E Cher criou... Cher
Há uns anos, em entrevista para um documentário biográfico, Cher vincou a sua noção, muito própria, de sobrevivência. Disse: "há duas coisas que sobrevivem a um ataque nuclear. As baratas e eu." Podíamos continuar a fazer piadas sobre a sua capacidade de resistência e as vantagens da silicone - "quando me rio, levanta-se a perna esquerda", dizia -, ou, simplesmente, assumir que não há muitas como ela.
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Há uns anos, em entrevista para um documentário biográfico, Cher vincou a sua noção, muito própria, de sobrevivência. Disse: "há duas coisas que sobrevivem a um ataque nuclear. As baratas e eu." Podíamos continuar a fazer piadas sobre a sua capacidade de resistência e as vantagens da silicone - "quando me rio, levanta-se a perna esquerda", dizia -, ou, simplesmente, assumir que não há muitas como ela.
"Sinto-me um carrinho de choque", disse à "Vanity Fair" que com ela, 64 anos de fazer inveja a quem tem 20, fez capa e um portefólio de tirar o fôlego, a anunciar o seu regresso, mais um, agora a propósito da estreia de "Burlesque" (dia 25 de Janeiro em Portugal), o filme onde "é preciso uma lenda para fazer uma estrela", e onde ensina Christina Aguilera. "Se embato numa parede, levanto-me e vou noutra direcção. Tive demasiadas paredes na minha vida mas não vou parar. Talvez seja essa a minha maior qualidade: eu não quero parar."
Não há muitas dessa estirpe de mulheres quase super, vindas de outro tempo e de outro lugar - a Barbarella veio do espaço, mas a Cher veio dos Estados Unidos da América, de onde mais? -, como Tina Turner, Cindy Lauper, Bonnie Tyler, Diana Ross, Barbra Streisand, Madonna, e até Celine Dion, numa versão estrela do Lidl, e que todas, da Gaga à Aguilera, da Furtado à Beyonce, da Spears ao Justin Bieber, tentam imitar.
Cher, a rapariga que tinha que juntar as solas com fita-cola transformou-se em mulher-camaleão, símbolo de uma contra-corrente no interior da contra-cultura norte-americana, resistente a uma padronização fálica, é um exemplo de reinvenção alicerçado nos códigos clássicos e monopolistas da pop. Cara-metade, com o produtor e cantor Sonny, de uma das mais bem-sucedidas duplas do nacional-cançonetismo que usava a televisão para se promover, antes mesmo de a MTV ser sequer projecto, perdeu tudo quando ele pediu o divórcio, incluindo o direito a cantar as canções que tinham ficado célebres por causa dela. Quando a revista "Time" lhe deu capa, só a ela, em 1975, numa pose de pavão, vestido colante transparente e cabelo escorrido, de olhos vidrados que perfuravam quem não se desviava, não era apenas relevar o que funcionava naquela parceria, era o assumir público de que o exemplo feminino que Cher preconizava se estendia para lá da alçada mas-culina e, em tempos de Springsteen, Dylan e Stones, havia mulheres que eram mais do que uma voz, um corpo, uma imagem, um estereótipo. "Sempre me senti uma outsider. Já não me preocupa, gosto desse estatuto", disse na entrevista, contando ainda como foi viver no meio de estrelas, ela que até gostava do lado dona de casa. "Acho que saí duas vezes durante todo o período em que estive casada com o Sonny".
Um Óscar - e um vestido-ícone que não era nada a não ser o corpo dela exposto ao frio de Fevereiro -, três Globos de Ouro, um Emmy, um Grammy, uma filha que mudou de sexo, e um espectáculo em Las Vegas esgotado três anos consecutivos depois, Cher regressa.
Velha? Ultrapassada? Recauchutada? "Eu já era uma cabra muito antes de vocês", disse no seu show em resposta aos prémios todos dados às Gagas desta vida. Feminista, hedonista, libérrima, Cher. Convêm não esquecer os pequenos segredos escondidos nas suas canções. Como este, evidente: "You're not listening to all I say..."