Ironia "highbrow"
Entre nós, Jonathan Ames (Nova Iorque, 1964) é praticamente desconhecido. Autor de "Bored to Death", popular série de televisão feita a partir de um dos seus contos, publicou romances, ensaios, uma antologia de memórias transexuais ("Sexual Metamorphosis", 2005) e até uma autobiografia gráfica, sobre a dependência do álcool, ilustrada por Dean Haspie. Longe de reunir consenso, tem sido elogiado e execrado com igual fervor desde que publicou "I Pass Like Night" (1989). Mesmo em Manhattan, esta mistura de Iggy Pop com P. G. Wodehouse soa desconcertante. Decerto não por acaso, define-se a si mesmo como "probably the gayest straight writer in America".
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Entre nós, Jonathan Ames (Nova Iorque, 1964) é praticamente desconhecido. Autor de "Bored to Death", popular série de televisão feita a partir de um dos seus contos, publicou romances, ensaios, uma antologia de memórias transexuais ("Sexual Metamorphosis", 2005) e até uma autobiografia gráfica, sobre a dependência do álcool, ilustrada por Dean Haspie. Longe de reunir consenso, tem sido elogiado e execrado com igual fervor desde que publicou "I Pass Like Night" (1989). Mesmo em Manhattan, esta mistura de Iggy Pop com P. G. Wodehouse soa desconcertante. Decerto não por acaso, define-se a si mesmo como "probably the gayest straight writer in America".
Podemos agora ler a tradução que André Chêdas fez de "O Acompanhante", romance sobre as relações de Henry Harrison, dramaturgo falhado que vive de acompanhar mulheres da alta sociedade de Nova Iorque, e Louis Ives, docente de um colégio privado de Princeton que perde o emprego no dia em que é apanhado a vestir o sutiã de uma colega na sala dos professores. Fica por esclarecer se a punição é devida ao arremedo de travestismo ou à erecção de Louis: "A protuberância conseguiu a proeza de confirmar a culpa dos meus actos, de forma mais contundente do que o próprio olhar, já de si claramente sexual..." Por momentos, julgamos estar a ler Augusten Burroughs. Com o fluir da intriga, a ilusão desfaz-se. Burroughs é literal, lá onde Ames prolonga a "respiração" da narrativa clássica.
"O Acompanhante" são duas vidas cruzadas: a de Henry, vergado ao peso das idiossincrasias; e a de Louis, em trânsito entre os dois lados de um espelho. Concluído em 1996, o livro andou em bolandas durante dois anos, de editor em editor, tendo, ao cabo de 20 rejeições, sido publicado em 1998 pela Scribner. Shari Springer Berman adaptou-o ao cinema, com Kevin Kline (Henry) e Paul Dano (Louis) nos protagonistas. Tarefa inglória, na medida em que a estrutura semântica resiste à transposição de suporte. Se, por um lado, o cortejo de reflexões auto-depreciativas do narrador potencia o "overacting", a trama dos envios (de Freud a Scott Fitzgerald, sem esquecer Bertie Wooster) apenas é perceptível na escrita precisa de Ames.
A história mistura elementos autobiográficos, deixando adivinhar o futuro interesse de Ames pela problemática transexual: "Ao ver-me vestido de mulher em toda a minha fealdade, tinha aprendido a apreciar e valorizar a beleza destas raparigas e o trabalho a que as obrigava. Só os homens poderiam ter uma presença de espírito tão obstinadamente direccionada para se quererem fazer passar por mulheres."
Por razões difíceis de explicar, não é comum associar Ames aos grandes nomes da tradição literária judaica, como Asimov, Bellow, Roth e outros. Porém, poucos livros como este descrevem com tanta subtileza o carácter escorregadio e as ambiguidades dessa tradição. Profundamente americano (no sentido em que identificamos Jerry Seinfeld como arquétipo), Ames calibra o discurso com secura e sabedoria: "Voltei à fotografia dele na bicicleta. Era perfeito. [...] Tentei olhar com profundidade para os belos olhos do rapaz da fotografia. A nossa idade não devia ser tão diferente quanto isso. Queria avisá-lo do que aí vinha e comecei a chorar. Chorava porque aquele rapaz não fazia ideia daquilo em que se ia tornar, que cinquenta anos mais tarde estaria a dormir num decrépito sofá no meio de um quarto pouco menos que imundo. Chorei pelo que acontecera à vida daquele jovem e chorei porque o velho em que esse jovem se tornou me tinha abandonado."
Ames é divertido sem ser pateta, irónico, mordaz, discretamente amargo, neurótico, culto mas não pedante. Parece contraditório, mas consegue ser tudo isto ao mesmo tempo. A dosagem homeopática ajuda. Como alguém disse, o "entertainer" nato.