Comédia da Decepção
Saudemos o regresso de Otar Iosseliani aos ecrans portugueses, depois de "Jardins en Automne" (de 2006) se ter ficado por sessões avulsas sem nunca chegar, no nosso país, à estreia comercial. Iosseliani é um realizador que os espectadores portugueses podem seguir desde os anos 70 e 80, e houve alturas em que o seguiram com muita atenção - eram outros tempos, mas lembramo-nos bem do pequeno "culto" que, nos anos 80, se gerou em torno de "Os Favoritos da Lua", que aguentou semanas a fio no Quarteto...
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Saudemos o regresso de Otar Iosseliani aos ecrans portugueses, depois de "Jardins en Automne" (de 2006) se ter ficado por sessões avulsas sem nunca chegar, no nosso país, à estreia comercial. Iosseliani é um realizador que os espectadores portugueses podem seguir desde os anos 70 e 80, e houve alturas em que o seguiram com muita atenção - eram outros tempos, mas lembramo-nos bem do pequeno "culto" que, nos anos 80, se gerou em torno de "Os Favoritos da Lua", que aguentou semanas a fio no Quarteto...
Reencontramo-lo em boa altura, não só porque "Chantrapas" é um belíssimo filme mas também porque se trata de um filme de "balanço", ou de uma espécie de resumo da autobiografia profissional do cineasta georgiano. É a história de um jovem realizador que, no seu país natal (uma URSS dada por notações, "gags", rituais desconstruidos), encontra problemas com a censura e com a burocracia ideológica, e parte então, cheio de esperança, para uma carreira no "mundo livre", onde encontra mais problemas e outras censuras e burocracias ideológicas. Que é "autobiográfico" é evidente, na medida em que reproduz o percurso do próprio Iosseliani, que também chegou a um ponto - nos anos 80 - em que se fartou das complicações levantadas pela censura na URSS e passou a fazer os seus filmes em França ("Os Favoritos da Lua" foi, justamente, o seu primeiro filme francês).
Mais ainda, a ironia melancólica - e nunca cínica, nunca ácida - com que Iosseliani faz o relato deste percurso coincide com um dos motivos fundamentais dos seus últimos filmes, o tema da viagem e da decepção no fim do caminho, como se todos os lugares fossem mais ou menos equivalentes e as mesmas coisas se passassem, mais ou menos, em todos os lugares.Iosseliani contou em entrevistas que tinha primeiro pensado contar a história deste eterno rejeitado que é o seu protagonista ("chantera" ou "chantera pas": era assim que os professores de canto italianos contratados pela aristocracia russa davam o seu veredicto sobre o futuro dos jovens pupilos que lhes propunham) sem fazer da personagem um realizador de cinema.
Mas quando se decidiu a servir-se do cinema como meio para a personagem mergulhou em cheio nos jogos de espelhos autobiográficos: as imagens do filme que, nas primeiras sequências, metem o jovem protagonista em trabalhos, são realmente imagens do filme que, nos anos 60, primeiro trouxeram sarilhos a Iosseliani (uma curta-metragem chamada "Sapovnela": viam-se planos de flores a serem esmagadas por tractores e a censura, desconfiada de alguma metáfora desagradável, convocou Iosseliani para lhe perguntar o que significavam as flores e o que significavam os tractores). É preciso dizer que não há nenhuma ferocidade em Iosseliani, é o cineasta mais compassivo do mundo, e a descrição das reuniões com os burocratas e os censores está cheia de uma humanidade a milhas de qualquer maniqueísmo - os apartes ("na casa de banho toda a gente diz a verdade"), o desespero do funcionário que aconselha o protagonista a exilar-se. Ou por outra, há ferocidade, mas ela não dirige aos homens, que são todos, os que trabalham para o regime e os que tentam contorná-lo, igualmente desgraçados.
E é o mesmo na segunda parte, inúmeras reuniões, inúmeros conselhos, inúmeras dificuldades. Aparece Pierre Étaix, que já tínhamos visto nos "Jardins d''Automne" e é o mais reconhecível rosto de "Chantrapas", talvez para reforçar o laço "familiar" que liga o cinema de Iosseliani ao cinema de Tati e do próprio Étaix. Quase tudo acontece em planos gerais, com várias personagens no quadro, e Iosseliani cultiva o "gag" minimalista e nada sublinhado. Como cultiva - espécie de "poesia de exilado" - o que cultivou desde sempre: o prazer simples (a música, as velhas canções georgianas, o vinho) como trégua no meio de todas as dificuldades. No fundo, é aquilo que fica. E por aí se fica "Chantrapas", de maneira belíssima (a miúda e o acordeão), numa tristeza tão doce que deixa de ser tristeza.
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