Melancolia, por tudo o que o Brasil poderia ter sido...
A história é arrepiante. Em 1936, Elza Fernandes, uma menina de 16 anos, amante de Miranda, então secretário-geral do Partido Comunista do Brasil (PCB), foi estrangulada "com uma cordinha de varal pelos companheiros, em quem ela confiava por uma mera suspeita de traição", conta Sérgio Rodrigues, o escritor e jornalista brasileiro autor de "Elza, a garota - A história da jovem comunista que o Partido matou" (Quetzal). Essa traição ao Partido Comunista do Brasil "nunca se chegou a comprovar" e o assassinato foi feito "por ordem directa do grande herói da esquerda brasileira, Luís Carlos Prestes".
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A história é arrepiante. Em 1936, Elza Fernandes, uma menina de 16 anos, amante de Miranda, então secretário-geral do Partido Comunista do Brasil (PCB), foi estrangulada "com uma cordinha de varal pelos companheiros, em quem ela confiava por uma mera suspeita de traição", conta Sérgio Rodrigues, o escritor e jornalista brasileiro autor de "Elza, a garota - A história da jovem comunista que o Partido matou" (Quetzal). Essa traição ao Partido Comunista do Brasil "nunca se chegou a comprovar" e o assassinato foi feito "por ordem directa do grande herói da esquerda brasileira, Luís Carlos Prestes".
Sérgio Rodrigues, 48 anos, autor de TodoProsa, um dos blogues do site da revista "Veja". nunca tinha pensado escrever sobre este assunto até o editor Alberto Schprejer, da Nova
Fronteira, lhe propor um livro de não-ficção sobre Elvira Cupello Calônio: Elza, a garota. Alberto estava a contratar um jornalista com longa carreira - Sérgio foi correspondente em Londres do "Jornal do Brasil", repórter da "Folha de S. Paulo", editor da "Veja Rio" e do "Segundo Caderno" (do jornal "O Globo"), chefe de redacção da TV Globo e editor-executivo da revista electrónica "No Mínimo" - e também o autor do romance "As sementes de Flowerville", do livro de contos "O homem que matou o escritor" e do livro de crónicas "What língua is esta?" (Gradiva), com textos em que o cronista faz crítica cultural a partir da língua e das palavras e dos seus usos.
Num feriado de Novembro enquanto toma o "café da manhã" numa das esplanadas do Leblon, Sérgio, que nasceu em Minas Gerais mas vive no Rio há mais de 30 anos, conta-nos que não conhecia quase nada da história de Elza Fernandes. "Sabia de uma menina que tinha sido injustiçada pelo Partido, que era uma traidora - era o que se dizia, nos meus tempos de universidade, no meio estudantil -, mas era uma história que se evitava falar. Ela acabava como parte de uma grande nuvem, de uma coisa meio obscura que era a Intentona [tentativa de golpe contra o governo de Getúlio Vargas feita em Novembro de 1935 pelo Partido Comunista do Brasil]."
Não se falava muito desse episódio - a tentativa que o Partido Comunista do Brasil fez para tomar o poder -, "uma tentativa totalmente patética e desesperada e sem a menor chance de vitória que acabou provocando um retrocesso tremendo nos movimentos políticos e sociais brasileiros, abriu a porta para o Estado Novo e para a ditadura de Vargas em 1937, foi realmente um desastre. Talvez o maior erro."
O escritor e jornalista Zuenir Ventura, na contracapa do livro, realça que foi um dos maiores erros políticos da esquerda brasileira em toda a sua história. "É possível que seja mesmo", concorda Sérgio.
A Intentona levou a um discurso anticomunista, que seria dominante até o fim da ditadura de 1964, e o silêncio da esquerda também ajudou. "Por parte da esquerda é uma história que se abafou muito. Era embaraçosa e por isso a Elza foi desaparecendo. Inventava-se um monte de mentiras em torno disso, à direita, e do outro lado, à esquerda, porque se calava."
Enquanto fazia a pesquisa para o livro, Sérgio percebeu que a história pedia para ser romance. Foi nessa altura que sentiu o livro, uma encomenda, como seu. Escrever um romance resolver-lhe-ia "um problema sério": as lacunas que encontrou durante a pesquisa e que pediam para ser preenchidas ficcionalmente. Criou a personagem de Molina, um jornalista e escritor que conhece Xerxes, militante do PCB que aos 90 anos quer contratar alguém que o ajude a escrever as memórias e coloca um anúncio no jornal.
Caberá a Molina essa tarefa. Então o velho narra-lhe a sua paixão por uma menina chamada Elza, durante a Intentona Comunista, quando Luís Carlos Prestes quis tomar o poder e foi derrotado.
Híbrido
"Elza, a garota" combina literatura e reportagem. É um híbrido de ensaio histórico com jornalismo e com ficção. O autor queria que o livro fosse rigoroso na pesquisa histórica - por isso passou seis meses a pesquisar arquivos institucionais e privados - mas também que se subordinasse a "uma lógica maior de romance". Não era uma fórmula que estivesse pronta e já estava a escrever quando leu "Soldados de Salamina", de Javier Cercas, próximo do seu romance em termos de estrutura. "Vi que estava indo por um caminho que não era tão novo como imaginava". Também há um diálogo com "Nove Noites", de Bernardo Carvalho, e com os livros de W. G. Sebald.
A novidade do livro é "dar a essa moça o papel de protagonista que ela nunca teve", diz, acreditando que este ano ainda sejam negociados os direitos para cinema. "A Elza ainda vai ser mais conhecida se tudo der certo".
Elza aparece marginalmente na biografia "Olga", de Fernando Morais (sobre Olga Benário Prestes), e em vários relatos de livros de História. Surge como personagem secundária em "Camaradas", do jornalista brasileiro William Waack, que estava em Moscovo quando os arquivos da Internacional Comunista foram abertos pela primeira vez e teve acesso a "um material incrível" sobre os bastidores dessa conspiração de 1935, organizada em Moscovo pela Internacional, que queria fomentar revoluções pelo mundo.
"A história de Elza nunca foi contada como acho que deveria ser e a novidade do meu livro é essa, mais do que qualquer revelação factual. A troca de correspondência, que é muito forte e que prova que a ordem de execução de Elza foi dada de facto por Luís Carlos Prestes, foi analisada em livros académicos. Mas é a primeira vez que aparece num livro para o leitor comum."
Refere-se nomeadamente a uma carta encontrada no arquivo da Fundação Getúlio Vargas endereçada por Miranda, o secretário-geral do Partido Comunista do Brasil, amante de Elza e acusado de traição pelo Partido, a Filinto Müller, o chefe da polícia durante a ditadura de Vargas. "Uma carta da qual duvido. Tudo indica que é apócrifa, o Miranda não a escreveu e ela seria a única prova de que ele havia trocado de lado, passando a apoiar o presidente Vargas. É uma carta um pouco óbvia demais, mas deixo ao critério do leitor julgar se ela é verdadeira ou não."
Em torno de um vácuo
Sérgio ficou "um tanto apaixonado" pela Elza. "Mas ela é uma lacuna tão grande... Lacuna que decidi respeitar no livro. Por isso este é um livro construído em torno de um vácuo. Eu não inventei uma Elza, fui respeitoso. Inventei um monte de coisas mas preservei a Elza como uma incógnita. O que não foi possível determinar a respeito dela preferi deixar pulsando ali como um vazio e construir uma narrativa em torno disso."
Durante a escrita, sentiu uma certa obsessão. "Queria saber mais dessa menina e ao não conseguir, isso gerava frustração: aumentava ainda mais o meu fascínio", conta o autor, que este ano lançou "Sobrescritos - 40 histórias de escritores, excretores e outros insensatos", pequenos textos ficcionais com tom humorístico, satírico, irónico.
No entanto, terminou "Elza, a garota" com uma sensação de profunda tristeza. Para ele esta história ajuda a entender por que é que o Brasil "deu tão errado" por tanto tempo. "A impressão que tenho é que naquele momento, em 1935, teria sido possível pegar um outro rumo. O livro deixa entrever alguns dos factores que nos levaram a pegar o rumo errado e como esse rumo errado levou a gente para lugares tão ruins, tanto tempo que a gente perdeu. Era a sensação de uma melancolia pelo tempo perdido por tudo o que o Brasil poderia ter sido e não foi, como diria o [Manuel] Bandeira."