Hitler: o ditador era um leitor fanático

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Timothy Ryback, autor de A Biblioteca Privada de Hitler Foto: Daniel Rocha

Adolf Hitler dizia ler um livro por noite e, quando morreu, a sua biblioteca tinha mais de 16 mil livros.

Mas o ditador alemão colocava no mesmo plano westerns populares e tratados militares; misturava filosofia séria e panfletos anti-semitas, diz Timothy Ryback, autor de A Biblioteca Privada de Hitler (editado no original em inglês pela primeira vez em 2008, e agora publicado em Portugal pela Civilização).

Ryback, jornalista freelance que escreveu para o diário New York Times ou a revista New Yorker, académico que ensinou História na Universidade de Harvard, e escritor, autor ainda de um livro sobre o campo de concentração de Dauchau, lançou-se no estudo dos livros do ditador. Escrutinou os 1200 livros que sobraram e que estão na Biblioteca do Congresso, em Washington (que tem a maior parte da colecção), e na Universidade Brown, em Providence, à procura de dedicatórias, sublinhados, notas. O P2 falou com o autor em Lisboa.

Costumamos pensar na literatura como algo que tem o poder de abrir horizontes e de nos tornar, de alguma maneira, pessoas melhores. Este livro pode ser deprimente para quem pense assim?

Sim, o livro deixa-nos de facto a pensar nisso. A civilização ocidental está assente na noção de que a leitura, a educação, a literatura, nos dão mais conhecimento e fazem do mundo um sítio melhor. E com Adolf Hitler acontece exactamente o contrário. Este homem usou a literatura, usou a história, usou a filosofia para inspirar algumas das mais horríveis acções já cometidas por seres humanos. Mas suspeito que Hitler não era a única pessoa má com uma biblioteca.

Estaline, por exemplo, tinha também uma grande biblioteca. Como é possível ver a influência dos livros nos líderes? No caso de Hitler, as leituras parecem ter servido mais para confirmar as suas ideias, e terem sido menos uma força que o moldou, como afirma no livro?

Há ambas, validação e influência. Acho que houve três tipos de livros na vida de Hitler. No início, alguns livros ajudaram a moldar a sua pessoa. Ele adorava livros de aventuras, como As Viagens de Gulliver ou Robinson Crusoe. Outros influenciaram a sua ideologia, como um livro de Madison Grant, The Passing of the Great Race, cuja influência se vê em discursos posteriores. A terceira categoria são os livros que Hitler explorava para os seus próprios objectivos. Nietzsche e Schopenhauer, por exemplo, são associados a Hitler. Não creio que ele tenha tido a capacidade intelectual para os ler e perceber. Mas pegava em frases e ideias, escolhendo as que lhe convinham, para alimentar a sua ideologia. Fazia o mesmo com a Bíblia: os discursos de Hitler estão cheios de alusões religiosas. Ele explorava estas obras e escolhia os pedaços que lhe convinham.

Hitler fazia anotações a lápis, na maioria sublinhados, nos livros. O que se pode depreender do seu estilo de anotações?

Consegue-se ver um padrão do modo como ele lia, sublinhando frases e decidindo ignorar partes. Em Mein Kampf [a autobiografia e manifesto político de Hitler] ele dedica uma secção à arte de ler, dizendo que quando as pessoas lêem muitos livros isso deixa a sua mente numa confusão. Ele lia com uma noção pré-concebida e tirava dos livros o que servia para a alimentar. Isto não é aprender, é pilhar e explorar.

Hitler só estudou até aos 15 anos. Esta necessidade de ler era uma compensação para a sua falta de formação académica?

Sim. Hitler foi um leitor fanático toda a vida, e por trás deste apetite voraz havia uma incrível insegurança intelectual. Mas não tinha capacidade crítica para distinguir entre filosofia séria e tratados tendenciosos, anti-semitas. Tratava tudo como tendo valor igual. Dizia-se que durante a I Guerra Mundial Hitler levava as obras completas de Schopenhauer para a frente. Duvido: são 2800 páginas, e ele nem sabia escrever correctamente o nome de Shopenhauer [colocava um “p” a mais].

No seu livro, não vemos pistas de que Hitler leria os seus inimigos para os conhecer melhor, ou para melhor refutar as suas teorias. Acha que o poderia ter feito?

(Pausa) “Conheça o seu inimigo”, diz-se... Teria Hitler lido Karl Marx? Não há qualquer prova disso. Eu diria, mas não tenho provas, que Hitler poderia ter lido os seus inimigos se precisasse de os contrariar. E talvez o melhor exemplo tenha sido o de um livro de um homem chamado Dickel. No início do movimento nazi, [Otto] Dickel surgia como um possível líder, equivalente a Hitler, e talvez melhor porque tinha um livro que poderia servir a causa. Sabemos que Hitler leu o livro, linha a linha, e escreveu uma longa carta refutando-o ponto por ponto. Assim, podemos ver que ele era capaz de fazer coisas deste género. Mas não teria lido Marx para perceber as suas teorias económicas; apenas se precisasse de as refutar.

Como explica que ninguém se tenha interessado pelos livros que Hitler leu?

Há apenas 1200 livros na colecção, cerca de um décimo da colecção total - quando Hitler morreu estima-se que tivesse 18 mil livros. A Biblioteca do Congresso também os tinha meio escondidos, na “Colecção III Reich” temendo talvez alguma atenção que pudessem trazer. Mas ao ver melhor a colecção, vemos que há livros com interesse, livros mais pessoais, que nos permitem explorar a vida de Hitler do interior, as questões que o ocupavam nos momentos privados, as inseguranças que o assombravam. Temo-lo reduzido a um homem, numa cadeira de braços, com uma chávena de chá e um livro. E vemo-lo num contexto diferente.

Por exemplo, quando descreve a reacção do jovem Hitler a ler Karl May - as notas baixaram por causa do tempo passado a ler. Não teve medo de o humanizar?

Sempre que entramos neste domínio temos de distinguir entre compreendê-lo como ser humano e humanizá-lo. Há muito voyeurismo pouco saudável à volta de Hitler, acho isso ofensivo e irresponsável. Pensei se estudar esta biblioteca era uma tarefa útil ou não. Acredito que sim, que é uma janela importante para a vida privada de uma personagem especialmente impenetrável. O que ele diz nos discursos tem um objectivo político; as memórias das pessoas à sua volta têm sempre uma certa agenda pessoal. Nos livros, quando ele marca passagens, há uma conversa entre ele e o livro, não está a fazer aquilo para ninguém. Podia-se ver passagens que marcou e depois ver um eco em discursos semanas, ou meses, mais tarde.

Hitler não só passou muito tempo a ler - dizia mesmo que lia um livro por noite - como gastou também muito dinheiro em livros. Enquanto estava na frente ocidental foi comprar um guia turístico de Berlim que custava quatro marcos...

Sim, mas não só! Se formos ver as declarações de impostos, os livros são a segunda grande categoria de despesas. Quando Hitler fez um seguro em 1934, tinha uma parte especial para a biblioteca; e, quando faz o seu testamento, fala sobre a disposição dos livros. Os livros eram mesmo importantes para ele.

Um dos livros onde encontrou mais anotações era um livro de auto-ajuda. O que quer isto dizer?

Esse era o tipo de livros de que ele gostava. Quando falamos dos horrores que Hitler perpetrou, pensamos que tinham como base um mal profundo, evoca-se Schopenhauer e Nietzsche. Mas acho que o que a biblioteca mostra é que, no fundo, o que havia não era um mal profundo, mas sim uma maldade superficial e barata.

E o grande número de livros sobre ocultismo e esoterismo?

É uma coisa impressionante. A preocupação de Hitler com estas questões começou no início dos anos 1920 e durou toda a sua carreira; chegou a levar alguns destes livros para o seu bunker. Hitler foi criado num ambiente católico e o que permaneceu foi a arquitectura da crença. Havia nele uma necessidade de procurar uma explicação para o modo como o mundo funciona.

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Adolf Hitler dizia ler um livro por noite e, quando morreu, a sua biblioteca tinha mais de 16 mil livros.

Mas o ditador alemão colocava no mesmo plano westerns populares e tratados militares; misturava filosofia séria e panfletos anti-semitas, diz Timothy Ryback, autor de A Biblioteca Privada de Hitler (editado no original em inglês pela primeira vez em 2008, e agora publicado em Portugal pela Civilização).

Ryback, jornalista freelance que escreveu para o diário New York Times ou a revista New Yorker, académico que ensinou História na Universidade de Harvard, e escritor, autor ainda de um livro sobre o campo de concentração de Dauchau, lançou-se no estudo dos livros do ditador. Escrutinou os 1200 livros que sobraram e que estão na Biblioteca do Congresso, em Washington (que tem a maior parte da colecção), e na Universidade Brown, em Providence, à procura de dedicatórias, sublinhados, notas. O P2 falou com o autor em Lisboa.

Costumamos pensar na literatura como algo que tem o poder de abrir horizontes e de nos tornar, de alguma maneira, pessoas melhores. Este livro pode ser deprimente para quem pense assim?

Sim, o livro deixa-nos de facto a pensar nisso. A civilização ocidental está assente na noção de que a leitura, a educação, a literatura, nos dão mais conhecimento e fazem do mundo um sítio melhor. E com Adolf Hitler acontece exactamente o contrário. Este homem usou a literatura, usou a história, usou a filosofia para inspirar algumas das mais horríveis acções já cometidas por seres humanos. Mas suspeito que Hitler não era a única pessoa má com uma biblioteca.

Estaline, por exemplo, tinha também uma grande biblioteca. Como é possível ver a influência dos livros nos líderes? No caso de Hitler, as leituras parecem ter servido mais para confirmar as suas ideias, e terem sido menos uma força que o moldou, como afirma no livro?

Há ambas, validação e influência. Acho que houve três tipos de livros na vida de Hitler. No início, alguns livros ajudaram a moldar a sua pessoa. Ele adorava livros de aventuras, como As Viagens de Gulliver ou Robinson Crusoe. Outros influenciaram a sua ideologia, como um livro de Madison Grant, The Passing of the Great Race, cuja influência se vê em discursos posteriores. A terceira categoria são os livros que Hitler explorava para os seus próprios objectivos. Nietzsche e Schopenhauer, por exemplo, são associados a Hitler. Não creio que ele tenha tido a capacidade intelectual para os ler e perceber. Mas pegava em frases e ideias, escolhendo as que lhe convinham, para alimentar a sua ideologia. Fazia o mesmo com a Bíblia: os discursos de Hitler estão cheios de alusões religiosas. Ele explorava estas obras e escolhia os pedaços que lhe convinham.

Hitler fazia anotações a lápis, na maioria sublinhados, nos livros. O que se pode depreender do seu estilo de anotações?

Consegue-se ver um padrão do modo como ele lia, sublinhando frases e decidindo ignorar partes. Em Mein Kampf [a autobiografia e manifesto político de Hitler] ele dedica uma secção à arte de ler, dizendo que quando as pessoas lêem muitos livros isso deixa a sua mente numa confusão. Ele lia com uma noção pré-concebida e tirava dos livros o que servia para a alimentar. Isto não é aprender, é pilhar e explorar.

Hitler só estudou até aos 15 anos. Esta necessidade de ler era uma compensação para a sua falta de formação académica?

Sim. Hitler foi um leitor fanático toda a vida, e por trás deste apetite voraz havia uma incrível insegurança intelectual. Mas não tinha capacidade crítica para distinguir entre filosofia séria e tratados tendenciosos, anti-semitas. Tratava tudo como tendo valor igual. Dizia-se que durante a I Guerra Mundial Hitler levava as obras completas de Schopenhauer para a frente. Duvido: são 2800 páginas, e ele nem sabia escrever correctamente o nome de Shopenhauer [colocava um “p” a mais].

No seu livro, não vemos pistas de que Hitler leria os seus inimigos para os conhecer melhor, ou para melhor refutar as suas teorias. Acha que o poderia ter feito?

(Pausa) “Conheça o seu inimigo”, diz-se... Teria Hitler lido Karl Marx? Não há qualquer prova disso. Eu diria, mas não tenho provas, que Hitler poderia ter lido os seus inimigos se precisasse de os contrariar. E talvez o melhor exemplo tenha sido o de um livro de um homem chamado Dickel. No início do movimento nazi, [Otto] Dickel surgia como um possível líder, equivalente a Hitler, e talvez melhor porque tinha um livro que poderia servir a causa. Sabemos que Hitler leu o livro, linha a linha, e escreveu uma longa carta refutando-o ponto por ponto. Assim, podemos ver que ele era capaz de fazer coisas deste género. Mas não teria lido Marx para perceber as suas teorias económicas; apenas se precisasse de as refutar.

Como explica que ninguém se tenha interessado pelos livros que Hitler leu?

Há apenas 1200 livros na colecção, cerca de um décimo da colecção total - quando Hitler morreu estima-se que tivesse 18 mil livros. A Biblioteca do Congresso também os tinha meio escondidos, na “Colecção III Reich” temendo talvez alguma atenção que pudessem trazer. Mas ao ver melhor a colecção, vemos que há livros com interesse, livros mais pessoais, que nos permitem explorar a vida de Hitler do interior, as questões que o ocupavam nos momentos privados, as inseguranças que o assombravam. Temo-lo reduzido a um homem, numa cadeira de braços, com uma chávena de chá e um livro. E vemo-lo num contexto diferente.

Por exemplo, quando descreve a reacção do jovem Hitler a ler Karl May - as notas baixaram por causa do tempo passado a ler. Não teve medo de o humanizar?

Sempre que entramos neste domínio temos de distinguir entre compreendê-lo como ser humano e humanizá-lo. Há muito voyeurismo pouco saudável à volta de Hitler, acho isso ofensivo e irresponsável. Pensei se estudar esta biblioteca era uma tarefa útil ou não. Acredito que sim, que é uma janela importante para a vida privada de uma personagem especialmente impenetrável. O que ele diz nos discursos tem um objectivo político; as memórias das pessoas à sua volta têm sempre uma certa agenda pessoal. Nos livros, quando ele marca passagens, há uma conversa entre ele e o livro, não está a fazer aquilo para ninguém. Podia-se ver passagens que marcou e depois ver um eco em discursos semanas, ou meses, mais tarde.

Hitler não só passou muito tempo a ler - dizia mesmo que lia um livro por noite - como gastou também muito dinheiro em livros. Enquanto estava na frente ocidental foi comprar um guia turístico de Berlim que custava quatro marcos...

Sim, mas não só! Se formos ver as declarações de impostos, os livros são a segunda grande categoria de despesas. Quando Hitler fez um seguro em 1934, tinha uma parte especial para a biblioteca; e, quando faz o seu testamento, fala sobre a disposição dos livros. Os livros eram mesmo importantes para ele.

Um dos livros onde encontrou mais anotações era um livro de auto-ajuda. O que quer isto dizer?

Esse era o tipo de livros de que ele gostava. Quando falamos dos horrores que Hitler perpetrou, pensamos que tinham como base um mal profundo, evoca-se Schopenhauer e Nietzsche. Mas acho que o que a biblioteca mostra é que, no fundo, o que havia não era um mal profundo, mas sim uma maldade superficial e barata.

E o grande número de livros sobre ocultismo e esoterismo?

É uma coisa impressionante. A preocupação de Hitler com estas questões começou no início dos anos 1920 e durou toda a sua carreira; chegou a levar alguns destes livros para o seu bunker. Hitler foi criado num ambiente católico e o que permaneceu foi a arquitectura da crença. Havia nele uma necessidade de procurar uma explicação para o modo como o mundo funciona.