Rob Kesseler: um artesão apaixonado pelo mundo natural

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Foto: Miguel Manso

Num fim de tarde, sentado em frente ao microscópio no seu cantinho de bancada de laboratório no Instituto Gulbenkian de Ciências, em Oeiras, Rob Kesseler pega numa gilete e corta, com muito cuidado, minúsculas e translúcidas rodelas de caule vegetal, enquanto vai explicando o que faz. Mergulha os bocadinhos num pires com azul de tolueno e deixa-os de molho durante uns minutos. Depois passa-os por água e coloca um deles em cima de uma lâmina de vidro. Tira os óculos e olha para a lâmina pela lente do microscópio, ajustando o foco. Por cima do aparelho, com a objectiva virada para baixo e bem segura na estrutura, uma câmara fotográfica permite-lhe tirar fotografias digitais das amostras. Entretanto, num monitor de computador surge o que a câmara vê: a imagem ampliada do espécime, cujas células, tingidas de azul, possuem uma textura vítrea, semelhante à de um vitral.

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Num fim de tarde, sentado em frente ao microscópio no seu cantinho de bancada de laboratório no Instituto Gulbenkian de Ciências, em Oeiras, Rob Kesseler pega numa gilete e corta, com muito cuidado, minúsculas e translúcidas rodelas de caule vegetal, enquanto vai explicando o que faz. Mergulha os bocadinhos num pires com azul de tolueno e deixa-os de molho durante uns minutos. Depois passa-os por água e coloca um deles em cima de uma lâmina de vidro. Tira os óculos e olha para a lâmina pela lente do microscópio, ajustando o foco. Por cima do aparelho, com a objectiva virada para baixo e bem segura na estrutura, uma câmara fotográfica permite-lhe tirar fotografias digitais das amostras. Entretanto, num monitor de computador surge o que a câmara vê: a imagem ampliada do espécime, cujas células, tingidas de azul, possuem uma textura vítrea, semelhante à de um vitral.

Kesseler (n. 1951) é professor de Cerâmica em Londres, no Central Saint Martins College of Art and Design, mas o ambiente do laboratório não lhe é estranho. No Reino Unido mantém uma colaboração com os cientistas dos Jardins Botânicos Reais de Kew e já publicou uma série de livros sobre as imagens e a ciência do mundo vegetal visto ao microscópio, que já foram traduzidos para várias línguas.

Nos últimos meses, tem partilhado o seu tempo entre Londres e Oeiras, onde, a convite da Fundação Gulbenkian, tem desenvolvido um trabalho em colaboração com os cientistas do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC).

Esta semana, a partir de quinta-feira 17, vai apresentar uma parte do trabalho que realizou em Portugal durante um colóquio internacional sobre Imagens na Ciência e na Arte, a decorrer na Fundação Gulbenkian em Lisboa e organizada pelo Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa. A peça forte: uma instalação que incluirá pratos de cerâmica feitos com base nas suas imagens vegetais, em colaboração com a Vista Alegre.

Quanto tempo durou a sua residência de artista no IGC?

Comecei em Janeiro de 2010 e passei cá quase cinco meses a tempo inteiro, realmente inserido neste laboratório. Depois, estive a ir e vir entre Portugal e o Reino Unido para acabar o meu trabalho - e agora estou cá, porque vou fazer algumas exposições e participar em diversos eventos.

Para que serve uma residência de artista numa instituição científica?

É uma pergunta interessante. Às vezes perguntam-me se descobri alguma coisa nova. É uma pergunta bastante ingénua, feita habitualmente por não cientistas. Acho que o processo é mais subtil do que pode parecer e acontece nos dois sentidos.

Do meu lado, estou interessado em trabalhar com o mundo natural. Trabalhei sempre a partir do mundo natural. E, há 12-13 anos, apercebi-me de que ninguém estava a trabalhar ao nível miscroscópico e comecei a trabalhar com cientistas em Kew [Jardins Botânicos Reais, ao pé de Londres].

A minha vinda a Portugal foi uma iniciativa de Siân Ede, vice-directora da Gulbenkian de Londres. Foi uma oportunidade para criar uma série de trabalhos diferentes e aprender a ciência. Tento trabalhar como um cientista, preparo as minhas amostras de microscopia... Demora imenso tempo, mas é muito gratificante.

Como a Gulbenkian estava a financiar-me e o dinheiro é um bem escasso, perguntei-me também o que eu podia fazer por este sítio, como poderiam as pessoas beneficiar da minha presença. No seminário que dei logo no início para apresentar o que faço, descrevi Lisboa como sendo uma cidade celular, das pedras dos passeios aos azulejos das paredes. Tento fazer com que as pessoas olhem para o mundo de forma diferente, porque normalmente passamos ao lado de coisas espantosas. Eu estava a tentar incitá-los a olhar para o mundo em que vivem em relação ao que fazem aqui. Acho que perceberam rapidamente que eu queria ser um deles, integrar-me no sítio.

O trabalho que faço está a meio caminho entre o mundo das artes e o mundo das ciências. E os cientistas deste lugar, que acho único pela facilidade de interacção que existe entre as pessoas, reconhecem claramente isso. Sabem quais são os processos que utilizo no meu trabalho e sabem que eu crio de maneira diferente. Mas a diferença não é assim tão extrema, o que faço tem sentido para eles.

Há muito tempo que trabalha com imagens de microscópio?

Sim, mas anteriormente, com os cientistas de Kew e nos meus livros, tinha trabalhado muito com microscopia electrónica de varrimento [scanning electron microspcopy ou SEM, que permite obter imagens 3D muito detalhadas da superfície de objectos microscópicos]. Só que o IGC não possui este tipo de equipamento e tive de experimentar novos processos. Tentei fazer algum trabalho de microscopia confocal [uma técnica particular de microscopia óptica], mas a tecnologia é complexa e exige passar muito tempo ao microscópio. E como o aparelho do IGC tem uma agenda muito preenchida, rapidamente percebi que precisava de outra coisa.

Foi assim que comecei a trabalhar com um microscópio óptico. Podia passar o dia todo a usá-lo, porque ninguém precisava dele. E comecei a fazer cortes de plantas - finas rodelas de caule de plantas silvestres portuguesas -, o que me deu, aliás, a oportunidade de percorrer um pouco o país, do Alentejo ao Norte. As estruturas celulares dos caules são simplesmente maravilhosas. Contêm um variedade de padrões microscópicos.

Introduz cor nas suas imagens?

Sim. Mas enquanto nas imagens de SEM isso acontecia no fim do processo, aqui, comecei a pigmentar as amostras, a introduzir cor no início do processo, para revelar as características funcionais dos meus espécimes. Pego na amostra e tinjo-a com uma série de corantes diferentes. E, a seguir, fotografo as amostras através do microscópio óptico com uma grande ampliação.

Corto finíssimas secções com uma gilete (tentámos fazê-lo com um micrótomo, mas o tecido vegetal é muito frágil e de facto consigo fazê-lo melhor manualmente). Depois, utilizo corantes convencionais. E em vez de tirar uma única fotografia a baixa ampliação para apanhar a totalidade da amostra, tiro múltiplas fotografias de alta resolução e depois reconstituo o conjunto para obter imagens em grande formato das diversas estruturas celulares. Por exemplo, quando trabalhei com amostras de orquídea, tive de juntar 560 imagens para obter a imagem final. Na sua resolução máxima, as minhas imagenstêm vários metros quadrados.

Estas imagens podem dar aos cientistas uma visão que não teriam de outra forma?

Acho que o benefício para os cientistas é mais do lado da técnica, pode ajudá-los a melhorar as suas técnicas de imagem. Não é fazer algo novo; é, no fundo, conseguir fazer melhor aquilo que já se faz. E gostar do que vemos. O que as pessoas apreciaram também é que trabalho de muitas maneiras diferentes.

O que tento fazer quando crio é destilar tudo o que sei e sinto sobre o tema. Dou um passeio para recolher os espécimes, cheiro as plantas - e depois desenho-as, de uma maneira muito pouco convencional, com tinta indiana, misturando os mesmos corantes que vou usar para colorir as amostras antes de as fotografar ao microscópio. Tenho vários frascos de tinta, coloco a planta ao pé de mim e pinto bastante depressa, com um pincel chinês. Passados três minutos, ponho o papel debaixo da torneira, para remover o excesso de tinta. Com jeito, é possível controlar o resultado até certo ponto. O que obtenho é algo totalmente oposto ao trabalho de fotografia de alta resolução que faço com o microscópio e, em vez de dois ou três dias, leva apenas uns minutos a acabar. Mesmo assim, consigo captar algo da planta. Aproveito todos estes aspectos. O meu trabalho tem a ver com partilha de saber e com diversas maneiras de olhar para o mesmo material.

Na exposição, vai mostrar painéis com imagens de alta resolução?

Sim, mas não apenas de plantas. Também fiz alguns trabalhos com borboletas.

Trabalhou com diferentes equipas do IGC ou acompanhou uma equipa em particular?

Trabalhei sobretudo com o grupo de biologia vegetal. Mas também fiz algum trabalho com embriões de ratinhos transgénicos - mais uma vez, para tentar melhorar a qualidade das imagens. E organizei alguns workshops de desenho. Tentei atingir o maior número de pessoas possível.

Não acha que, com frequência, a beleza das imagens científicas não acompanha a importância dos resultados?

As imagens científicas tornaram-se muito sofisticadas - e algumas são fantásticas. Mas há um debate que tem de ser feito em relação à natureza dessas imagens e de como são descritas. Porque são vistas sobretudo como belas.

Mas os cientistas já perceberam que, para passar a sua mensagem, têm de tornar-se um pouco artistas.

De facto, acho que as ciências biomédicas estão a conseguir estimular os artistas mais depressa do que as ciências vegetais. As plantas são belas em si e pronto.

No meio das artes, as imagens científicas são consideradas como arte?

Pois, essa é uma outra questão delicada. A questão do estatuto de alguns destes trabalhos. Acho que é quase mais fácil serem aceites pela comunidade científica do que pela comunidade artística. As regras são diferentes.

Os processos de criação em ciência e arte são de facto diferentes?

E os resultados finais também. Tentamos fazer coisas diferentes no nosso trabalho. Uma das minhas preocupações, quando comecei a fazer SEM e a colorir as imagens, era a questão de estar a modificar a natureza. Até que ponto é que o podia fazer? Mas depois pensei que, afinal de contas, os cientistas também alteram a natureza para produzir os espécimes que querem nas condições que querem. E, no fundo, eu alterava-os menos: com o pólen, por exemplo, costumo usá-lo fresco, directamente saído da planta. Por vezes fica perfeito, por vezes fica achatado de uma maneira interessante.

Depois tornei-me mais aventureiro com as cores. Mas tratava-se de cores reais, de cores artificiais, de cores falsas? Há tantas descrições... E penso que fiquei um pouco irritado, porque isso parecia insinuar que existia uma espécie de técnica programada, onde bastava carregar num botão. E então fiz coisas cada vez mais sofisticadas, como partir de uma imagem a preto e branco, limpá-la e a seguir introduzir a cor, com uma caneta gráfica e uma paleta digital. Uso cores baseadas nas da amostra original para pôr em evidência características funcionais.

Estou no fundo a usar a cor da mesma maneira que as plantas - para atrair audiências, colaboradores. As plantas usam cores para se disseminar e eu também. Só que o meu público é diferente, vai das crianças das escolas aos cientistas.

Mas o processo que utilizou aqui no IGC é diferente.

Com as imagens de microscopia óptica, como estou a trabalhar com grandes amplificações, preciso de tirar cinco ou seis imagens do mesmo sector com diferentes profundidades de campo. Depois, tenho de comprimir essas imagens - faço-o manualmente, retendo apenas a parte nítida de cada uma. Há programas informáticos para o fazer, para juntar os retalhos, mas nenhum deles consegue fazê-lo tão bem como eu manualmente. É um processo laborioso.

Os meus objectivos e os dos cientistas são muito diferentes, mas sobrepõem-se: estamos a abordar o mesmo material de direcções diferentes. Porém, somos avaliados de forma muito diferente. O trabalho científico funda-se totalmente na avaliação pelos pares; no mundo da arte é muito mais vago, pode depender do capricho de um crítico - com quem nem temos de estar forçosamente de acordo.

É professor de Cerâmica, mas o trabalho que está a descrever usa materiais muito diferentes. Como se autodefine?

[ri-se] Sou muito difícil de definir, porque estudei Cerâmica e continuo a ser professor de Cerâmica. Trabalho como artista, mas trabalho no cruzamento da arte, do design e dos ofícios - e agora na sua sobreposição com a ciência. Isso permite-me ter uma perspectiva diferente, ser um observador exterior com um olhar crítico sobre as diversas práticas. Acho que a minha motivação continua a ser o mundo natural e a sua forma de migrar para dentro das nossas vidas - seja na nossa roupa, nos nossos cortinados ou na nossa loiça. Também me interesso pela forma como isso tem sido feito ao longo da História. Estou muito ciente de estar a trabalhar neste contexto histórico.

Quando este projecto de residência artística surgiu, eu já tinha contactos com a Vista Alegre e sabia que eles já tinham trabalhado um pouco com o IGC. Propus-lhes uma colaboração sem ainda saber bem para fazer o quê. E o resultado é que acabei por criar três colecções de pratos.

A partir das imagens que fez no IGC?

Sim. Uma delas vai ser exibida na Fundação Gulbenkian [a partir de 17 de Fevereiro] durante o colóquio de três dias sobre as imagens na ciência e na arte organizado por Olga Pombo, da Universidade de Lisboa. Eu vou fazer uma conferência e vai ser muito bom ter coisas concretas para mostrar e não apenas imagens projectadas.

Concebi a peça a partir de uma das minhas imagens de estruturas vegetais, que foi impressa numa tela com 3,5x3,5 metros (imagem recortada no topo da página 6). É uma espécie de toalha de piquenique gigante que vai ser apresentada quase ao nível do chão e em cima da qual vão estar 50 pratos (cuja produção foi financiada pela Vista Alegre).

Já tinha tido há tempos a ideia de fabricar pratos com formas estranhas, mas não a tinha aprofundado. A Vista Alegre tinha um conjunto de pratos com formas ligeiramente irregulares e isso encaixava perfeitamente nas imagens das células vegetais. Vamos mostrar a colecção toda em cima da tela. Não sei bem que aspecto vai ter, acho que vai ser rico e confuso e curioso ao mesmo tempo, um objecto sobre o qual as pessoas vão ter vontade de se debruçar.

Também estou a fazer uma outra colecção de 100 pratos que vamos usar para um jantar que vai ser organizado no British Council no início de Março, numa sala belíssima. Já fiz alguns eventos no passado onde usei pratos. O prato é como uma tela branca, ou uma folha de papel, que se torna a seguir um objecto funcional - passa de objecto de arte a objecto de design. O Cooking Lab [empresa portuguesa de "gastronomia molecular", formada por cientistas] vai preparar a refeição, o que é muito apropriado. Vou convidar cientistas, artistas, curadores, jornalistas, políticos. A ideia é reunir pessoas que nem sempre se encontram para falar um pouco de arte e ciência e para criar um evento muito memorável. Vai ser um buffet, para que as pessoas possam circular.

Essa comunicação com o público é mais fácil para os artistas do que para os cientistas?

O mundo natural apaixona-me e quero partilhar essa paixão com outros. Há muitas maneiras de partilhar. Os cientistas não têm esse luxo. É mais fácil para os artistas. Tem havido grandes desenvolvimentos em arte e ciência e os artistas é que costumam ser convidados para trabalhar com cientistas. Não acontece muito no sentido oposto, embora isso esteja a mudar. Já há alguns cientistas nas academias de design, mas o problema é que a estrutura da carreira científica dificulta imenso este tipo de interacção. Nós, os artistas, somos mais flexíveis desse ponto de vista. No Central Saint Martins, onde sou professor de Cerâmica, tenho um emprego a meio-tempo - e não faço só investigação, também ensino dois dias completos por semana. Mas consegui fazer uma sabática cá. Para os cientistas, isso seria muito mais complicado.

E a terceira colecção de pratos?

É um conjunto de pratos em edição limitada nos quais fiz um buraco. Existem pratos, travessas, que já têm um buraco, que normalmente serve para pôr um recipiente com molho. Os meus pratos vão ter uma imagem impressa que abrange o buraco e vou colocar uma lupa no buraco. O prato poderá ser exibido, por exemplo, de pé e com uma planta por detrás, que aparecerá ampliada. A fundação vai ficar com este conjunto para ser usado em ocasiões especiais.

Já tinha feito uma coisa parecida em 2001 para uma exposição no Victoria and Albert Museum de Londres. Convidaram-me a fazer algo que tivesse uma relação com a colecção do museu. Escolhi objectos altamente decorativos de inspiração vegetal e fiz um prato com um grão de pólen impresso a dourado, que coloquei à frente do objecto. O objecto não ficava muito visível, porque a vitrina era pouco funda, apenas transparecia dele um pequeno pormenor. Mas, como o objecto se parece mover através da lupa, quando as pessoas passam à frente da peça, isso atrai o olhar.