Guerra colonial: o princípio do fim da ordem estabelecida
Os olhos e ouvidos estavam virados para o Recife. O paquete Santa Maria, desviado por Henrique Galvão, já nas mãos das autoridades navais brasileiras, ia nesse dia ser entregue ao adido militar da embaixada portuguesa no Rio de Janeiro. Mas a notícia acabou por chegar de Luanda: coisa nunca vista, grupos armados tinham atacado de madrugada cadeias e instalações oficiais, numa acção que, só mais tarde se perceberia, marcava o início das guerras coloniais.
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Os olhos e ouvidos estavam virados para o Recife. O paquete Santa Maria, desviado por Henrique Galvão, já nas mãos das autoridades navais brasileiras, ia nesse dia ser entregue ao adido militar da embaixada portuguesa no Rio de Janeiro. Mas a notícia acabou por chegar de Luanda: coisa nunca vista, grupos armados tinham atacado de madrugada cadeias e instalações oficiais, numa acção que, só mais tarde se perceberia, marcava o início das guerras coloniais.
O tom e as palavras do comunicado oficial do Governo-Geral de Angola divulgado naquele 4 de Fevereiro de 1961 pretendiam ser tranquilizadores - "os responsáveis já estão presos na maior parte e a ordem está restabelecida". O futuro mostrou que a apreciação era incorrecta: os acontecimentos de Luanda eram apenas o início da guerra nos territórios controlados por Portugal em África. A ordem nunca mais seria restabelecida.
Durante a madrugada, grupos de angolanos, armados sobretudo com catanas, procuraram assaltar a Casa de Reclusão Militar, a Cadeia da Administração de São Paulo, a Companhia Móvel da PSP, a Companhia Indígena e os Correios de Luanda. Resultado: sete elementos das forças de segurança e cerca de 15 atacantes mortos, um número indeterminado de feridos e também um sinal claro de que a harmonia colonial era um mito.
Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, autores do livro Angola 61: Guerra Colonial, Causa e Consequências, o 4 de Fevereiro e o 15 de Março, ontem apresentado em Lisboa, reconhecem que o levantamento ainda é "objecto de discussão e luta ideológica, sendo reivindicado quer pelo MPLA [que se tornaria no partido do poder no pós-independência], quer pela FNLA/UPA", outro dos movimentos de libertação angolanos.
Mas a investigadora de História Contemporânea Portuguesa no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) e o marido, antigo dirigente da Casa dos Estudantes do Império e professor - que com ela escreveu Purga em Angola: o 27 de Maio de 1977 - consideram que, "apesar de alguns dos participantes militarem nestes movimentos (numa época em que a pertença a este ou àquele grupo não era um dado adquirido), a acção foi desencadeada à margem deles, por iniciativa duma improvisada direcção e por pressão de angolanos detidos e ameaçados de sair de Angola para outras prisões".
Já para o historiador angolano Carlos Pacheco, os ataques foram "evidentemente" uma acção da UPA, tanto mais que nessa altura o MPLA estava em fase embrionária e "reduzia-se a meia dúzia de pessoas em Conacri", afirmou ao P2. No livro Angola, um Gigante com Pés de Barro, publicado no ano passado, é ainda mais taxativo: "Nenhum dos revoltosos do 4 de Fevereiro tinha ligações ao MPLA."
A acção será no entanto reivindicada em Conacri pelo MPLA, no que, segundo Carlos Pacheco, terá sido uma ideia de Mário de Andrade, um dos seus primeiros dirigentes. A mesma versão é também apresentada por José Freire Antunes, que no livroA Guerra de África 1961-1977, do Círculo de Leitores, cita o irmão, Joaquim Pinto de Andrade. "O Mário disse para o Viriato da Cruz: " Temos que reivindicar isto". Mas, na verdade, o MPLA nada teve a ver com o 4 de Fevereiro."
Mas se o levantamento foi da UPA, por que não o reivindicou ela? "Havia duas UPA - A UPA do interior e a UPA do exterior, que não concordava com qualquer acção na capital e por isso não a reivindicou", afirma Pacheco.
Os sinais de mudança multiplicavam-se naquele início da década de 60. O sopro independentista traduzira-se, no ano anterior, no nascimento de 17 novos estados em África, entre eles o vizinho Congo, que vivia agora tempos conturbados. Nas Nações Unidas imperava a vontade descolonizadora, mas Portugal argumentava que os seus domínios ultramarinos não eram colónias ou territórios associados e que o que ali se passava era assunto interno.
Sinais de mudançaNo terreno, o descontentamento e hostilidade para com o sistema colonial vinha também crescendo. "Já em 1956, o governador-geral de Angola tinha proibido fotografias de Nasser [Presidente egípcio] em jornais angolanos, visto serem depois afixadas nas casas como sinal de desafio a Portugal. E, em Novembro de 1958, a polícia secreta relatava que o "movimento separatista" redobrava os seus esforços para espalhar a mensagem por Angola", escreveu Filipe Ribeiro de Meneses na obra Salazar - uma Biografia Política, editada no ano passado pela D. Quixote. "Em finais de 1960 já não restavam dúvidas de que a violência estava prestes a chegar a Angola. A questão agora era apenas quando ela rebentaria e se podia ou não ser contida." Relatos de deserções e rumores que circulavam em partes de Angola de que os portugueses tinham envenenado o óleo de amendoim "com o objectivo de matar tantos negros quanto possível" aumentavam a preocupação das autoridades coloniais.
No início de Janeiro, os trabalhadores das fazendas de algodão da Baixa do Cassange, distrito de Malange, "pousaram as ferramentas em protesto contra as terríveis condições de trabalho" a que eram sujeitos pela empresa Cotanang, um tratamento que o próprio governador-geral, Álvaro da Silva Tavares, considerava necessário modificar. O protesto, violentamente reprimido, é considerado por Dalila e Álvaro Mateus um "verdadeiro levantamento contra o regime colonial, embora nunca tivesse sido colocada a consigna da independência nacional".
Já a 4 de Fevereiro as motivações eram claramente outras. No livro que editou no ano passado, Carlos Pacheco procura reconstituir a preparação e o desenrolar da acção. Os revoltosos ter-se-ão concentrado a partir de 8 de Janeiro nas pedreiras de Cacuaco, nos arredores de Luanda, em pequenos grupos, para não chamarem a atenção da polícia, e aí receberam "rudimentos de treino" de Bento António, identificado como pedreiro a cumprir serviço militar no Exército português. Paralelamente, "ritualizaram-se sessões de reza em feitiçaria, mediante a ingestão de três doses de cadingolo [bebida semelhante à aguardente] por cabeça", para desse modo "imunizar os combatentes "contra as balas dos brancos"".
Os ataques em Luanda, escreveu, estariam apenas previstos para 13 de Março, coincidindo com a sublevação que veio a ocorrer a 15 desse mês no Norte de Angola - a outra data marcante no início das guerras em África - e com um debate sobre o território agendado pelas Nações Unidas. Terá sido a presença de jornalistas estrangeiros - que se tinham deslocado a Luanda na expectativa de que o Santa Maria pudesse rumar a Angola - a levar os revoltosos a "não esperar mais". Também Dalila e Álvaro Mateus consideram que a data "não foi casual" e "aproveitava o facto de estarem em Luanda dezenas de jornalistas estrangeiros".
Logo nas primeiras notícias sobre o caso é referida uma eventual relação entre o levantamento de Luanda e o desvio do paquete, mas nenhum dos investigadores encontrou elementos que dêem corpo a essa hipótese. Ainda assim, os autores de Angola 1961, editado pela Texto, referiram ao P2 que um dos envolvidos no 4 de Fevereiro, Imperial Francisco Santana, afirmou ter ouvido Domingos Manuel António, o "chefe-geral", dizer que o ataque se fazia naquela ocasião "para coincidir com as revoltas que os portugueses promoviam na Metrópole contra o governo de Salazar". Dalila e Álvaro Mateus consideram "perfeitamente possível que houvesse contactos entre alguns dirigentes do 4 de Fevereiro e elementos da oposição portuguesa em Angola".
Na manhã de 3 de Fevereiro, segundo o relato de Carlos Pacheco, um dos revoltosos, Salvador Sebastião, deslocou-se à Igreja dos Remédios e explicou ao cónego Manuel das Neves, membro da UPNA - antecessora da UPA - desde 1955 e inspirador da luta contra o colonialismo, a mudança de planos e a decisão dos chefes operacionais de passarem à acção na madrugada seguinte.
O sacerdote considerava que era tempo de "os africanos converterem a sua cultura pacífica de protesto num grande momento de rebelião capaz de provocar violento abanão no edifício colonial". "Se não querem o diálogo ou não querem negociar, então não há outra solução", respondeu, segundo Pacheco, a alguém que, em 1960, o abordou na Sé Catedral, perguntando o que pensava dos movimentos nacionalistas. Mas agora, Manuel das Neves manifestava "muitas reticências" à iminente acção porque "percebeu que a revolta ainda não estava suficientemente madura" e "não interessava atacar às cegas". Terá, no entanto, concluído que "os seus argumentos nessa altura soavam inadequados" e que "não lhe restava outra alternativa senão resignar-se e abençoar a impaciência e o destemor daquele punhado de homens". "Acabou por ser ultrapassado, achava que a acção era extemporânea", confirmou agora o autor angolano.
Cónego estava contraDalila e Álvaro Mateus também dão crédito às informações que referem as reservas de Manuel das Neves, que tinha como pseudónimo "Amigo de Makarius", e era o principal dirigente do movimento no território. No depoimento dado invocam o testemunho de um participante na acção, Mateus Sebastião Francisco, segundo o qual o sacerdote declarou na véspera: "Olhem, meus amigos, se quiserem fazer, façam. Mas eu é que não posso assumir a responsabilidade." E também o de Porto Duarte, um subdirector da PIDE, segundo o qual o prelado tivera conhecimento da preparação do 4 de Fevereiro, mas nada fizera para o evitar.
Os autores do livro ontem apresentado citam mesmo um relatório enviado ainda em Fevereiro por Neves à direcção da UPA, onde o cónego escreveu que "os tumultos" foram "estupidamente engendrados". "Peço mesmo licença para dizer que deviam ser fuzilados por nós, angolanos, todos quantos os idealizaram, porque sabiam que daria em fracasso e, consequentemente, morte de gente em massa", refere o documento, constante dos arquivos da polícia política. A PIDE teria aproveitado a situação para se ver livre de Neves, que seria preso em Março e enviado para Portugal no mês seguinte.
Carlos Pacheco defende que à cabeça dos revoltosos estava Adão Neves Bendinha, um empregado de escritório, militante da UPA, "figura central" do movimento, e responsável pelo recrutamento de boa parte dos nacionalistas angolanos envolvidos na acção e que seriam sobretudo carpinteiros, pedreiros, marceneiros, sapateiros, pescadores, alfaiates e pintores da construção civil. Mas o casal Mateus chegou a uma conclusão bem diferente: o "chefe-geral" do levantamento foi Domingos Manuel Agostinho, presidente de uma "sociedade" que tinha como objectivo central lutar pela independência de Angola. Agostinho, referem, "manifestou, por mais de uma vez e a vários participantes, a sua simpatia por Agostinho Neto e por outros elementos conotados com o MPLA". Para eles, Bendinha era um personagem secundário, que teria sido informado por um membro da UPA da existência de um grupo que estava a preparar-se para fazer "confusão" e que foi "recrutado tardiamente", já em Janeiro de 1961.
Um fracassoComo previa o cónego Manuel das Neves, a primeira grande acção armada contra o colonialismo português saldou-se por um fracasso. Um grupo que se proporia atacar o Aeroporto Craveiro Lopes e incendiar aviões dispersou antes de chegar ao local, alegadamente por ter ouvido tiros. E nos outros objectivos os atacantes foram rechaçados, sem que conseguissem libertar presos ou obter armas de fogo.
O ponto de partida para a acção foi, segundo Carlos Pacheco, nas traseiras da estação ferroviária do Mota, a pouca distância do Campo da Académica. "Todos levavam à cintura uma fita com um sortilégio ou um pauzinho nos dentes [de 20 centímetros de comprimento], que se acreditava conter propriedades imunizantes." Os participantes nos ataques são estimados em mais de 200 em ambas as investigações.
O grupo que se dirigia à Casa de Reclusão deparou-se com um carro da PSP que o terá procurado interceptar - matou os quatro ocupantes e apoderou-se das suas armas. Mas no que era o seu objectivo principal não passou do pátio e, ainda que tivesse provocado baixas entre os defensores, foi repelido a fogo de metralhadora.
Os que se propunham assaltar a Companhia Indígena recuaram também face aos disparos que os receberam. Sempre segundo Pacheco, na Cadeia da Administração de São Paulo, foi morto um guarda, mas, face à reacção, o grupo assaltante fugiu. Na estação central dos correios na Baixa de Luanda foi morto um militar, mas, após alguma luta, os atacantes recuaram, seguindo em direcção à Companhia Móvel da PSP, um centro prisional de onde não conseguiram aproximar-se devido ao fogo cerrado que saía do interior.
O primeiro comunicado do Governo-Geral de Angola sobre o 4 de Fevereiro invoca "informações" recebidas nos dias anteriores de que estaria a preparar-se "uma alteração da ordem pública", mas Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus consideram que a acção foi "uma surpresa para militares, polícias e autoridades civis". Ao contrário do que sucederia uma semana depois, na noite de 10 para 11, quando se deu uma nova tentativa de assalto à Administração Civil da Cadeia de São Paulo, bem como à Companhia Indígena. Esta segunda acção já seria "esperada pelas autoridades coloniais, razão que explica o elevado número de mortos e feridos" e inúmeras prisões entre os revoltosos. As acções de Fevereiro de 1961 fizeram virar os olhares para Angola e deram visibilidade à luta contra o colonialismo português.
As retaliações e a repressão não tardaram. No funeral dos polícias mortos no dia 4, depois de alegadamente provocados, civis brancos abriram "fogo indiscriminadamente" contra africanos, numa acção que terá provocado 19 mortos e muitos feridos. Como escreveu Filipe Ribeiro de Meneses, "a população branca de Luanda resolveu fazer justiça pelas próprias mãos".
O "fosso racial", como o descreve um relatório militar de Abril de 1961, era agora bem evidente. Mas o pior estava para vir. A 15 de Março, dá-se a sublevação no Norte de Angola, uma revolta "prevista", mas que "surpreendeu e perturbou" pela "intensidade, rapidez e selvajaria", como a descreve o casal Mateus, e que provoca a morte de mais de 800 brancos e milhares de negros ao seu serviço, segundo as estimativas conhecidas.
Uma carta escrita no início de Abril por um oficial superior da polícia ao pai, que chegou ao conhecimento de Oliveira Salazar e é citada por Meneses, mostra o ponto a que se tinha chegado, com a actuação de milícias civis, que, dizia, "caçam pretos como quem caça coelhos". Mas essa é já outra história. "O 4 e o 11 de Fevereiro foram as primeiras acções, clara e conscientemente, dirigidas contra o colonialismo português", consideram Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus. "Teve, simbolicamente, a importância de ser o ponto de arranque", refere Carlos Pacheco.
Quando, pela segunda vez nos seus governos, a 13 de Abril, assume a pasta da Defesa, e dessa forma anula o frustrado golpe de Botelho Moniz, Salazar justifica a remodelação com a situação na maior das colónias africanas, fala da necessidade de a defender a todo o custo e usa palavras que haviam de ficar célebres, ao determinar que era altura de "andar rapidamente e em força" para Angola.