Aprendemos que não era uma loucura descriminalizar a droga

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A descriminalização do consumo de drogas resultou de um processo único e irrepetível Foto: Mafalda Melo/arquivo

É mais do que provável que da herança política de José Sócrates não venha a constar o papel determinante que exerceu na descriminalização da posse e consumo de droga em Portugal. Mas a verdade é que sem o então ministro adjunto do primeiro-ministro, com as tutelas da Toxicodependência, Juventude e Desporto, talvez ainda acreditássemos que o abuso de drogas se vencia dando as mãos e largando com regularidade uma razoável quantidade de endorfinas.

A descriminalização do consumo de drogas resultou de um processo único e irrepetível. Entre 1999 e 2001, uma comissão de peritos nomeada pelo Governo e dirigida por Alexandre Quintanilha elaborou, com base em fundamentos científicos e longe do moralismo que tanto tolhe o discurso ideológico, uma corajosa proposta de estratégia nacional de luta contra a droga.

A estratégia transformou-se em política aprovada em Assembleia da República e foi esta talvez a mais extravagante decisão do segundo Governo de António Guterres. Sócrates até tentou replicar o método no processo de co-incineração, mas essa ainda se revelou uma questão mais fracturante.

Consumo não disparou

Sim, é verdade: há um antes e um depois do dia 1 de Julho de 2001, data da entrada em vigor de uma lei que deixou de condenar a penas de prisão pessoas que consumiam substâncias que eram consideradas ilícitas. Sabemos hoje que as profecias de então não se concretizaram e que, a despeito do que muitos temiam, o país não se transformou numa Meca para os consumidores de droga.

Aprendemos nesta década que as políticas na área da droga não devem ser gizadas em função de posições preconceituosas e dogmáticas. Passámos a aceitar que a questão sanitária se sobrepunha à questão jurídica; que as prisões estavam repletas de pessoas que continuavam a consumir droga ao ritmo com que se propagavam as doenças infecciosas. Nas prisões e fora delas.

Em Dezembro de 2004, Hernâni Vieira, director do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, dizia o que a avestruz se recusava a escutar: "O problema da droga nas prisões resolve-se quando se resolver o problema da droga fora das prisões." E acrescentava, para desagrado dos mais irrealistas: é possível reduzir o seu consumo, mas acabar com a droga não passa de um sonho bem-intencionado.

Sim, aprendemos que o que mais valia era a expansão dos programas de substituição, após um conturbado período de diabolização da metadona; que as políticas de redução de riscos e de minimização de danos eram garantia de mais informação por parte dos consumidores e de menos custos para todos; que as políticas de prevenção deveriam ser cada vez mais sérias e profissionais.

A derrota do proibicionismo

Aprendemos, nestes últimos anos, que a insistência no proibicionismo não teve quaisquer resultados e que era possível equilibrar a redução da procura com as tentativas repressivas de diminuição da oferta; ou que era possível baixar o número de casos de infecções e de mortes por causa da utilização de droga.

Tudo isto teve a particularidade de diminuir o número de reclusos relacionados com posse e consumo de droga; de contribuir para baixar a criminalidade que lhe estava associada nos anos anteriores; e, desta forma, contribuir para um clima social bem mais pacífico.

O balanço, hoje, quase dez anos após a entrada em vigor desta lei, é, obviamente, positivo. No início do século, o país ostentava excessivos problemas de consumo de opiáceos e de infecções e mortalidade associada nos relatórios da agência europeia das drogas (cuja sede Portugal recebeu contrafeito, como se fosse o corolário do seu trajecto junkie na década de 90, mas cujo conhecimento coligido se revelou muito útil).

O elogio europeu

Alguns anos depois, a Europa passou a elogiar o que começou a ficar conhecido com o modelo português - certamente com algum exagero - e que é, neste caso, a assunção do paradigma sanitário, associado a uma contra-ordenação, espécie de recriminação administrativa simbólica, da autoria das comissões de dissuasão.

Mas esse tão louvado modelo está por concluir pelas mesmas razões de sempre. Tem sido uma litania preconceituosa a impedir a existência de salas de injecção assistida, como as que existem em vários parceiros europeus, ou a resistir à adopção de programas de prevenção e de redução de riscos nas prisões.

Numa década, o consumidor de drogas passou de criminoso a doente e talvez não falte muito até que seja encarado como cidadão. O aparecimento de associações de consumidores, como a que a Apdes, uma organização não governamental, criou recentemente, talvez seja o que agora nos falte aprender. Agora que até já sabemos onde comprar drogas às quais chamamos legais.

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É mais do que provável que da herança política de José Sócrates não venha a constar o papel determinante que exerceu na descriminalização da posse e consumo de droga em Portugal. Mas a verdade é que sem o então ministro adjunto do primeiro-ministro, com as tutelas da Toxicodependência, Juventude e Desporto, talvez ainda acreditássemos que o abuso de drogas se vencia dando as mãos e largando com regularidade uma razoável quantidade de endorfinas.

A descriminalização do consumo de drogas resultou de um processo único e irrepetível. Entre 1999 e 2001, uma comissão de peritos nomeada pelo Governo e dirigida por Alexandre Quintanilha elaborou, com base em fundamentos científicos e longe do moralismo que tanto tolhe o discurso ideológico, uma corajosa proposta de estratégia nacional de luta contra a droga.

A estratégia transformou-se em política aprovada em Assembleia da República e foi esta talvez a mais extravagante decisão do segundo Governo de António Guterres. Sócrates até tentou replicar o método no processo de co-incineração, mas essa ainda se revelou uma questão mais fracturante.

Consumo não disparou

Sim, é verdade: há um antes e um depois do dia 1 de Julho de 2001, data da entrada em vigor de uma lei que deixou de condenar a penas de prisão pessoas que consumiam substâncias que eram consideradas ilícitas. Sabemos hoje que as profecias de então não se concretizaram e que, a despeito do que muitos temiam, o país não se transformou numa Meca para os consumidores de droga.

Aprendemos nesta década que as políticas na área da droga não devem ser gizadas em função de posições preconceituosas e dogmáticas. Passámos a aceitar que a questão sanitária se sobrepunha à questão jurídica; que as prisões estavam repletas de pessoas que continuavam a consumir droga ao ritmo com que se propagavam as doenças infecciosas. Nas prisões e fora delas.

Em Dezembro de 2004, Hernâni Vieira, director do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, dizia o que a avestruz se recusava a escutar: "O problema da droga nas prisões resolve-se quando se resolver o problema da droga fora das prisões." E acrescentava, para desagrado dos mais irrealistas: é possível reduzir o seu consumo, mas acabar com a droga não passa de um sonho bem-intencionado.

Sim, aprendemos que o que mais valia era a expansão dos programas de substituição, após um conturbado período de diabolização da metadona; que as políticas de redução de riscos e de minimização de danos eram garantia de mais informação por parte dos consumidores e de menos custos para todos; que as políticas de prevenção deveriam ser cada vez mais sérias e profissionais.

A derrota do proibicionismo

Aprendemos, nestes últimos anos, que a insistência no proibicionismo não teve quaisquer resultados e que era possível equilibrar a redução da procura com as tentativas repressivas de diminuição da oferta; ou que era possível baixar o número de casos de infecções e de mortes por causa da utilização de droga.

Tudo isto teve a particularidade de diminuir o número de reclusos relacionados com posse e consumo de droga; de contribuir para baixar a criminalidade que lhe estava associada nos anos anteriores; e, desta forma, contribuir para um clima social bem mais pacífico.

O balanço, hoje, quase dez anos após a entrada em vigor desta lei, é, obviamente, positivo. No início do século, o país ostentava excessivos problemas de consumo de opiáceos e de infecções e mortalidade associada nos relatórios da agência europeia das drogas (cuja sede Portugal recebeu contrafeito, como se fosse o corolário do seu trajecto junkie na década de 90, mas cujo conhecimento coligido se revelou muito útil).

O elogio europeu

Alguns anos depois, a Europa passou a elogiar o que começou a ficar conhecido com o modelo português - certamente com algum exagero - e que é, neste caso, a assunção do paradigma sanitário, associado a uma contra-ordenação, espécie de recriminação administrativa simbólica, da autoria das comissões de dissuasão.

Mas esse tão louvado modelo está por concluir pelas mesmas razões de sempre. Tem sido uma litania preconceituosa a impedir a existência de salas de injecção assistida, como as que existem em vários parceiros europeus, ou a resistir à adopção de programas de prevenção e de redução de riscos nas prisões.

Numa década, o consumidor de drogas passou de criminoso a doente e talvez não falte muito até que seja encarado como cidadão. O aparecimento de associações de consumidores, como a que a Apdes, uma organização não governamental, criou recentemente, talvez seja o que agora nos falte aprender. Agora que até já sabemos onde comprar drogas às quais chamamos legais.