O nosso Natal é como o dos príncipes do século XIX
Alguns dos principezinhos espreitam por detrás de uma cortina. Um outro, mais velho, está sentado numa cadeira, rindo, com as pernas no ar. Há um que parece tapar os olhos, como quem espera uma surpresa, e as duas meninas espreitam para dentro de um dos sacos da figura vestida de escuro que ocupa o centro da gravura. Ao fundo, sobre uma mesa, está, toda enfeitada, uma árvore de Natal.
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Alguns dos principezinhos espreitam por detrás de uma cortina. Um outro, mais velho, está sentado numa cadeira, rindo, com as pernas no ar. Há um que parece tapar os olhos, como quem espera uma surpresa, e as duas meninas espreitam para dentro de um dos sacos da figura vestida de escuro que ocupa o centro da gravura. Ao fundo, sobre uma mesa, está, toda enfeitada, uma árvore de Natal.
Eram assim as noites de Natal da família real em meados do século XIX. D. Fernando II, marido da rainha D. Maria II e pai dos seus sete filhos, representava nas suas gravuras e águas-fortes o ambiente familiar, com ele próprio vestido de S. Nicolau a distribuir presentes. Mas o que é significativo na imagem é o facto de, segundo se crê, ela ser a primeira representação de uma árvore de Natal em Portugal.
D. Fernando era alemão. Com o seu primo Alberto, tinha passado a infância comemorando o Natal segundo a velha tradição germânica de decorar um pinheiro com velas, bolas e frutos. Por isso, quando começaram a nascer os seus filhos com D. Maria II - a rainha teve 11 gravidezes, mas só sete crianças sobreviveram, e a própria D. Maria morreu aos 34 anos, no parto do 11.º filho - D. Fernando decidiu animar o palácio com um Natal de tradições germânicas.
A rainha ficava encantada. Nas cartas à sua prima, a rainha Vitória falava com entusiasmo dos preparativos para a festa de Natal, que seria, aliás, muito semelhante à que Vitória (que tinha casado com Alberto) organizava no Castelo de Windsor, em Inglaterra.
"Nada, nem o ar amuado de D. Pedro [o primogénito e futuro rei D. Pedro V], conseguia estragar as festas de Natal", escreve Maria Filomena Mónica em O Filho da Rainha Gorda - D. Pedro V e a sua mãe, D. Maria II, conto que escreveu inicialmente para os netos e que foi depois editado pela Quetzal. "Na Alemanha, onde havia grandes florestas, era costume montar-se, nessa época, uma árvore, enfeitada com flores, bonecos e bolas. Em Portugal, o uso era antes o presépio, com o Menino Jesus nas palhinhas. Em 1844, D. Fernando resolveu fazer uma surpresa à família. Colocou em cima da mesa um pinheirinho, pondo ao lado os presentes."
Podemos imaginar o que seriam os presentes dos príncipes graças a outra gravura de D. Fernando que mostra o príncipe D. João, pequenino, com uma camisa de noite comprida e segurando um cavalinho na mão, a olhar para uma mesa enfeitada com a árvore de Natal, e rodeado de bonecos - um tambor, um estábulo com animais, um soldado de chumbo montado num cavalo. O Natal deixava de ser apenas uma festa religiosa e passava a ser uma festa das crianças.
A vida da família real"O século XIX é fracturante em relação ao passado na promoção de uma nova visão do convívio da família", explica Nuno Gaspar, historiador e técnico do Palácio da Pena, em Sintra, onde preparou uma visita, realizada no ano passado, que tinha como tema o Natal da família real (embora, sublinha, durante a época do Natal, os reis e os filhos não estivessem na Pena, mas sim no Palácio das Necessidades, em Lisboa). "A tradição dos presentes não existia, sobretudo nos meios mais populares. Esta associação dos presentes que são trazidos pelos Reis Magos para oferecer ao Menino Jesus não existe antes. Pôr as crianças no centro das festividades do Natal é obra do século XIX."
Ao contrário do que acontecia anteriormente, é agora evidente uma intimidade muito maior entre pais e filhos - e os ambientes domésticos reflectem isso. Sobretudo o Palácio da Pena, onde D. Fernando pôde tornar realidade o sonho de qualquer romântico, nas salas indianas ou árabes, nos salões, nos quartos ricamente decorados, nos espaços mais pequenos para as noites em família, a ler, a tocar piano ou a brincar com as crianças, nas torres e num jardim com pontes, grutas, pérgulas e fontes.
"O homem do Romantismo não gosta de grandes espacialidades, prefere espaços acolhedores, quentes, que promovam a aproximação entre os indivíduos", acrescenta Nuno Gaspar. "A Pena é a expressão de uma modernidade, um espaço que tem que se prestar a acolher o tempo íntimo da família."
Nos espaços públicos também se reflecte essa relação mais próxima entre pais e filhos, e vai-se criando a imagem de uma família real igual a todas as outras. Os reis e os príncipes passeavam no Passeio Público e conta-se mesmo que, um dia, D. Maria passeava com o príncipe D. Luís no Jardim da Estrela e, perante a relutância da criança em abraçar outro menino que ali brincava, ela o terá encorajado a fazê-lo.
A educação era marcada também pelo rigor. "Os infantes e os príncipes passavam muito tempo com os preceptores, mas os pais não se eximiam da sua função de educadores", diz o historiador. "Eles [os monarcas] viviam para os filhos, mas com alguma exigência", confirma José Monterroso Teixeira, especialista em História da Arte e da Arquitectura. "O rei institui a prestação de provas públicas e impõe um currículo prussiano, com um corpo de professores muito seleccionado."
O futuro rei D. Pedro V e os irmãos tiveram, assim, uma formação muito diferente da da mãe e mesmo do avô e tio-avô, D. Pedro e D. Miguel. "Nos dois anos que se seguiram à morte da mãe, D. Fernando pôs D. Pedro e D. Luís a viajar pela Europa", porque achava fundamental que eles conhecessem o mundo, explica Monterroso Teixeira.
Filomena Mónica conta o mesmo no seu livro: "Fora do Natal, os príncipes seguiam um horário de estudo disciplinado. O pai não era para brincadeiras. Sempre que podia, dava-lhes lições, sobretudo de Zoologia e Botânica. [...] Muito estudioso, D. Pedro começou logo a fazer exercícios de tradução. Aos 11 anos, foi sujeito, com êxito, a um exame diante dos pais. Estes, e os fidalgos que estavam presentes, ficaram admirados com a forma como ele fizera uma redacção em latim."
A rainha Vitória e DickensOs tempos livres eram também cheios de actividades. Na serra de Sintra (D. Maria II nunca chegou a viver na Pena, porque a obra ainda não estava terminada quando ela morreu, em 1853), conta Filomena Mónica, "de dia faziam piqueniques, à noite viam fogos-de-artifício, e às vezes a rainha organizava bailes. Em meados do mês, voltavam para Lisboa".
Os nobres, primeiro, e o povo, depois, vendo os hábitos da família real, entre os quais a tradição da árvore de Natal, começam a imitá-los. O mesmo se passa em Inglaterra. Não é por acaso que se fala em Natal vitoriano - muitas tradições que ainda hoje se mantêm nasceram nesta altura.
Em 1848, o Ilustrated London News publicou um desenho em que se vê a família real em torno de uma árvore de Natal, com a rainha Vitória e o príncipe Alberto a olhar para os filhos, que contemplam, fascinados, as luzes. A publicação da imagem (que, um ano depois, chegou aos EUA) teve um efeito imediato e em muitas casas começou-se a instituir a tradição da árvore (em Portugal, o desenho de D. Fernando não foi publicado por isso o processo terá sido mais lento).
"Hoje tenho dois filhos aos quais posso dar presentes e que, sem saberem bem porquê, estão cheios de um maravilhamento feliz perante a árvore de Natal germânica e as suas velas brilhantes. [A árvore] afectou profundamente o Alberto, que ficou pálido, tinha lágrimas nos olhos e apertou a minha mão com ternura", escreveu a rainha Vitória, segundo conta Anna Selby em The Victorian Christmas.
Ao longo do século XIX, outras tradições natalícias foram surgindo. Em 1843, Henry Cole pediu ao artista J. Calcott Horsley que desenhasse um postal de Natal - o desenho mostrava um grupo de pessoas a comer e a beber em volta da mesa de Natal e tinha escritos votos de Feliz Natal e Bom Ano Novo.
Nesse primeiro ano, imprimiram-se apenas mil, mas, nas décadas seguintes, generalizou-se o envio de cartões de Natal e desenvolveu-se uma indústria de decorações cada vez mais elaboradas. Com a árvore, chegou também a figura de S. Nicolau - que Fernando II encarnava para distribuir os presentes pelos filhos. Terá sido um editor de Nova Iorque, William Gilley, quem, em 1821, publicou um poema anónimo num livro infantil que falava em Santa Claus (o nome virá do holandês Sinterklaas) e no seu trenó puxado por renas. A imagem do Pai Natal como um velhote bonacheirão de barbas brancas carregando sacos de brinquedos surgiu também no século XIX pela mão do cartoonista americano Thomas Nast.
Mas quem melhor terá descrito o espírito do Natal vitoriano foi Charles Dickens - não é por acaso que ficou conhecido com "o homem que inventou o Natal". Foi ele quem, em 1843, escreveu Conto de Natal, a história do velho e avarento Scrooge, e são os livros de Dickens que instalam definitivamente no nosso imaginário a imagem da véspera de Natal como uma noite fria, com o nevoeiro a invadir as ruas, e as casas acolhedoras e aquecidas, com a família reunida à volta de um peru e da árvore de Natal - a tal inovação que tanto entusiasmava toda a Europa e que, num texto publicado em 1850, o escritor descreve como "aquele bonito brinquedo alemão".