Mudar é sempre possível

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Dan Bejar libertou-se da tralha indie dos anos de formação e fez o seu álbum mais livre de sempre

É homem de muitos ofícios, o canadiano Dan Bejar. Desde 1995 que tem vindo a lançar álbuns com a designação Destroyer - já lá vão nove, com o novo "Kaputt". Mas não se fica por aí, fazendo também parte de dois grupos bem conhecidos do universo rock indie - os The New Pornographers e os Swan Lake, estes na companhia de Spencer Krug dos Wolf Parade e Carey Mercer dos Frog Eyes.

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É homem de muitos ofícios, o canadiano Dan Bejar. Desde 1995 que tem vindo a lançar álbuns com a designação Destroyer - já lá vão nove, com o novo "Kaputt". Mas não se fica por aí, fazendo também parte de dois grupos bem conhecidos do universo rock indie - os The New Pornographers e os Swan Lake, estes na companhia de Spencer Krug dos Wolf Parade e Carey Mercer dos Frog Eyes.

Tem 38 anos e vive em Vancouver, não muito longe da fronteira com os EUA. Durante anos alimentou-se do espírito alternativo do rock americano. A banda que mais o marcou na adolescência foram os Pavement, e lendo algumas das suas entrevistas do passado percebe-se que a sua existência musical estava em grande parte moldada pelo espírito da independência.

Não quer dizer que na actualidade não seja emancipado, no sentido da liberdade de opções. É-o. Muito mais. Precisamente porque deixou de olhar para o rock indie, como se fosse uma cartilha que tem de ser seguida religiosamente. Deixou de se preocupar com o que poderiam pensar dele. Começou a preocupar-se em ser ele próprio. E "Kaputt", o novo álbum, reflecte-o. É nitidamente um objecto de puro prazer. No limite, parece ser o disco que Dan Bejar sempre desejou fazer, mas ainda não tivera coragem de construir. Demorou ano e meio a ser preparado. Primeiro, em 2009, chegou o single "Bay of pigs", incrível odisseia poética de mais de 12 minutos, que revelou de imediato que o que aí vinha era uma mudança profunda.

Essa canção começava em formato ambiental. Poderia ser Brian Eno.
Depois entrava a voz de Dan Bejar e nova surpresa. Em vez da excitação do rock, uma voz quente, moderada, tranquila, como se estivesse a recitar poesia e não a cantar. Poderia ser David Sylvian.

A voz, intima, dizia "listen, i've been drinkin'/As our house lies in ruin/I don't know what i'm doin", enquanto os sintetizadores iam crescendo, e a tonalidade vocal de Dan Bejar se ia transformando.

Depois existiam alguns arranjos cintilantes que deambulavam por entre o espaço sintético. Poderia ser Ryuichi Sakamoto.

A meio, o tema ganhava dinamismo rítmico, movimentava-se langorosamente. Poderia ser um qualquer pioneiro do deep-house de Chicago, ou os Pet Shop Boys dos primórdios, ou os New Order mais atmosféricos.

Poderia ser muita coisa, e portanto com nenhuma em particular. Aí foi logo perceptível que algo de muito especial se preparava para germinar. E o álbum que agora é lançado confirma-o.

Nem uma coisa nem outra

"Kaputt" é um disco de canções pop elegantes, construído por elegantes mantos electrónicos, guitarras límpidas, retoques jazzísticos, coros femininos e a voz existencialista de Dan Bejar, utilizada de forma monocromática, quase como se fosse apenas mais um instrumento. É a típica obra que será denegrida com o argumento simplista de que soa a pop electrónica dos anos 80. Ou, pelo contrário, enaltecida com o raciocínio igualmente simplista de que "apesar das muitas influências consegue superá-las." Nem uma coisa nem outra. É um disco que não está nesse lugar, respirando uma verdade pouco usual na forma como absorve a desordem à sua volta, sem preconceitos.

Recentemente, em entrevista, quando perguntaram a Dan Bejar o que o tinha influenciado na feitura do disco em termos musicais, em vez de contornar a questão foi taxativo: "Ouvi alguns discos dos Roxy Music, particularmente 'Avalon'. Ouvi alguns discos de David Sylvian, nomeadamente a forma como ele consegue entrelaçar na perfeição sons digitais e elementos do jazz. Ouvi algumas canções dos Pet Shop Boys.

Ouvi, muitas e muitas vezes, alguns discos de Miles Davis. Ouvi Brian Eno e Robert Fripp, ou Jon Hassell. Ouvi 'This is not America' de David Bowie e 'Slave to the rhythm' de Grace Jones. Ouvi Blue Nile, algumas canções dos Prefab Sprout, o disco de Johnny Hartman com John Coltrane. Ouvi Bernard Sumner dos New Order a cantar porque sempre gostei da forma como utiliza a voz. E também Sade, nomeadamente algumas canções de 'Stronger Than Pride'."

Onde param os Pavement, ou os Guided By Voices, outra das suas bandas de cabeceira durante anos? Onde estão os faróis que iluminavam o seu percurso? Como é natural saturou-se deles. Não perderam qualidade. São vividos hoje por Dan Bejar de forma totalmente diferente. Apenas isso. "Durante duas décadas ouvi maioritariamente rock indie ou rock clássico, com muito Bob Dylan e Lou Reed. Nos últimos anos cansei-me. E comecei a ouvir outras coisas, música instrumental, jazz, algumas coisas de música de dança e também coisas que me passaram ao lado na adolescência, como os Style Council. Na verdade, o que aconteceu foi que voltei a ouvir música pelo prazer de ouvir, sem me preocupar com as letras, por exemplo. Às vezes tendia a esquecer-me que uma canção é muito mais do que uma letra. Estava muito enganado."

O que não significa que as letras das canções de "Kaputt" sejam descuidadas. Respiram é, mais uma vez, uma grande dose de liberdade. Bejar permitiu-se escrever realmente o que lhe apeteceu ("I write poetry for myself", canta às tantas em "Kaputt"). Algumas letras contêm piscadelas de olho (há referencias aos New Order ou aos Beatles), outras são simplesmente impenetráveis, parecendo um jogo de corta-e-cola de palavras, outras são dominadas por mulheres (Ava, Jessica, Mary-Jane) e outras resvalam para o romantismo quase anedótico. Não é todos os dias que se ouve alguém cantar, como em "Downtown", "held a candle to the window, then the door/Saw the features of the world Light up/Oh Eva, your face! I was a four leaf clover/I was a red rover on his way over to your place." Mas, depois, milagre, a voz pausada e sóbria de Bejar, em contraste com os coros femininos mais soltos e etéreos, acaba por criar um contraste que funciona na perfeição.

Canção atrás de canção, prova que poderia cantar acerca de tudo o que lhe viesse à cabeça. A sua voz adquire um tom de quase conversa e as canções, apesar de bem definidas, nem sempre apresentam uma estrutura muito convencional. Por mais que exista uma consistência sonora no conjunto dos temas, a verdade é que todos eles têm elementos distintivos. Um trompete aqui. Um som de guitarra mais transparente ali. Uma maior complexidade de arranjos acolá.

Pormenores que não estão lá por acaso. Foram procurados e trabalhados com minúcia: "Queria que o álbum tivesse unidade, quase como se pudesse ser ouvido como uma banda-sonora de um filme sem filme, como muitos dos álbuns de música instrumental que fui ouvindo, de Jon Hassel ou Pat Metheny. Mas depois interessava-me que cada uma das canções tivesse a sua própria identidade."

Agora que o álbum vai chegar aos ouvidos de toda a gente, resta-lhe aguardar para ver o que vai acontecer, enquanto se prepara para uma digressão com uma mini-orquestra de oito músicos. Apesar de não ser um desconhecido, está longe de ser um nome familiar do grande público.

"Kaputt" não o vai transformar numa celebridade. Mas é muito provável que se venha a transformar no disco que irá mudar o percurso de Dan Bejar para sempre. Aliás, já mudou.