As fórmulas secretas são um belo truque de marketing
A fotografia foi publicada num jornal de Atlanta em 1979 e, agora, um programa de rádio lembrou-se de ler o que estava escrito, à mão, naquele caderno já velhinho de décadas. E o que lá estava era a receita da Coca-Cola. Será este o prosaico fim de um dos mitos urbanos mais célebres do último século?
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A fotografia foi publicada num jornal de Atlanta em 1979 e, agora, um programa de rádio lembrou-se de ler o que estava escrito, à mão, naquele caderno já velhinho de décadas. E o que lá estava era a receita da Coca-Cola. Será este o prosaico fim de um dos mitos urbanos mais célebres do último século?
Não, já disse a Coca-Cola. Enquanto o mundo debatia os ingredientes da fórmula e os portugueses sorriam perante a presença de coentros na composição do sabor X7 que entra na receita, a companhia que produz o refrigerante mais famoso do planeta apressou-se a desmentir que o que estava a ser publicado fosse o segredo guardado a sete chaves no cofre de um banco de Atlanta, EUA.
Mas valerá a pena alimentar este debate? Tudo indica que não. A própria Coca-Cola tinha, claramente, pisado o risco quando, há dois anos, lançou uma campanha publicitária em que garantia que só duas pessoas no mundo conheciam a fórmula secreta da bebida. Do ponto de vista comercial, até será um grande golpe de marketing. Mas não pode ser verdade.
"Não é, de todo, possível que apenas duas pessoas conheçam a fórmula secreta da Coca-Cola", constatou Steven D. Levitt na sua coluna Freakonomics, publicada no site do New York Times (e um pouco por todo o mundo). "E, se assim fosse, então os accionistas da empresa deveriam processar a administração."
Um império financeiro como o da Coca-Cola não pode depender de concepções românticas. Mas pode capitalizá-las. E não é caso único. A Kentucky Fried Chicken (KFC) apregoa a sua fórmula secreta, que, alegadamente, foi mantida durante anos apenas na cabeça do fundador da cadeia, Harland Sanders, enquanto a amostra-padrão da mistura de especiarias viajava no seu carro.
Hoje, tal como acontece com a Coca-Cola, a KFC guarda a sua fórmula num cofre - no caso, não de um banco mas na sede da companhia, em Louisville, Kentucky, EUA. É qualquer coisa de extraordinário, diz quem já viu: o cofre abre-se para dar acesso a uma porta com combinação secreta, atrás da qual há um único cacifo, mas dotado de duas fechaduras com segredo. Lá dentro, está a receita, assinada por Sanders.
Ciência vs. mitoDiz-se que se trata de uma folha de bloco de notas, escrita à mão e a lápis, pelo que a escrita está cada vez mais sumida. Diz-se também que Sanders passou a receita a apenas duas pessoas: a sua mulher e o homem que lhe comprou o negócio, em 1964. Também neste caso se conta que apenas duas pessoas conhecem o segredo - metade do preparado é feito em determinadas unidades industriais, a outra metade noutro conjunto diferente e só depois se faz a mistura final. Teoricamente, isto impede que alguém, envolvido no seu fabrico, desvende o segredo.
Sempre se falou de 11 ervas e especiarias na fórmula da KFC, mas análises laboratoriais ao produto não descobriram, sequer, vestígios de uma que seja.
No seu livro Big Secrets, William Pounstone revelava que, numa análise laboratorial à cobertura dos nacos de frango, descobrira apenas quatro ingredientes: farinha, sal, glutamato monossódico (um aditivo que intensifica o sabor) e pimenta preta. Um outro estudo juntou açúcar a este lista. Das famosas ervas, nem vestígios...
A verdade é que esta fórmula secreta é uma notável fonte de receitas para a KFC, uma vez que todos os restaurantes de todas as franchises do mundo são obrigados a comprar a mistura à casa-mãe. Por um preço que já levou muitas a protestar.
E, tudo o indica, o verdadeiro segredo do franguinho frito que deixa os dedos prontinhos para lamber reside na fritura - que é feita sob pressão e a temperaturas mais altas do que o normal, um processo que mantém a carne húmida e tenra no interior.
Seja como for, o apelo de uma fórmula secreta é irresistível. Que o digam os fabricantes dos chocolates Mars, que também acenam com o carácter mais do que reservado da sua fórmula. Que, entretanto, até mudou nos últimos anos, para fazer face às novas expectativas do público...
O segredo de BelémEm Portugal, o maior exemplo de uma fórmula secreta que contribui para o pedigree de um produto é a receita dos pastéis de Belém. Os mestres pasteleiros da Oficina do Segredo - só o nome já é um achado - são os únicos a conhecer a fórmula para fazer os irresistíveis doces. Antes de serem iniciados na função, assinam um termo de responsabilidade e fazem um juramento, comprometendo-se a não divulgar o segredo.
Um laboratório italiano lançou-se, em 1994, na tarefa de desvendar este mito culinário e concluiu que, para além dos ingredientes óbvios, como leite e ovos, haveria ali flocos de batata, do tipo dos que usamos para fazer puré em casa. Mas o relatório nunca foi publicado e a investigação foi descontinuada.
Na Internet, fervilham receitas que replicam todos estes mistérios guardados a sete chaves. Mas uma fórmula secreta é uma fórmula secreta e (conforme poderá comprovar quem quer que alguma vez tenha vestido um avental na cozinha...), mesmo que conheçamos a lista de ingredientes, há sempre um segredo por trás dela. Quanto mais não seja, porque dá um jeitão em termos de marketing.