Entre-os-Rios: Eles resistiram à tragédia porque souberam ser "psicólogos uns dos outros"

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A queda da ponte matou 59 pessoas há dez anos Manuel Roberto (arquivo)

Os seus falecidos são quatro dos 59 mortos na queda da ponte de Entre-os-Rios, faz hoje dez anos. Morreu-lhe a filha e morreram-lhe genro e dois netos. Meias de felpo pretas descaídas sobre uns pés cobertos por uns chinelos grosseiros, de andar na terra, esta mulher espreita, ao fundo do seu quintal, o rio que lhes arrastou os corpos para morada incerta. "Nunca mais lá fui. Eu sei que o rio não teve culpa nem chamou lá ninguém. Mas não consigo tirar da ideia que foi lá que eles acabaram".

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Os seus falecidos são quatro dos 59 mortos na queda da ponte de Entre-os-Rios, faz hoje dez anos. Morreu-lhe a filha e morreram-lhe genro e dois netos. Meias de felpo pretas descaídas sobre uns pés cobertos por uns chinelos grosseiros, de andar na terra, esta mulher espreita, ao fundo do seu quintal, o rio que lhes arrastou os corpos para morada incerta. "Nunca mais lá fui. Eu sei que o rio não teve culpa nem chamou lá ninguém. Mas não consigo tirar da ideia que foi lá que eles acabaram".

Acabaram eles e acabou também uma parte desta mulher, de 76 anos, que já era viúva quando lhe morreu a filha. "Foi nessa noite que me fiz velha. Perder todos assim de repente, minha senhora... E uma tristeza maior foi eles não terem aparecido. Eu pus uma fotografia no cemitério deles todos, junto ao pai, mas o que queria mesmo era tê-los lá".

"Doía menos?..."

"Ao menos, podia lá ir, pôr flores e rezar, e sabia que eles estavam ali. O padre Mota, que já cá não está, costumava dizer: "Olhe, Palmira, aquilo foram mortes rápidas, como quem abre uma mão e fecha". Mas isso era lá conversa dele. Então foi como quem abre uma mão e fecha eles ali a afogarem-se e a morrer!?...".

É essa a imagem que lhe fustiga o corpo todas as noites, desde que no dia 4 de Março de 2001 a ponte de Entre-os-Rios ruiu, arrastando três automóveis e um autocarro que chegava de uma excursão às amendoeiras em flor. Dos 59 mortos, apenas 23 foram sepultados (ver texto na página seguinte). Naquela noite, as freguesias de Raiva e Sardoura, onde residia a maior parte das vítimas, foram invadidas por batalhões de jornalistas. Quando o país acordou para a dimensão da tragédia, chegaram curiosos e políticos, num alarido com direito a directos na CNN. O ministro Jorge Coelho demitiu-se, arrastando cinco secretários de Estado. Dez anos depois, constata-se que muitas das promessas de trazer o desenvolvimento a um concelho ao abandono foram levadas pela correnteza. As culpas, afinal, morreram solteiras.

Chegar do Porto a Castelo de Paiva, 50 km de distância, continua a levar uma hora e mais. Mesmo para os que, como o peixeiro da Raiva, fazem esse caminho às 4h00 da manhã, para ir recolher o peixe à lota de Matosinhos. "Uma hora e pico para lá e outra para cá". Por estas bandas, peixe na mesa só do mar, porque o do rio, porque escasseia ou porque lhe ganhassem cisma, não encontra clientela. "Muitos ganharam nojo ao rio...", explica o peixeiro.

A esta hora, há sarda e robalo à venda. Palmira sai com um robalo, um quilo a passar, dez euros e dez cêntimos, arredonda-se para dez. É o mesmo que paga ao padre Rafael pela missa que "manda dizer" todas as quartas-feiras em intenção dos seus mortos. "Há dez anos que é assim", despede-se.

Há dez anos que o padre Rafael trata de riscar palavras como "tragédia e "acidente" quando lhe encomendam missas como esta. "São palavras que só servem para vitimizar as pessoas. Quando me pedem uma missa destas, digo só que vamos rezar por aqueles que faleceram no dia 4 de Março", explica. Encorpado, alto, Rafael é pároco das freguesias de Raiva, Pedorido e Lomba, já no concelho de Gondomar. Em Março de 2001, estava ali há um mês como diácono. Diz que a atenção da Igreja foi feita de silêncio e cuidado. "Havia muitas vidas perdidas, mas também muito barulho político e tentativas de explorar a tragédia, talvez para que o concelho se pudesse desenvolver...", contemporiza. Assistiu a guerras fratricidas entre os familiares das Vítimas, mas nunca quebrou o silêncio. Diz apenas, como numa parábola: "O dinheiro não cura e às vezes estraga".

Quando, em 2006, o Governo não renovou a presença da psicóloga destacada para assistir os enlutados, Rafael recusou juntar-se aos protestos da Comissão dos Familiares das Vítimas. "A psicóloga fez o seu trabalho e foi-se embora. Estar a dizer "coitadinhos, precisam lá de uma psicóloga", não faz bem. Não ajuda a levantar os ânimos e a mostrar que estamos curados. Já passou, a vida continua", insiste, garantindo que, exceptuados alguns casos, "as pessoas já cumpriram o seu luto". E, de caminho, já se reconciliaram com o rio.

Sai-se do gabinete do padre e o que se vê são duas mulheres a aproveitar o sol de Fevereiro num banquinho, mesmo junto ao rio. Mas estas não contam para corroborar a tese do padre porque o que vêem, quando olham, é o rio de há 30, 40 anos. "Lavávamos a roupa nele...", recua uma.

Palmira é que nunca mais será capaz de regressar ao rio da infância. Quantas vezes terá ainda de morrer para se livrar dos seus mortos? "À noite, antes de ir para a cama, vou à sala olhar para a fotografia deles e digo "Deus vos tenha em eterno descanso e pedi por quem deixastes na terra". Eu digo assim, que hei-de eu dizer...". Não foi com ajuda de psicólogos que aqui chegou. "Ora façam lá o favor de se ir embora, cada um sabe de si", escorraçou na altura uma das filhas que lhe restam, quando a sua casa foi invadida por ofertas de apoio psicológico. Palmira aceitou que lhe baixassem o colesterol e a tensão à força de medicamentos. Calmantes é que nunca. "Ó senhor do céu, esse negócio de psicólogos, a mim não me cabe. Sei que estudam e que são professores e essas coisas todas, mas isso de estar sempre as repisar as coisas que nos doem...". E, depois de uma pausa: "Olhe, a gente fomos psicólogos uns dos outros".

Dilma Faria também se orgulha de nunca ter precisado de calmantes para estar capaz, como está hoje, de dançar nas festas da aldeia. Senhora do Rosário, em Julho, Senhora das Amoras, em Setembro. "Os que tiverem que dançar dançam. No início, notava-se mais aquela tristeza porque nos punhamos a pensar nos que cá não estavam". Até ela, que perdeu os pais na tragédia (perdoe-nos o facilitismo, Padre Rafael) dá um pezinho de dança. "Eles haviam de querer que fôssemos felizes".

Mulher franzina, bata aos quadradinhos amarelos e brancos, cabelo preso, Dilma interrompe o trabalho como educadora no jardim-infantil da Raiva para dizer que as crianças foram a sua terapia. "Se trabalhasse numa fábrica, teria sido muito mais difícil". Mesmo que, no seu caso, além dos pais, Dilma tenha visto desaparecer uma das crianças do infantário, Vasco, neto de Palmira. "No início, os meninos faziam questão de continuar a cantar os bons-dias ao Vasquinho". Hoje, nenhuma das crianças que aqui vemos entretidas com colagens conheceu o Vasco. Nasceram após a queda da ponte.

O cemitério fica aqui mesmo ao lado, paredes meias com o parque infantil - vida ou morte? O cemitério aqui e Dilma sem corpos para velar: "Nós não temos mar, em que os pescadores desaparecem para nunca mais. Estamos na serra: as pessoas morrem e enterram-se. Aqui ninguém estava preparado para fazer um funeral sem corpo".

Nem para isso, nem para ver os holofotes apagarem-se tão depressa. Mal o país desviou o olhar do concelho, as promessas, que até assumiram a forma de resolução da Assembleia da República, não fosse alguém duvidar da seriedade da intenção, foram remetidas ao esquecimento. "Ainda tivemos esperança que isto desse o salto, mas não mudou nada, nadinha. Fizeram vias rápidas que não ligam a lado nenhum, por isso, continuamos isolados como antes. Na altura da fortuna, fizeram duas pontes, como se dissessem "Coitadinhos, tomem lá", mas depois a ligação à auto-estrada foi prometida e nunca avançou. Foi dinheiro gasto à toa", desilude-se um empresário da restauração.

E emprego, não? "Nãaa!. Mesmo para as limpezas, eles querem gente que fale línguas e isso pode haver alguns, mas é difícil. Só se não conseguirem arranjar [pessoal] fora, é que vão levar dos nossos".

Mas também há trabalho que surge sem anúncio. José Maia Pinto, 81 anos, nunca na vida pensou fazer de guia turístico e é vê-lo agora, a ciceronear mirones e excursionistas. "Daqui, viam-se os faróis dos carros a luzir na água, até que desapareceram, coitados, a gente aqui não os podia acudir. O que essa gente berrava...". Do seu quintal, vêem-se as duas pontes. José especializou-se em apontá-las aos que aqui aparecem a revisitar o passado. "Isto era um sítio morto e ficou mais animado: vem um, pergunta, vem outro, pergunta. Lá vai passando o tempo". Serão os forasteiros que o impedem de se tornar num homem ensimesmado. "Aqui ao lado, a vizinha até costuma montar banca para vender uns doces". Vida e morte.