibilidade de reintroduzir os bivalves no rio. E há quem diga que é possível. João Gomes Ferreira, investigador docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Lisboa, estima que o estuário tem capacidade para produzir entre sete e 12 mil toneladas de ostras por ano, que, se forem vendidas a cinco euros por quilo, podem render 35 a 60 milhões de euros.

Depois de fechar, o posto de depuração esteve ao abandono e acabou por ser comprado pela filha de José, Maria Fernanda, que requalificou o espaço. Onde antes se limpava marisco, agora fazem-se festas e outros eventos. O rio está hoje menos poluído mas ainda não há ostras para depurar. "O que se vê por aí é a ostra-anã, não presta para comer", garante José Soares Pedro."Se não puserem cá ostras de qualidade, elas não voltam."