Sonho corrompido

O catalão Juan Marsé (n. 1933) tinha seis anos quando acabou a guerra civil espanhola. Cresceu num dos bairros mais pobres de Barcelona, o de Guinardó, palco de tantos livros seus. Sem educação formal, torna-se escritor aos 25 anos. Recebe em 1958 o primeiro de uma vasta série de prémios: o penúltimo foi o Cervantes, em 2008. "Encerrados con un solo juguete" (1960), livro de estreia, suscita a atenção da crítica e o respeito de autores como Jaime Gil de Biedma, José Agustín Goytisolo e Manuel Vázquez Montalbán. Em pouco tempo fará parte da denominada Geração de 50, a dos herdeiros da resistência anti-franquista. Se estabelecermos uma linha de continuidade entre "Si te dicen que caí" (1973) e "O Feitiço de Xangai", podemos admitir que a lenda e proezas de Francesc Sabaté Llopart, guerrilheiro anarquista conhecido por El Quico, alimentam o imaginário de Marsé.

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O catalão Juan Marsé (n. 1933) tinha seis anos quando acabou a guerra civil espanhola. Cresceu num dos bairros mais pobres de Barcelona, o de Guinardó, palco de tantos livros seus. Sem educação formal, torna-se escritor aos 25 anos. Recebe em 1958 o primeiro de uma vasta série de prémios: o penúltimo foi o Cervantes, em 2008. "Encerrados con un solo juguete" (1960), livro de estreia, suscita a atenção da crítica e o respeito de autores como Jaime Gil de Biedma, José Agustín Goytisolo e Manuel Vázquez Montalbán. Em pouco tempo fará parte da denominada Geração de 50, a dos herdeiros da resistência anti-franquista. Se estabelecermos uma linha de continuidade entre "Si te dicen que caí" (1973) e "O Feitiço de Xangai", podemos admitir que a lenda e proezas de Francesc Sabaté Llopart, guerrilheiro anarquista conhecido por El Quico, alimentam o imaginário de Marsé.

Desde criança ouviu falar do "maquis" catalão, a frente de guerrilheiros que os falangistas perseguem sem trégua. A geração a que pertence não esqueceu a factura da guerra: fome, proibição da língua catalã, meio milhão de exilados, cem mil execuções sumárias, populações deslocadas. O pendor autobiográfico dos textos faz jus a esse caldo de cultura.

Autor de uma obra muito extensa, várias vezes adaptada ao cinema, "O Feitiço de Xangai" (1993; filme de Fernando Trueba em 2002), agora reeditado, é um dos quatro romances de Marsé traduzidos em Portugal, um dos quais o fabuloso "Rabos de Lagartixa" (2000). Guinardó está no centro da intriga.

Logo a abrir, sem rodeios: "Os sonhos juvenis corrompem-se na boca dos adultos". Estamos em 1948, Barcelona ferve de inquietação para libertar-se do jugo opressor. Daniel, o protagonista, aprenderá à sua custa que toda a maturidade será castigada. De certo modo, "O Feitiço de Xangai" é um romance com romance dentro, sendo Daniel e Nandu Forcat os narradores de cada uma das partes da história. Os capítulos (nove, com subsecções numeradas) estão encadeados na primeira e terceira pessoa, modos que correspondem a Daniel e Nandu Forcat. O primeiro cola-se à realidade. O segundo, a partir de Xangai, introduz Kim: "Ao entardecer, quando se acendem as primeiras luzes da cidade, Kim está no seu quarto ajeitando sobre a camisa branca recém-estreada os suspensórios da sovaqueia com a Browning." Com enfoque no idealismo de Daniel e nas efabulações de Nandu Forcat, o perfil das personagens cobre todas as possibilidades.Sem prejuízo do domínio narrativo, diria que há desfasamento entre o interesse do "plot" (medíocre) e a prosa escalorada do autor: "Enquanto avançava pelo pequeno e descuidado jardim, onde os arbustos de cevadilha languesciam à sombra do chorão e os húmidos recantos de lírios apodreciam por falta de sol, interroguei-me como é que estes dois xarnegos mortos de fome tinham podido adquirir aquela estranha autoridade ao falarem da tísica." Xarnego é como chamam aos imigrantes não adaptados à cultura e língua catalã.

No capítulo cinco surge o famoso poema "A Cidade" (1910), de Kavafis. Atentos os acidentes biográficos de Marsé e o contexto ficcional, o "insert" faz todo o sentido. Fica por esclarecer a escolha da versão livre e "inédita" de Ángel González (tão livre que lhe acrescentou um verso), numa altura em que a obra de Kavafis fora vertida (1982) do grego para castelhano por Pedro Bádenas de la Peña. Não obstante, a pulsão nómada encontra nesses versos a epígrafe perfeita: "A cidade seguir-te-á. De volta pelos caminhos errarás / os mesmos. [...] Sempre a esta cidade chegarás."

Em 1994, "O Feitiço de Xangai" recebeu o Prémio Europeu de Literatura Aristeion e o prestigiado Prémio da Crítica da Associação Espanhola de Críticos Literários.