Darwin dá nova vida à casa dos sonhos de Sophia Melo Breyner

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A casa ainda vai sofrer algumas alterações, para acolher uma galeria da Universidade do Porto Fernando Veludo

"Tudo na casa era desmedidamente grande desde os quartos de dormir onde as crianças andavam de bicicleta até ao enorme átrio para o qual davam todas as salas e no qual, como Hans dizia, se poderia armar o esqueleto da baleia que há anos repousava, empacotado em numerosos volumes, nas caves da Faculdade de Ciências, por não haver lugar onde coubesse armado".

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"Tudo na casa era desmedidamente grande desde os quartos de dormir onde as crianças andavam de bicicleta até ao enorme átrio para o qual davam todas as salas e no qual, como Hans dizia, se poderia armar o esqueleto da baleia que há anos repousava, empacotado em numerosos volumes, nas caves da Faculdade de Ciências, por não haver lugar onde coubesse armado".

A passagem pertence ao conto Saga, de Sophia de Mello Breyner Andresen, e tem como referência inspiradora a casa do seu avô, João Henrique Andresen Júnior - o palacete que ainda existe na Rua do Campo Alegre, no Porto, em torno da qual existiu uma enorme quinta que inspirou uma boa parte da obra da poetisa, falecida em 2004. O que, depois da construção da auto-estrada Porto-Lisboa, sobrou da floresta dos contos de Sophia, foi transformado, na década de 1950, no Jardim Botânico do Porto. E a casa que ainda lá existe reabre na terça-feira, com a exposição A Evolução de Darwin, depois de seis meses de obras que lhe devolveram a dignidade do antigo palacete dos Andresen.

Uma das mudanças que primeiro se notam no casarão é a cor das paredes exteriores, que são, agora, "cor de borra de vinho verde tinto", veemente e vermelho como Sophia escreveu no poema O Minotauro. Essa era a cor original da casa, diz Teresa Andresen, sobrinha da escritora e actual directora do Jardim Botânico do Porto: "Temos o testemunho de uma tia minha [Teodora Andresen Abreu], que ainda aqui nasceu e que diz que a cor era esta". Nas velhas fotografias a preto e branco, a casa tem também um tom escuro. E o arquitecto Nuno Valentim, que coordenou as obras de reabilitação, encontrou registos que sustentam a escolha.

As fachadas envidraçadas do casarão são agora, pois, "cor de borra de vinho verde tinto", incluindo as caixilharias. E o interior, resume Nuno Valentim, "caiu ao balde da tinta". Está completamente branco, para lhe conferir um aspecto mais contemporâneo, contrastando com as madeiras do chão. A intervenção custou cerca de um milhão de euros e diz respeito à primeira fase da operação de restauro, tendo em vista a futura instalação da Galeria da Biodiversidade da Universidade do Porto (UP).

"A exposição do Darwin, associada ao centenário da universidade, permitiu espoletar este processo e iniciar também a reabilitação das estufas", explica Nuno Valentim, que considera "espantoso" que tenha sido possível fazer tanta coisa em tão pouco tempo. Em seis meses, o interior está irreconhecível: desapareceram as salas de aulas e laboratórios do antigo departamento de Botânica da UP que tinham descaracterizado a casa e, sobretudo, tratou-se da cobertura e do isolamento do imóvel, para acabar com as infiltrações.

Casa teve vários usos

"A casa é magnífica, não precisou de grandes invenções", resume Valentim, que tratou, sobretudo, de resolver questões de circulação e de mobilidade relacionadas com o facto de o edifício resultar de uma adaptação: a casa começou por ser pensada para acolher uma fábrica, no século XIX, foi adaptada a habitação e depois, já no século XX, transformada em sede da Mocidade Portuguesa e residência universitária, antes de acolher o departamento de Botânica. Pelo meio, muita coisa se perdeu ou foi irremediavelmente alterada - como um tecto do escultor Teixeira Lopes que terá desaparecido na década de 1950 -, nunca tendo chegado a beneficiar de uma escadaria central imponente que ligasse os diferentes pisos.

Para contornar o problema, a prumada onde estavam as instalações sanitárias dos vários pisos foi agora ocupada por um elevador panorâmico que possibilita a circulação de pessoas com mobilidade reduzida (foi ainda criada uma nova entrada ao nível dos jardins), tendo também sido introduzido um novo elemento icónico: uma escada em caracol, na qual Nuno Ferrand de Almeida, biólogo e comissário da exposição dedicada a Darwin, vê a evocação da concha de um molusco e da hélice do DNA.

Foram ainda criadas uma recepção e uma cafetaria, bem como novas instalações sanitárias na cave. Quanto ao resto, "o restauro respeita integralmente o que aqui estava", assegura Valentim, que deixou na parede do átrio uma faixa com a pintura anterior, em tom rosado, para estabelecer a ligação com o passado. "No fundo, isto é a devolução da casa à cidade", resume Teresa Andresen.

Para a segunda fase ficam as alterações necessárias à instalação da Galeria da Biodiversidade. Trata-se de um projecto de divulgação científica que, explica Nuno Ferrand de Almeida, cruzará ciência, história, literatura, engenharia, novas tecnologias e programas educativos, e que será objecto de uma candidatura a fundos comunitários.

Haverá, exemplifica o biólogo, um módulo dedicado ao lobo, o qual combinará as observações de Aquilino Ribeiro com a investigação que está a ser feita sobre estes animais. "Hoje, a observação dos lobos faz-se com aparelhos modernos como o GPS, mas exactamente nos mesmos sítios onde o Aquilino os observou", diz Ferrand de Almeida enquanto subimos ao extraordinário zimbório que coroa a casa e permite uma visão panorâmica da barra do Douro até ao mar.

Neste zimbório, e tal como Sophia o descreveu e imaginou, será pendurado e montado um esqueleto de baleia. "Vamos cumprir esse desejo", explica o biólogo.

Lá no alto, Teresa Andresen conta ainda uma lenda familiar segundo a qual existia na casa um ioió com um fio tão grande que chegava dali ao rés-do-chão. "São os fantasmas da família", comenta. A directora do Jardim Botânico já não chegou a frequentar as famosas festas de Natal da casa dos Andresen. Conheceu a casa apenas quando lá teve aulas. "Lembro-me de, quando tinha treze anos, ter passado por aqui com o meu pai e de ele me ter dito que tinha a minha idade quando passou aqui o último Natal. Acho que ele tinha aquilo preparado", recorda. Mas nenhum dos dois deve ter imaginado o que aconteceu depois: que Teresa havia de ser a directora dos jardins de onde irrompeu O Rapaz de Bronze; e que a velha casa viria a recuperar a antiga organização familiar e a encarnar os sonhos de Sophia.