São Bernardo à espera de Lula, o filho pródigo

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Lula da Silva com operários metalúrgicos em São Bernardo, em 1979 Foto: Clovis Cranchi/Reuters

A casa de Lula não fica em nenhuma das cidades que dão nome ao Brasil. É o último andar de um prédio alto na cintura industrial conhecida como ABC.

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A casa de Lula não fica em nenhuma das cidades que dão nome ao Brasil. É o último andar de um prédio alto na cintura industrial conhecida como ABC.

A de Santo André. B de São Bernardo do Campo. C de São Caetano. Três cidades-cintura no Sul de São Paulo.

A maior é São Bernardo, e foi aqui que, em 1966, chegou um jovem operário de 20 anos à procura de emprego. Chamava-se Luis Inácio da Silva, era torneiro mecânico, deixara a pobreza do Nordeste em criança, vivia com a mãe e muitos irmãos em São Paulo, longe do pai alcoólatra.

Em São Bernardo, estavam grandes fábricas de montagem de automóveis, Volkswagen, Ford, Scania, Toyota, Mercedes-Benz, Karmann Ghia. Ainda estão, e vamos encontrá-las a almoçar no restaurante do Gijo, onde Lula sempre vai quando cá está.

Mas para se ter uma ideia do que é esta paisagem talvez seja melhor partir com o leitor de São Paulo.

Primeiro há que apanhar aquela linha de metro que vai até Jabaquara, extremo sul da rede, e sair na última estação. Daí saem os autocarros Diadema-Piraporinha-São Bernardo. A sofisticação do centro de São Paulo dá lugar a barracos de tijolo, graffiti e bancos partidos, rapazes de boné encolhidos na chuva. Uma súbita onda fria abateu-se sobre esta zona do Brasil e está quase um dia de Inverno. Seguem-se uns longuíssimos 45 minutos entre vias rápidas e fábricas, prédios e armazéns.

Ao todo, desde a Avenida Paulista, leva quase hora e meia de transportes públicos.

Chegando a São Bernardo, o prédio da Prefeitura é uma torre antiquada do outro lado de uma passagem aérea. Num pequeno gabinete lá no alto está o assessor Raimundo Silva. Trabalha sob o olhar de um Lula todo sorridente e de faixa ao peito, na sua fotografia oficial.

Raimundo também veio de Pernambuco, como o Presidente e tanta gente aqui, filhos de nordestinos pobres. É um homem exuberante, logo a abrir sites para mostrar aquele documentário de Eduardo Coutinho sobre os peões das greves de 1979-80 no ABC, ou seja, os operários que as fizeram e continuam a ter uma vida operária.

Como os irmãos de Lula: "Todos vivem de forma muito humilde." Os mais conhecidos são "Frei Chico" (assim conhecido por causa da careca em forma de frade), que mora em São Caetano, e Vavá, que mora em São Bernardo. Raimundo telefona-lhe, para apresentar a repórter portuguesa, mas Vavá declina, cansado de jornalistas.

Neste exacto momento, Lula está reunido com todos os seus ministros e ex-ministros, para fazer o balanço de oito anos de Governo. É por isso que o prefeito Luís Marinho, chefe de Raimundo, hoje está ausente de São Bernardo: foi chamado a Brasília, como ex-ministro do Trabalho.

À mesa com Gijo

O cartão diz "Gijo's - Chuleta Paulista desde 1984". É um daqueles restaurantes que à hora de almoço se enchem de trabalhadores, num bruá geral de comezaina e gargalhada. Gijo, o genro, a filha e várias empregadas correm de uma mesa para a outra com potezinhos de feijão a ferver, e travessas de arroz, carne, farofa, salada. A mulher de Gijo controla as operações na cozinha. Um negócio de família, 150 refeições diárias.

As paredes estão cheias de fotografias a preto e branco, incluindo várias de Lula com Gijo, e uma foto oficial de Lula dedicada: "Para o querido Gijo, um abraço."

Gijo é um homem pequenino, de pêra, sorridente e eléctrico.

"Aquele pessoal que saiu era da Toyota e da Mercedes-Benz, e aqueles são da termomecânica", aponta ele, quando as coisas acalmam e se pode sentar enfim à mesa.

Mas logo vai buscar uma rapariga à mesa do lado: "Esta é a Renata, assessora da Scania, porque a primeira greve coordenada por ele foi lá, em 1979!" Claro que "ele" é Lula.

A encantadora Renata deixa o seu cartão e volta à chuleta.

Gijo respira fundo, ganha fôlego. "Aqui é um pólo de encontro de metalúrgicos. O dono deste prédio é de Portugal, de Coimbra, eu alugo há 27 anos."

Está com 68. Nasceu em Itaim-Bibi, bairro central de São Paulo, e veio para São Bernardo uns anos antes de Lula. "Trabalhei como cobrador de ónibus, balconista e metalúrgico na Karmann Ghia."

E vai buscar os seus álbuns. Porque Gijo, este pequeno anfitrião, é homem de grande disciplina, e arquivou cada pedacinho de papel relativo a Lula, recortes de jornal, fotografias antigas, folhetos. Ouro, para um historiador.

"Montei isto com o Jair, da Volkswagen", explica ele, folheando o primeiro álbum. Aparece logo Lula a beijar uma bandeira. "Fui eu que dei para ele no primeiro mandato, e avisei: "Lula, a nação está em suas mãos." Foi uma grande emoção, uma dádiva de Deus. Fomos para a porta da casa dele, uma grande festa."

Lula aos 17 anos, pela primeira vez de gravata. Lula de barba e cabelo bem preto. Lula levado em braços, na maré dos grevistas. Lula entre artistas. "Aqui tem Vinicius de Moraes!" Lula de barco no Rio São Francisco. Lula com a equipa de futebol do sindicato. "Era centro-avante." Lula abraçado a Gijo e amigos. "Esse daqui já morreu. Quando o Lula soube, veio para o enterro dele." Lula no primeiro casamento, com Lurdes, irmã do melhor amigo de infância. "Ela morreu no parto com a criança", comove-se ainda Gijo. Depois Lula namorou uma enfermeira, de quem teve uma filha, e depois encontrou Marisa, que já tinha um filho, e com que teve mais três. Hoje é a Dona Marisa, primeira dama. "Era amiga nossa, lá do bairro. Conheci o Lula no Sindicato dos Metalúrgicos em 1969 e fomos pegando aquela amizade. Ajudámos ele no caminho para presidente do sindicato, nasceu o PT, ajudámos a fazer folhetos, abaixo-assinado. Ele falava: "Nós temos de ter um representante em Brasília! Aí foi candidato a deputado. E depois surgiu a ideia dele ser candidato a Presidente. Três vezes ele perdeu."

Nas outras duas ganhou.

Gijo continua a folhear o álbum: "Eu e ele lá em Brasília, no Planalto..." Com um mapa-múndi por trás. "Ele é o povo, porque está sempre junto com o povo. Pode ser um aniversário de outra facção, ele vai e cumprimenta todos, e abraça. Onde ele vai, ele junta."

Quando estão juntos, de que falam? "De futebol. Como está a família. Ele pergunta pelos companheiros antigos. Me chama de "Topo Gigio". Quando ele fala "Topo Gigio, vem cá, que eu preciso falar com você", aí, nós vamos para a luta, para fazer campanha."

Dia 1 de Janeiro, Gijo vai colocar uma faixa no carro a desejar boas-vindas, porque, logo a seguir à cerimónia da posse de Dilma Rousseff, Lula voa para São Bernardo e os amigos vão esperá-lo à porta de casa.

E depois? "Ele vai andar pelo Brasil e pelo mundo. Acho que não vai voltar a candidatar-se. Lula é que nem Pelé. Pelé foi o maior atleta e Lula o melhor Presidente. O Lula veio com a determinação de Deus para colocar esse país maravilhoso em frente. O Pelé parou e o Lula também vai parar."

Casa e sindicato

Gijo mete-se no carro para mostrar a casa de Lula. Passamos pela Scania, onde os trabalhadores estão sentados à espera de transporte. "Nunca se produziu tanto automóvel como agora, o Brasil não liga para a crise."

Numa rua em declive, duas torres de apartamentos ao lado de um hospital. "A casa do Lula é aquela lá, o 12.º", aponta Gijo. Um terraço com plantas. "Dona Marisa gosta." No terraço de baixo, um Pai Natal pendurado. Na entrada, grades, como em quase todos os prédios no Brasil. Um prédio banalíssimo.

E Gijo deixa a repórter na sede do PT, onde o presidente actual vai receber o PÚBLICO. "Esta é a primeira sede do PT no Brasil", explica a jovem Shirley, secretária da presidência, enquanto o presidente não chega. "Os próprios militantes construíram, incluindo o Lula." No site do PT/São Bernardo, há vídeos que mostram isso, o líder sindical Lula a carregar cimento.

Chega o presidente, Wanderley Salatiel. As circunstâncias atrasaram-no: o prefeito acabou de perder a câmara para o PSDB. Uma derrota histórica para o PT, diz Wanderley, contrafeito, mas sem perder a cortesia. Quer mesmo falar de Lula, que conhece desde 1979.

"Eu era cortador de cana no interior de São Paulo." Trabalho duríssimo, que dá cabo da saúde. "Depois arrumei emprego numa lanchonete aqui e foi quando estourou o movimento das greves. O Lula me despertou uma coisa que nem sei explicar. Hoje é fácil fazer movimento, mas naquele tempo não. Ele enfrentou o regime militar com muita coragem e inteligência, e eu falei: "Esse cara não é normal." Quantas vezes eu vi o helicóptero do exército com o fuzil apontado à cabeça do Lula. Ele nunca se rebaixou. Foi aí que comecei a acompanhá-lo. E aqui onde você está é que nasceu o PT. O Lula com o cigarro na boca, esparramando o concreto..."

Na noite do dia 1, lá estará Wanderley à porta de Lula, e depois está a ser preparado "um grande evento mesmo, provavelmente no campo onde aconteceram as greves".

Tal como Gijo, este líder do PT não crê que Lula se recandidate em 2014. "O projecto é para que Dilma governe oito anos. O próprio Lula já disse isso. Depois, não sei."

A parede está coberta por uma fotografia gigante de Lula no meio de uma multidão, com um menino negro esticado por cima das cabeça, a fazer-lhe uma festa. "Isso não é montagem, não, aconteceu na Baía."

O amor de Zelinha

Nas imagens históricas das greves no ABC, aparece sempre o Sindicato dos Metalúrgicos, com os operários em assembleias gerais, e mesmo acampados dias, cercados pelo exército.

O edifício é o mesmo, nesta esquina de São Bernardo, onde o actual presidente do sindicato, Sérgio Nobre, de 45 anos, agora mostra a sala da presidência, com o retrato de Lula, como se mais ninguém se tivesse voltado a sentar ali: "A cadeira dele está exactamente onde estava." E apontando as janelas: "Não tinha estes prédios e daqui ele podia ver a maior empresa automóvel de São Bernardo, a Volkswagen. O Lula no movimento sindical é que nem Pelé. Por mais brilhante, não vai aparecer outro. A gente vive dizendo que somos vice-presidentes, porque presidente é ele."

Subimos ao terceiro andar, onde aconteciam as assembleias gerais, e os operários chegaram a dormir em piquetes. Centenas de cadeirinhas voltadas para um palco, uma galeria por cima. "A única coisa que mudou foi essa tela. Antigamente era um pano que descia para as projecções."

No piso térreo está Zelinha, a vender camisetas do PT e da transição Lula-Dilma: "Valeu Lula!", "Bem-vinda Dilma!", "Dilma, guerrilheira não mais, guerreira sempre!", "Lula para sempre, nosso companheiro presidente!", "Sem medo de ser mais feliz!"

Está com 61 anos, Zelinha, pequena e risonha, e foi com ela que cresceram os filhos de Lula. Já era funcionária do sindicato quando ele chegou, "muito gente boa, muito companheiro, muito humilde". Começou a tomar conta dos filhos, além da faxina da casa. "Trabalhava aqui à tarde e de manhã ia lá dar uma força a casa dele. Era uma casinha muito humilde. Contando com o Marcos, que é filho da Marisa, tinha três crianças e depois veio o caçula, Luís Cláudio, que eu cuidei desde o umbigo. O Marcos é que sempre puxou mais ao pai que não é de sangue. Então eu arrumava a casa, e a Marisa cuidava do almoço e da roupa."

Depois houve o momento em que Lula foi preso pela ditadura, 31 dias. "Foi complicado. Eu chegava lá em casa às seis da manhã e saía à uma da tarde. Era eu e o Frei Betto cuidando das actividades humanitárias, das reuniões, e de dar apoio à família."

O contraponto desse momento, décadas depois, foi a eleição de Lula: "Era tudo o que a gente queria na vida. Ele era um peão assim, viu?" Aponta para um rapaz de t-shirt e jeans. "O Lula era desse jeito, simplezinho, mas nem tinha jeans, era calça de brim, e ainda arregaçava para não sujar, porque só tinha uma. Hoje tem tanta roupa que nem sabe o que tem, mas é o mesmo Lula humilde. Aquilo é um abençoado de Deus. Tudo o que ele pede, diz: "Por favor, querida.." Se pede a um companheiro: "Por favor, querido..." Isso é muito importante. Geralmente, as pessoas têm vergonha de falar "por favor". Ele é especial. O pouco que mudou é não estar no nosso meio."

Quando vem, vai sempre falar com ela. No último comício da campanha, abriu falando dela. ""Tão vendo a Zelinha lá, gente?"", imita Zelinha. ""Conheço ela desde os anos 70. Era faxineira do sindicato. Namoradeira, hiii, não vou nem falar..." É como se fizesse uma higiene mental. Porque convive com tanta gente chique que quando chega perto da gente quer fazer uma terapia."

E não vai ficar deprimido quando deixar o poder?

"Não, porque fez tudo o que queria", acredita Zelinha. "No dia 1, vou à casa dele levar um abraço e um beijo, falar tudo o que não pude quando ele era Presidente." Na parede, há todo um mural de fotografias de Zelinha com Lula. "Ele ainda valoriza a minha bodeguinha..."

Voltando a sair de ónibus, sucedem-se as igrejas evangélicas como a Igreja Mundial do Poder de Deus, que anuncia "Terça-feira do Milagre Urgente".

Tem um milhão de habitantes, São Bernardo. Uma cintura maior que Lisboa.

- Amanhã: Lula x Imprensa, no fim das contas