Um tempo de impostores

Entre os autores espanhóis com menos de 40 anos, Ricardo Menéndez Salmón (n. 1971) é um dos mais interessantes. Publicou romances (oito), ensaio, poesia, teatro e crónica. O livro mais recente, "La luz es más antigua que el amor" (2010), faz um "travelling" entre a Peste Negra de 1350 e o 11 de Setembro de 2001, tarefa impossível sem o domínio perfeito dos recursos narrativos. Salmón atingiu o patamar da consagração com a Trilogia do Mal: "A Ofensa", várias vezes premiado e unânimemente considerado o melhor romance espanhol de 2007; "Derrocada" (2008) e "O Revisor" (2009). O terceiro acaba de ser traduzido.A trilogia que "O Revisor" encerra é uma reflexão sobre as raízes do Mal: massacre de inocentes e outros episódios aviltantes da II Grande Guerra ("A Ofensa"); condição humana e bestialidade na cidade imaginária de Promenadia, que é como quem diz, Gijón ("Derrocada") e, a fechar, estupor, mentira e sequelas dos atentados de 11 de Março de 2004 em Madrid: "Quando o primeiro comboio foi pelos ares, derramando sobre as nossas pequenas e esforçadas vidas um aluvião de sangue, cólera e medo, eu [...] corrigia umas provas de 'Demónios' de Fiódor Dostoiévski." Vladimir, o narrador, é revisor literário, ou seja, alguém que sabe que a linguagem cria e modifica a realidade: «Perverter a realidade através da linguagem [...] é uma das maiores conquistas do poder."

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Entre os autores espanhóis com menos de 40 anos, Ricardo Menéndez Salmón (n. 1971) é um dos mais interessantes. Publicou romances (oito), ensaio, poesia, teatro e crónica. O livro mais recente, "La luz es más antigua que el amor" (2010), faz um "travelling" entre a Peste Negra de 1350 e o 11 de Setembro de 2001, tarefa impossível sem o domínio perfeito dos recursos narrativos. Salmón atingiu o patamar da consagração com a Trilogia do Mal: "A Ofensa", várias vezes premiado e unânimemente considerado o melhor romance espanhol de 2007; "Derrocada" (2008) e "O Revisor" (2009). O terceiro acaba de ser traduzido.A trilogia que "O Revisor" encerra é uma reflexão sobre as raízes do Mal: massacre de inocentes e outros episódios aviltantes da II Grande Guerra ("A Ofensa"); condição humana e bestialidade na cidade imaginária de Promenadia, que é como quem diz, Gijón ("Derrocada") e, a fechar, estupor, mentira e sequelas dos atentados de 11 de Março de 2004 em Madrid: "Quando o primeiro comboio foi pelos ares, derramando sobre as nossas pequenas e esforçadas vidas um aluvião de sangue, cólera e medo, eu [...] corrigia umas provas de 'Demónios' de Fiódor Dostoiévski." Vladimir, o narrador, é revisor literário, ou seja, alguém que sabe que a linguagem cria e modifica a realidade: «Perverter a realidade através da linguagem [...] é uma das maiores conquistas do poder."

Escrito a partir das Astúrias como se de uma crónica se tratasse (o narrador "arruma" os acontecimentos de que foi testemunha um ano antes), nem por isso este romance perde tensão dialéctica. Truques de metalinguagem, elipses, envios (Platão, Nabokov, DeLillo, etc.), i.e., material atinente à profissão de Vladimir, não iludem o essencial: "Ninguém, desde que existem ágoras, mentiu tanto como os políticos." Salmón está zangado. Porém, se por vezes a moral turva o juízo (estamos de volta à literatura comprometida), a secura da prosa resiste a boa altura. Palavras suas: "a literatura, por definição, é a fraternidade do detalhe."

Num tempo em que os conceitos de justiça, democracia e liberdade perdem o sentido, o demónio são os outros. Os políticos foram aperfeiçoando a arte da mentira, de modo que "os bons tempos já estão a chegar ao fim há umas quantas primaveras". Corolário: "há-de ir tudo para a merda." Não admira que Heraclito seja chamado à colação.

Para Salmón não há inocentes. Os masacres de Atocha (três bombas), El Pozo del Tío Raimundo (duas), Santa Eugenia (uma) e calle de Téllez (quatro), com o seu cortejo de horror, mortos (191) e feridos (dois mil), interpelam directamente o poder: Aznar, chefe do governo, mentiu. Otegi, líder do Batasuna e "vigário da ETA na arena política", não convenceu ninguém. Naquele dia, centenas de satélites focavam "os seus olhos de silício sobre o coração de Madrid", porque o mundo "tinha parado sobre a sucata dos quatro comboios."

Escrito a dois tempos, o da indignação (Madrid) e o do tédio (algures nas Astúrias), o discurso perde fôlego quando o narrador se perde numa horta, "entre cenouras, morangos e urtigas." O primeiro tem dificuldade em descobrir "o pathos do Mal ao deambular entre os [seus] vizinhos como um deus homérico diante das muralhas de Tróia." O segundo discreteia sobre a profissão de revisor... Verdade que nada disto impede momentos fortes, como sejam as reflexões sobre a orientação cognitiva (a 'Weltanschauung') do líder do Batasuna, um homem que "teria dançado o Deutschland über alles ou o raio da dança da chuva em cima das nossas tumbas." Diria que a dimensão "heróica" convive mal com a crónica literata deste tempo de impostores.

A título de curiosidade refira-se que, além de Salmón, outros escritores espanhóis utilizaram os atentados de Madrid como tema literário: Luis Mateo Díez, "La piedra en el corazón" (2006), Blanca Riestra, "Madrid blues" (2008), Adolfo García Ortega, "El mapa de la vida" (2009) e Manuel Gutiérrez Aragón, "La vida antes de marzo" (2009). Quanto sei, o de Salmón é o único publicado em Portugal.