Quando a China desceu ao inferno

O regime chinês chama-lhe ainda um desastre natural. O historiador britânico Frank Dikottër assegura que foi um dos maiores assassínios em massa da história da humanidade. O Grande Salto em Frente fez em quatro anos pelo menos 45 milhões de mortos, diz. E só teve um protagonista: Mao Tsetung.

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Nas fábricas, os operários trabalhavam em condições desumanas Bettmann/Corbis

É preciso ir buscar os episódios mais negros da história do século XX para haver possíveis comparações com o que aconteceu na China entre 1958 e 1962: o gulag de Estaline, o holocausto de Hitler, o genocídio de Pol Pot.

O balanço das vítimas de toda a Segunda Guerra Mundial é de 60 milhões. O regime de Mao Tsetung foi rápido e em menos tempo matou à fome, por tortura ou homicídio, 45 milhões; foi como o genocídio do Khmer Vermelho multiplicado por 20, defende Dikottër.

Mas ao contrário dos outros episódios, as verdadeiras dimensões do Grande Salto em Frente continuam a ser muito pouco conhecidas, escreve o historiador. O livro Mao"s Great Famine - The history of China"s most devastating catastrophe 1958-1962 (A Grande Fome de Mao - história da catástrofe mais devastadora da China), publicado em Setembro pela Walker & Company, é ilucidativo. Durante aqueles anos, “a China desceu ao inferno”.

A abrir, a frase do “Grande Timoneiro": “A revolução não é um jantar de convívio.”

Os campos da morte

Em 1957, Mao determinou que a China teria 15 anos para utrapassar o Reino Unido, uma das grandes potências industriais. “Este ano, o nosso país produziu 5,2 milhões de toneladas de aço... Em 15 anos produziremos entre 30 e 40 milhões de toneladas”, anunciou o líder. Começava o Grande Salto em Frente, escreveu Dikottër.

A China deveria caminhar com duas pernas ao mesmo tempo, isto é, desenvolver a indústria e a agricultura em simultâneo, empenhada tanto na pequena indústria como na pesada.

O “salto” começou com projectos hídricos para irrigar as terras áridas do Norte e conter as grandes inundações do Sul. “Por toda a China, dezenas de milhões de agricultores juntaram-se a projectos de irrigação”, escreve. “Em Janeiro de 1958, uma em cada seis pessoas estava a escavar terra.” Em alguns locais do país, um terço da população estava de pá na mão. Milhões e milhões foram alimentar as fornalhas para fundir ferro.

Os sinais da fome foram evidentes muito cedo. Os agricultores foram arrastados para os sistemas de irrigação, em trabalho escravo com pouca comida e sem qualquer assistência médica. Morria-se de exaustão ou malnutrição. A população de uma localidade na província de Gansu chamava a estas zonas “campos da morte”.

O importante era conseguir cumprir os objectivos traçados pelo regime. “Todo o país se tornou num universo de normas, quotas e metas às quais era impossível escapar”, lê-se.

Se o que valia era dar números, quando não os havia inventavam-se. Atingiram-se recordes na produção de arroz, algodão, trigo, amendoim. As colheitas no final de 1958 duplicaram as do ano anterior. Em números. “A China era um imenso palco de teatro”, contaria um responsável que acompanhava Mao nas suas visitas pelo país.

Os agricultores deixaram de ser vistos como tal. “Todos são soldados”, proclamou. E foi com directivas militares que se organizou a vida quotidiana de 500 milhões de chineses.

Os primeiros sinais da fome apareceram logo em 1958. Mas no ano seguinte era já generalizada,escreve Dikottër. E apesar de muitas omissões, “Mao recebeu vários relatórios dando conta da fome, doenças e abusos vindos de todos os cantos do país”.

Sem travões

Alguém poderia ter travado o Grande Salto em Frente? “Só um homem, que era Mao Tsetung, e ele estava determinado a avançar”, responde Dikottër ao P2. “Os seus colegas, os números dois, três, poderiam, mas estavam demasiado receosos, ou na ignorância. Toda a liderança alinhou.” No livro, o historiador especifica: “[Mao] nunca tinha conseguido vencer se Liu Shiaoqi e Zhu Enlai, os dois mais poderosos a seguir a ele, tivessem actuado contra si.”

Houve alguma oposição inicial de um ou outro responsável, mas também purgas exaustivas em todos os níveis do partido. A necessidade de ficar no poder, ou evitar a morte, falou mais alto.

Os sobreviventes entrevistados pela equipa de Dikottër (que colocou locais a entrevistar locais em vários pontos da China) contavam sempre a mesma história: “Sabíamos da situação, mas não ousávamos dizer nada. Se disséssemos, éramos espancados. O que poderíamos fazer?”

“O regime destruiu sistematicamente todas as organizações fora do Partido Comunista Chinês (PCC), a igreja, a sociedade civil, o Estado de direito, até as famílias”, garante o historiador. “Como se pode organizar uma oposição se não há absolutamente nada onde a apoiar? Em 1961 houve muitas rebeliões, mas nada que as conseguisse manter de pé.”

Quando compreendeu a extensão dos danos, Liu Shiaoqi acabou por deter o Grande Salto, e em 1962 veio dizer que “um desastre com mão humana” avassalou a China. Morreu pouco depois às mãos dos guardas vermelhos. “Para ficar no poder, Mao teve de virar o país de pernas para o ar com a Revolução Cultural”, escreve Dikottër.

Um período de boa vontade

Até agora, os historiadores têm contado com as estatísticas oficiais, incluindo os censos de 1953, 1964 e 1982 para chegar ao número de mortos provocados pelo Grande Salto em Frente, concluindo algo entre os 15 e os 32 milhões, dependendo das investigações.

As conclusões de Dikottër vão muito para além disso. Como? Porque antes dos Jogos Olímpicos de Pequim de 2008 as autoridades chinesas enviaram “sinais de boa vontade” e decidiram abrir alguns arquivos. Este professor da Unversidade de Hong Kong, que estudava sobretudo os anos que antecederam a revolução comunista de 1949 (quando o PCC assumiu o poder, derrubando os nacionalistas), decidiu aproveitar essa janela, afirma na entrevista telefónica. E durante seis meses, diluídos ao longo de quatro anos, espreitou para milhares e milhares de páginas.

“Compilei os números que encontrei - através de relatórios de responsáveis da segurança pública, de relatos de famílias, etc. - e comparei-os com as estatísticas oficiais”, explica. “Geralmente estimava-se em 30 milhões, mas os meus números apontam para mais 15 por cento, pelo menos. Por isso eu digo que morreram pelo menos 45 milhões.” E “desnecessariamente”, escreveu no livro.

O número é surpreendente, como já eram aqueles avançados anteriormente, explica ao P2. “Quarenta e cinco, 30 ou 15 milhões é sempre supreendente. É um número no papel que parece sempre extraordinário, uma escala tão grande de destruição que em nenhum dos casos eu consigo lidar bem com isso. Não consigo imaginar 45 milhões de vítimas, como não consigo imaginar 15 milhões.”

A palavra “fome” pode induzir em erro. Neste desastre nem todos morreram por as políticas catastróficas do regime terem destruído a produção agrícola. Cerca de 2,5 milhões foram vítimas de assassínio: “Coacção, terror, violência sistemática, foram os pilares do Grande Salto em Frente”, lê-se.

Também houve uma destruição de habitações sem precedentes. Mais de um terço de todas as casas do país foram arrasadas para criar fertilizantes, construir cantinas, alargar estradas, “ou simplesmente para punir os seus ocupantes”.

“É difícil estimar o quanto foi destruído”, escreveu. “A situação variava muito de local para local, mas, no geral, o Grande Salto em Frente constitui, de longe, a maior demolição de propriedade da história da humanidade.”

Cultura de sobrevivência

Os chineses ouviam que deveriam fazer alguns sacrifícios para conseguir a abundância. Nunca chegou.

“Tudo é colectivo, até os seres humanos”, anunciou o secretário do PCC Zhang Xianli. Milhões foram arrastados para trabalhos forçados nos campos ou na indústria. Mau planeamento, em ambos os casos, produziu resultados catastróficos.

Mao continuava tão pragmático como antes. Era preciso continuar a exportar alimentos - era isso que pagaria a industrialização e salvaria a imagem da China no mundo -, mesmo que significasse exterminar o seu próprio povo. É célebre a máxima: “Quando não há o suficiente para comer, as pessoas morrem de fome. É melhor que metade da população morra para que a outra metade possa comer a sua parte.”

Este pode ter sido um período curto, mas deixou sementes. “É claro que o passado tem reflexos no presente”, diz o historiador. “Há uma cultura de sobrevivência que permanece até hoje. Como explorar ao máximo o sistema? Quando se lêem as notícias sobre o leite contaminado [veiculadas em 2008], isso leva-nos ao Grande Salto em Frente. As autoridades sabem que podem matar e não responder por isso.”

A cultura da sobrevivência de que fala Dikottër está também assente na desobediência. A todos os níveis da sociedade foi preciso encontrar estratégias para continuar a viver. E estas tinham também como consequência o prolongamento da vida do regime: quando se enganavam os livros da contabilidade para mostrar que as metas foram atingidas, ou quando os agricultores escondiam os seus cereais para os vender no mercado negro.

Para responder às exigências, num momento ou no outro, todos os chineses tiveram de fazer cedências morais.

Milhares e milhares de páginas de arquivo passaram pelos olhos do historiador, mas fotografias só as oficiais, como aquela em que Mao aparece de pá na mão, a escavar numa cisterna de um túmulo Ming; ou a de mulheres sorridentes a transportarem em carrinhos de mão woks, regadores e outros utensílios de ferro para alimentar as fornalhas que se multiplicaram para o fabrico de aço.

As de valas comuns e corpos atirados para diques, se as houver, continuam fechadas e com selos de “ultra-secreto”. Um investigador chinês disse a Dikottër que uma vez viu a fotografia do corpo de uma criança que “tinha sido canibalizada, cortada em pedaços e colocada num tacho”.

Por enquanto, a China continua à espera de fazer contas com o seu passado. Nos livros de história escreve-se que as causas da devastação se deveram a catástrofes naturais: secas, tufões, inundações. “As referências são mínimas, quando as há”, adianta o historiador.

De resto, “persiste o mito sobre Mao como alguém que libertou a China. Não é aceitável dizer-se hoje que Hitler foi um grande homem, mas muita gente anda por aí com t-shirts de Mao”.

É o seu retrato que adorna a praça Tiananmen, em Pequim, à porta da Cidade Proibida. A sua cara é a única impressa nas notas de yuans. Dikottër diz ao P2: “Até a liderança comunista se interrogar sobre o que fez no passado, o mito não será enterrado.”