Enrique Vila-Matas e a paródia do funeral da literatura
Enrique Vila-Matas (Barcelona, 1948) é - a par de Javier Marias - o mais importante renovador das letras hispânicas dos últimos anos. Em "Dublinesca", acabado de publicar por cá, apresenta a literatura como uma "arte em perigo" devido à disseminação do que ele chama "leitores passivos", em detrimento dos "leitores interessados". Depois de ter publicado, durante mais de duas décadas na Anagrama - onde tinha uma relação estreita com o editor Jorge Herralde - sem dar muitas explicações mudou-se para outra editora, a Seix Barral. O novo romance tem como personagem principal um editor (mas Vila-Matas garantiu que não é um ajuste de contas com Herralde). Falou com o IPSÍLON desde Barcelona, e disse que "a situação actual da literatura não poderia ser mais lamentável". Mas ele não é um pessimista, e acredita numa nova epifania (depois de a anterior ter acontecido em Dublin, com James Joyce e o seu "Ulisses").
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Enrique Vila-Matas (Barcelona, 1948) é - a par de Javier Marias - o mais importante renovador das letras hispânicas dos últimos anos. Em "Dublinesca", acabado de publicar por cá, apresenta a literatura como uma "arte em perigo" devido à disseminação do que ele chama "leitores passivos", em detrimento dos "leitores interessados". Depois de ter publicado, durante mais de duas décadas na Anagrama - onde tinha uma relação estreita com o editor Jorge Herralde - sem dar muitas explicações mudou-se para outra editora, a Seix Barral. O novo romance tem como personagem principal um editor (mas Vila-Matas garantiu que não é um ajuste de contas com Herralde). Falou com o IPSÍLON desde Barcelona, e disse que "a situação actual da literatura não poderia ser mais lamentável". Mas ele não é um pessimista, e acredita numa nova epifania (depois de a anterior ter acontecido em Dublin, com James Joyce e o seu "Ulisses").
O facto de a personagem principal de "Dublinesca" ser um editor, e não um escritor como em alguns dos seus livros anteriores, alterou a sua maneira de olhar para o que estava a escrever?
Sim, porque um editor pensa de maneira muito diferente da de um escritor. O pouco que um editor pode chegar a parecer-se com um escritor, pelo menos com um escritor como eu, é o seu olhar sobre os escritores. Normalmente, eles vêem-se uns aos outros como indivíduos insuportáveis.
Também acha que os escritores são insuportáveis?
O pior defeito que têm é a vaidade. Há no meio dos escritores uma grande quantidade de gente de valor muito discutível, mas acham-se absurdamente importantes. Suspeito que há gente de maior nível intelectual noutros meios, como o científico. O convencimento, a vaidade, por outro lado, deveriam ser banidos da literatura porque são sempre sentimentos estúpidos. Devemos recordar que onde há humildade há saber. Kafka, por exemplo, era humilde. Se o imaginarmos um indivíduo soberbo, não nos parece logo um imbecil?
Mas tem muitos amigos escritores. E eles servem-lhe de matéria-prima para os livros. Não tem receio das reacções que eles possam ter ao verem-se expostos? Por exemplo, o Paul Auster, que é seu amigo e aparece neste romance.
O Auster viveu em Paris nos mesmos tempos em que eu estive por lá, no princípio dos anos 70. É muito provável que nos tivéssemos cruzado mais do que uma vez em alguma festa, ou simplesmente na rua, ou num café. Nesse tempo, vivíamos os dois em águas-furtadas [a de Vila-Matas era-lhe então alugada por Marguerite Duras], parecidas e quase vizinhas. O Auster decidiu que esse passado em comum nos unia. Creio que decidiu isso porque tinha vontade de encontrar um motivo razoável para começar a ser meu amigo. Está contentíssimo por ser uma personagem do "Dublinesca". E eu admiro o seu talento.
O "apocalipse", o fim do mundo da imprensa, é tratado no romance de uma maneira mais paródica do que trágica. Essa ausência de tragicidade traz a esperança de que o "apocalipse" não será afinal tão "apocalíptico"?
Fundamentalmente, "Dublinesca" é uma paródia do fim do mundo. É imprescindível ter isto em conta. No meu romance, enterro a literatura e parodio essa ideia que está presente na Humanidade desde sempre, já está na Bíblia, de que vivemos o fim do mundo. O curioso é que no final do meu romance a pobre literatura acaba por estar mais viva do que nunca, como se o seu funeral em Dublin - ou o meu romance - a tivessem trazido de novo à vida, a tivessem ressuscitado.
A figura do editor culto, que gosta e sabe de literatura, está mesmo a desaparecer? Vai ser substituído por um economista?
Sinceramente, não sei o que vai acontecer, mas penso que daqui em diante irá tudo de mal a pior. Mas tome esta frase também de maneira paródica. Não gostaria que tudo estivesse melhor daqui a cem anos e depois dissessem que eu era um pobre pessimista.
Acha que alguém o lerá daqui a cem anos?
Nessa altura terei 162 anos e estarei interessado noutras coisas, como ir buscar os netos dos meus netos ao colégio, por exemplo.
Há o risco de a literatura desaparecer da maioria das editoras devido à febre generalizada do "best seller"?
A situação da alta literatura - aquilo que antes simplesmente chamávamos literatura - não pode ser mais lamentável. No outro dia, a um amigo meu, Eduardo Lago, que é um escritor espanhol muito bom, alguém o entrevistou e lhe perguntou se ele não achava que o romance que escrevera era "muito literário". Como ele vive em Nova Iorque, não sabia que em Espanha o normal agora é publicar "romances não literários".
A personagem Riba é um arquétipo do editor angustiado face a essa crise de valores ...
O que lhe interessa é a arte, só isso. Entre "Diário Volúvel" [o anterior livro de Vila-Matas] e "Dublinesca" há muitos pontos em comum. O leitor segue a vida de "um herói" - um escritor [no primeiro], um editor [no último] - no seu dia a dia, demoradamente, com tempo, tirando do nada ou do anódino tudo o que lá se possa encontrar: no fundo, elevando à categoria de arte o cinzento do quotidiano.
Quis fazer de "Dublinesca", à semelhança de "Ulisses", uma espécie de epopeia do quotidiano?
"Dublinesca" não é um romance sobre Joyce e muito menos sobre Dublin, mas antes, um romance que capta a essência de Joyce e do "Ulisses", como capta a essência da narrativa irlandesa sem necessidade de mencionar Jonathan Swift, Oscar Wilde, Bernard Shaw e tantos outros. Do "Ulisses" aproveita quase só o sexto capítulo, como sabe, o do funeral e enterro de Paddy Dignam. E se em Joyce há um percurso pela cidade onde se vive o quotidiano da rua para depois nos dirigirmos à cidade dos mortos e da morte, no meu livro o percurso leva-nos à possível morte da literatura. Mais do que cenas concretas do "Ulisses", o que temos é a captação do seu espírito.
Há muitas "coincidências" no romance... e fantasmas. São coisas que fazem parte de um esquema inicial?
Não, nada programadas. Cheguei a ter medo quando estava a escrever o livro.
Ribas diz que há uma crise dos "leitores interessados", e que isso é o resultado dessa "lenda de leitor passivo" criada pelo "bezerro de ouro dos 'best sellers' góticos" ...
Não sei. Há sobretudo uma crise do juízo literário. Já o dizia Julien Gracq há cinquenta anos: "Não sabemos se a literatura está em crise, mas a crise do juízo literário salta à vista."
Supondo, como faz crer no romance, que Beckett foi uma espécie de "afonia" da literatura - depois de Joyce ter sido a sua epifania - como olha para a geração literária pós-Beckett, que é a sua?
"Dublinesca" propõe uma regeneração do romance, e isso vê-se no final, o regresso daquele autor que, segundo Barthes, estava morto.
Há um sonho tido pela personagem que parece ser a chave do livro. E como que anuncia uma epifania. Mas quando ela acontece acaba por não ser tão intensa como se espera. Concorda?
Espera-se que a epifania tenha lugar em Cork, mas no romance não se conta o que acontece em Cork porque, e quando o livro termina, Riba ainda não foi lá... Mas há uma cena de amor à saída de um "pub" de Dublin que para mim é mais forte do que uma epifanía.
Percebe-se que há muitos elementos autobiográficos. Foi uma tentativa de se perceber melhor a si próprio?
Tudo em "Dublinesca" é ficção. Que outra coisa poderia ser? Mas como toda a boa ficção aproxima-se da verdade, inclusivamente da minha verdade.
O tempo que passou no hospital por causa de uma grave doença, fê-lo ter uma outra visão sobre a sua vida e a sua obra?
Sim. Sem lugar para dúvidas. Ao sair do hospital, faz cinco anos, senti que herdava a obra de outro, a obra de Vila-Matas, que me tinham encomendado gerir a sua obra. Faço o que posso com essa herança tão interessante.
Parece ter grande apreço por muitos escritores irlandeses...
Sim. Claire Keegan, Elizabeth Bowen, Joseph O'Neill, Matthew Swenney, Colum McCann... Suponho que alguns não serão já uns tipos completamente desconhecidos em Portugal. Há um escritor extraordinário, Colm Tóibín. Não sei se já traduziram o seu último livro,"Brooklyn"...
Sim, sim...
É muito bom. Uma maravilha.
O Vila-Matas também quer dar o "salto inglês"? Esse corte com Paris e com a cultura francesa que uma das suas personagens advoga para que a literatura se refresque...
Não é para levar à letra. Mas precisava de uma mudança de ares, deixar um tempo a cultura catalã, espanhola, mexicana e francesa, e aventurar-me por novos espaços.
O cinema está também muito presente em Dublinesca. Samuel Riba entrou na literatura por causa da Deneuve. E o Vila-Matas?
Eu entrei por um equívoco. Para não me aborrecer no norte de África quando tive que ser soldado colonialista espanhol, escrevi um romancezito. Ao regressar a Barcelona, alguém se empenhou em publicar-mo. Eu não queria ser escritor, tinha pensado ser tenista; de facto, já me tinha destacado no ténis juvenil, mas não tive valor suficiente para continuar.