A religião traz a felicidade ou ela já está no cérebro?
Pode ser que a felicidade esteja aí, ao virar de uma esquina do cérebro.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Pode ser que a felicidade esteja aí, ao virar de uma esquina do cérebro.
Será assim tão fácil chegar a ela? Talvez a felicidade se encontre em algum momento efémero. Ou num estado de vida. Ou no coração.
E o que é a felicidade? Há quem a identifique com Deus ou com a religião. Há quem a assemelhe ao prazer, mais ou menos momentâneo. A felicidade será pelo menos a ausência de mal - mas devemos perguntar se seria possível um mundo sem mal e sem sofrimento. E a ciência terá já descoberto onde mora a felicidade - será ela acessível ao bisturi?
"Há partes do cérebro mais associadas aos sentimentos. A felicidade tem vários níveis: há uma felicidade do instante, outra associada à nossa participação na sociedade, à posição da nossa vida ou à nossa relação com o universo. Quanto mais generalizado é esse sentimento de felicidade, mais partes do cérebro são utilizadas." A explicação é de Nicolás Lori, um físico que trabalha no Instituto Biomédico de Investigação da Luz e Imagem (IBILI), da Universidade de Coimbra. O cientista foi um dos intervenientes no recente colóquio sobre Religião e (In)felicidade, dos Missionários da Boa Nova, em Valadares (Gaia), organizado por Anselmo Borges, padre e filósofo.
Todos buscamos a felicidade. Sabemos, através da neurociência, que "temos naturalmente tendência para sermos felizes", explica o investigador. "Quanto mais neurónios estiverem satisfeitos com a relação entre os dados recebidos e os dados esperados, mais eles estarão satisfeitos em termos fisiológicos e dos nutrientes que recebem. Essa satisfação, essa tranquilidade com as coisas que acontecem, induz à felicidade."
De que precisamos, então, para estarmos satisfeitos ou tranquilos? O organizador do colóquio recorda que "para se ser feliz é necessária uma multidão de coisas e condições". E cita: saúde, fruição da paz e dos direitos humanos, algum prazer, uma vida familiar agradável, amor, realização profissional mínima, reconhecimento social, algum dinheiro, amigos, um projecto de vida viável, um governo competente e decente.
Será possível a felicidade, com tantos requisitos? Será ela um sentimento mais longínquo do que pensamos? Nicolás Lori vai buscar a tradição da psicologia positiva: "A emoção ou o sentimento básico é o sentimento positivo. Os sentimentos negativos serão indicações da nossa distância em relação ao sentimento positivo. O sentimento mais forte, mais fundamental em nós, seria esse sentimento positivo."
Prazeres necessáriosÉ preciso sorte, também, recorda ainda Anselmo Borges. Por isso mesmo, há palavras cujo étimo assume as duas ideias em conjunto, felicidade e sorte. O glück alemão remete para ambas, a raiz da happiness inglesa é happ, que quer dizer acaso ou fortuna, tal como acontece com o grego eudaimonia ou o francês bonheur.
A felicidade identifica-se muitas vezes com o prazer. Anselmo Borges distingue entre os prazeres "naturais e necessários, os naturais que não são necessários, outros que nem são naturais nem necessários". Nestes últimos, coloca os desejos de glória, riqueza e poder. "Eles votam-nos inevitavelmente à insatisfação", diz.
Entre os prazeres naturais que não são necessários estão os desejos gastronómicos. Mas, "os únicos desejos bons", continua o padre, "são os naturais e necessários para a própria vida (comer, beber), para o bem-estar do corpo (ter que vestir e um tecto), para o bem-estar da alma (amizade e filosofia)".
E o consumo? Sabe-se hoje que o acto de consumir é impulsivo para muita gente. A ponto de o filósofo francês Gilles Lipovetsky escrever que "não haverá salvação sem o progresso do consumo".
Teresa Toldy, professora de Filosofia na Universidade Fernando Pessoa, recorda os cinco paradigmas propostos por Lipovetsky, "que comandam a inteligibilidade do prazer e da felicidade nas nossas sociedades": um "interminável sistema de estímulos" que, prometendo a felicidade ao alcance da mão, "mais causa a decepção e a frustração"; a celebração dos "prazeres do consumo e da vida presente"; a "corrida generalizada à excelência", vendida em manuais sobre saúde, comida, comunicação, trabalho, desporto ou sexualidade; o consumo da intimidade; ou o hiperconsumo, que se impõe "como o nosso único horizonte".
Toldy critica a proposta de Lipovetsky: "Apesar da aparente exaltação do consumo, Lipovetsky defende a possibilidade de uma era "pós-consumo"." Mas "não se percebe" como quer ele chegar a outra cultura que "reavalie o lugar dos prazeres imediatos". Pior ainda: Lipovetsky esquece "quase dois terços da humanidade", tomados apenas como "pedintes do mesmo nível de consumo das classes mais abastadas".
Deus no cérebro?A religião pretendeu sempre apontar para prazeres menos imediatos. A felicidade estaria no além, numa promessa escatológica sem correspondência no quotidiano terreno.
O factor religioso é comum na condição humana, diz a ciência. A fé numa entidade suprema que explica o mundo ou que nos salva, apesar do mundo, atravessa diferentes culturas, épocas históricas ou estratos sociais.
Tudo radica no cérebro? "Diferentes relacionamentos com os conceitos de Deus, religião e Igreja activam diversas zonas do cérebro de forma diferente", diz Nicolás Lori. "Ou seja, o consumo energético de diversas partes do cérebro será diferente dependendo do tipo de relação que temos com Deus."
Convém, então, separar o sentimento e a emoção: "A emoção acontece no nosso corpo, enquanto o sentimento é uma representação das áreas cerebrais mais evoluídas dessa emoção. Por isso, o nosso relacionamento com Deus está sempre associado aos sentimentos e às emoções."
A ligação a Deus e à religião está por vezes associada à forma como cada um se relaciona "com a vida, com o cosmos, com o destino último", diz Lori. E entre cérebro e coração, qual deles está mais perto de Deus? Ou da felicidade? Emoções e sentimentos são referidos quando se fala do cérebro, diz o físico de Coimbra. "Há uma relação entre o estado do coração e a informação que o cérebro quer processar. Essa separação, na nomenclatura da neurociência, já não se utiliza tanto. Pode falar-se de comportamentos do cérebro mais racionais ou mais emocionais."
Anselmo Borges enuncia factores que perverteram a identificação da religião com a felicidade: o terrorismo ou a violência em nome da religião, as culturas arrasadas a par da generosidade missionária, as "vidas sexuais envenenadas" (abusos sexuais ou celibato obrigatório)...
Teresa Toldy recorda: "O cristianismo propõe um outro programa: o das bem-aventuranças. Contudo, as formas como ele é apresentado nem sempre o tornam muito atraente."
Basta ver: "A pobreza (mesmo que de espírito), o sofrimento, a mansidão, a fome e sede de justiça, a misericórdia, a pureza de coração, a promoção da paz, a perseguição por amor da justiça, os insultos, a perseguição e a calúnia em consequência da profissão de fé não parecem fazer parte dos horizontes de felicidade" do quotidiano.
É verdade que o prazer e a felicidade podem estar em lugares diferentes: um crente pode ver o sublime numa liturgia, mas também o pode experimentar num concerto rock, diz Teresa Toldy. Ou ao contrário, achando que a liturgia não lhe fala do transcendente. E um não crente pode reconhecer, numa celebração litúrgica, uma qualidade estética que o eleva.
Afastar o malEm tempos de miséria, dureza, dores e sofrimentos, Deus foi, é ainda, tantas vezes, o alívio para muitos, recorda Anselmo Borges. Referindo-se só ao presente português, o organizador do colóquio afirma: "Hoje há pelo menos 30 mil famílias que sobrevivem com a ajuda da Igreja Católica. E todas as religiões participam nesta ajuda, no contexto da terrível crise em curso."
Andrés Torres Queiruga, teólogo galego, mudou a sua teologia quando leu no livro bíblico do Êxodo a frase que Deus diz a Moisés, o líder que levou os judeus a deixar a escravatura do Egipto: "Escutei o lamento do povo."
"Deus só tem sentido se é puro amor e salvação, se apoia o povo na sua luta contra o mal, na preocupação com o órfão e a viúva. Os que respondem verdadeiramente ao projecto de Jesus são os que lutam contra o mal", diz Torres Queiruga.
Perante uma tragédia - um tsunami na Ásia, um terramoto no Haiti, chuvas torrenciais na Madeira -, surge muitas vezes a pergunta: "Porque permite Deus o mal?" Há mal no mundo porque o mundo produz o mal, afirma Queiruga. "Há um equívoco de fundo", diz o teólogo. "Parte-se do pressuposto de que o mundo podia ser perfeito. Mas o problema do mal é eterno e precisa de ser colocado de outra maneira." Por isso o teólogo espanhol se espantou com a frase que leu na Bíblia: "Amar alguém é dizer-lhe: "Tu não podes morrer." Por isso Deus pode resgatar-nos do último mal, que é a morte."
Esta será uma resposta do crente, mas pode haver outras: "Um crente tem que dizer porque é que, apesar do mal, acredita em Deus; ou porque a fé em Deus pode ajudar a enfrentar o problema do mal. Um ateu também tem que dar essa resposta."
Mesmo o crente pode fazer perguntas ao seu Deus, afirma o teólogo. "Temos direito a perguntar porque é que, sabendo que o mundo iria ter o mal, Deus criou o mundo... É a mesma pergunta que um filho pode fazer ao pai ou à mãe. Porque, apesar do mal, pensamos que a existência vale a pena e podemos fazer o bem. Se Deus me cria livre, é para exercer a minha liberdade."
A experiência do amor completa a da liberdade: "Deus, ao criar-nos, quer ser consequente com a sua criação, está a apoiar-nos na nossa luta contra o mal. E aí podemos ficar mais felizes com a felicidade do outro do que com a própria."
Paulo Borges, líder da União Budista Portuguesa, diz que a experiência do Oriente vai no mesmo sentido: "Segundo a tradição do Buda, todos os seres viventes procuram a felicidade; é isso que é necessário respeitar: o interesse de não sofrer. A partir daí, é preciso assumir a vida como um compromisso ético de não fazer sofrer e contribuir para a felicidade dos outros."
Para chegar à felicidade, teremos sempre o sofrimento? Teresa Toldy cita ainda uma história narrada pelo brasileiro frei Betto: "Em Fortaleza, no Nordeste brasileiro, jazia uma criança subnutrida, com uma doença de estômago. A mãe procurava consolá-la: "Vais para o Céu, meu menino." A criança olhou para a mãe, abriu muito os olhos e perguntou: "Há pão no Céu, mãe?""