A semana mais longa que ajuda a definir Guimarães
Pode uma festa organizada por adolescentes fazer parte da identidade de uma cidade? Em Guimarães, pode. As Nicolinas, as festas dos estudantes do secundário do concelho, terminam na próxima terça-feira. A cidade envolve-se na sua semana mais longa e tem cada vez mais gosto em mostrá-la ao mundo.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Pode uma festa organizada por adolescentes fazer parte da identidade de uma cidade? Em Guimarães, pode. As Nicolinas, as festas dos estudantes do secundário do concelho, terminam na próxima terça-feira. A cidade envolve-se na sua semana mais longa e tem cada vez mais gosto em mostrá-la ao mundo.
Durante mais de uma semana, Guimarães vive em função das festas organizadas por dez estudantes entre os 16 e os 18 anos. "São uma coisa muito nossa e que desenha a identidade de Guimarães", salienta a vereadora da Cultura, Francisca Abreu, que foi estudante e professora na Secundária Martins Sarmento.
Os vimaranenses aceitam, sem grandes problemas, o caos que as Nicolinas trazem todos os anos, entre 29 de Novembro e 7 de Dezembro. A festa é de partilha e de excessos. E a população compreende-os. "Não há ninguém em Guimarães que não tenha um familiar ou amigo que tenha participado nas festas", explica Augusto Costa, que preside à Associação de Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães/Velhos Nicolinos.
É esta sintonia que leva a que, na última madrugada, dezenas de particulares e casas comerciais tenham entregue vinho, castanhas e outros alimentos aos estudantes para serem partilhados no centro da cidade por centenas de pessoas. As Posses são um dos números mais ilustrativos do espírito de comunidade das Nicolinas.
"São uma manifestação popular que mexe com as pessoas de Guimarães", analisa Jean-Yves Durand, antropólogo ligado à Universidade do Minho. "Movimentam dezenas de milhares de pessoas todos os anos e têm um significado local extremamente forte", acrescenta o especialista, que começou, este ano, a realizar um estudo sobre as festas, a pedido da Câmara de Guimarães (ver texto nas páginas seguintes).
Haverá poucas coisas capazes de tirar dezenas de milhares de pessoas de casa numa noite de frio extremo. O cortejo do Pinheiro, o número que abre esta tradição, é uma delas. A organização não avança números oficiais, mas terão sido cerca de 15 mil pessoas que, na segunda-feira passada, percorreram as ruas da cidade ao som de caixas e bombos para anunciar o início das Nicolinas. Debaixo de frio intenso e ameaça de chuva, nada parece demover os nicolinos de fazerem a sua festa.
Momento de reencontroO cortejo começou por ser pequeno, apenas um momento anunciador do início das celebrações dedicadas a S. Nicolau, erguendo-se um pinheiro como bandeira da celebração que começava. Mas com o passar dos anos essa noite foi mudando, passando a transformar-se também num momento de reencontro entre antigos estudantes.
Hoje é um "momento de reencontro", onde se podem "matar saudades dos tempos académicos", como conta Augusto Costa. Na cidade multiplicam-se tertúlias, à volta da mesa, ao longo de todo o dia. Difícil é mesmo encontrar um local onde jantar no dia 29 de Novembro.
O menu é regional e obrigatório: rojões, papas de sarrabulho, castanhas e vinho verde. A festa é também de excessos à mesa e de excessos alcoólicos. É também por aí que se explica a sua crescente popularidade nas camadas mais jovens. Hoje o Pinheiro é uma festa popular, cada vez mais massificada e capaz de atrair centenas de pessoas de outros pontos do país.
A festa vai mudando, como mudam as gerações, considera o realizador e produtor Rodrigo Areias, que, em 2001, assinou o documentário Nicolinas. "Estas são festas feitas por estudantes do secundário. E os estudantes de hoje não são os mesmos de há dez ou 20 anos", explica.
O cortejo do Pinheiro parte do Campo de S. Mamede, junto ao Castelo de Guimarães, com destino ao Largo República do Brasil, junto da Igreja dos Santos Passos, onde a árvore ficará erguida até ao final das festas. O percurso tem pouco mais de dois quilómetros, mas só mais de duas horas depois é que o pinheiro chega ao seu destino. Tradicionalmente é escolhido o exemplar mais alto do concelho, que este ano chegava aos 23 metros. O mastro é puxado por juntas de bois e erguido, com ajuda de máquinas, já perto das duas da madrugada. A festa está oficialmente iniciada.
"Há um microrritmo próprio do cortejo. Uma coisa muito minimal, onde aparentemente não se passa nada. As pessoas demoram imenso a fazer um percurso que habitualmente fazem em cinco minutos", ilustra Areias. O ritmo é o das caixas e bombos. Quase todos os vimaranenses têm um. Quem não tiver, pode sempre optar por alugar, já que oferta não falta por estes dias. Todos os números das Nicolinas têm um toque de caixa próprio, que marca o ritmo interno da festa. Mas nenhum é tão conhecido como o do Pinheiro. O ruído é ensurdecedor e faz parte daquilo a que Rodrigo Areias chama uma "catarse colectiva".
"Há um lado animal nesta festa que fascina", sublinha o cineasta vimaranense, que ainda se surpreende com a "completa transversalidade social" da mesma. "Não há tribo urbana que resista. É o único sítio onde podemos encontrar um fã de metal, vestido totalmente de preto, mas que não resiste a colocar a mitra na cabeça", conta.
A mitra é o nome popular do barrete nicolino, vermelho com uma faixa verde, um dos símbolos das festas. Outro deles é o traje, semelhante ao de Coimbra, com fato negro completo e capa. Os estudantes usam ainda um traje de trabalho, em mangas de camisa e com um lenço tabaqueiro ao pescoço. "Somos os únicos estudantes do secundário a poder usar traje académico", recorda Tiago Lage, 18 anos, que este ano preside à comissão de festas.
O jovem confessa que "não sabia bem no que se estava a meter" quando decidiu integrar a comissão das festas Nicolinas, mas sente-se orgulhoso. "Fazemos parte da história da cidade", sublinha. São adolescentes como Tiago Lage que organizam todos os anos a celebração. Desde Outubro, percorrem todo o concelho pedindo dinheiro à população para pagar os custos associados ao programa das Nicolinas. "A semana das festas é só a cereja no topo do bolo. Trabalhamos muito durante dois meses para que tudo corra bem", salienta.
Nesse tempo, os estudantes mais velhos passam a mensagem, tentando transmitir os ideais nicolinos. "Somos preparados de forma a tornar-nos mais homenzinhos e ganhar alguma maturidade", explica. É esse o truque que explica que sejam dez adolescentes a liderar um multidão em noites como a do Pinheiro.
Tradição medievalAs festas são dedicadas a S. Nicolau, padroeiro dos estudantes, mas têm pouco de religioso. Grande parte dos seus ritos são pagãos. "Terá a ver com o ciclo do sol. Esta é nitidamente uma manifestação de Inverno", considera Francisca Abreu. O barulho, o uso de máscaras e a comida farta levam a que esta seja a explicação mais aceite entre os vimaranenses.
Mas Maria João Nunes, antropóloga que no último ano acompanhou as festas no âmbito da classificação do património imaterial nacional pelo Instituto da Conservação e Museus, não concorda. "As Nicolinas não têm muito a ver com outras festas que se realizam nesta altura do ano. São festas carnavalescas, apesar de o uso da máscara ser hoje residual, mas são sobretudo tradições académicas", explica.
A celebração vimaranense tem origem medieval e os primeiros estatutos da Irmandade de S. Nicolau datam do século XVI. Mas a configuração moderna começa a desenhar-se apenas no final do século XIX, depois de um período em que as festas praticamente desapareceram. O nome Nicolinas surge já no século XX, pela mão de João de Meira, que a terá usado pela primeira vez no Pregão de 1904. Até então, a celebração era conhecida como Festejos a S. Nicolau.
"Terão uma origem semelhante à das tradições estudantis de Coimbra, inspirada na tradição da Universidade de Salamanca e de outras universidades que nasceram no século XVI na Europa", conta Maria João Nunes. Hoje podem ser consideradas uma manifestação de cultura popular, mas foram em tempos uma manifestação "muito elitista", avalia a antropóloga. "Antigamente só podiam participar os estudantes do Liceu de Guimarães e a presença das mulheres era reduzida", afirma a investigadora. Mas a democratização do ensino, trazida pelo 25 de Abril, mudou a face das festas, Hoje, as mulheres já são tantas como os homens nos principais números, embora ainda tenham vedada a entrada na comissão de festas.Amanhã celebra-se o principal dia das Nicolinas. O dia 6 de Dezembro é, historicamente, o principal momento das festas e todos os anteriores momentos têm afinal o objectivo de anunciar o dia que a Igreja Católica dedica a S. Nicolau. Por isso, os estudantes organizam dois dos principais números das festas amanhã, em honra ao seu padroeiro. Durante a tarde acontecem as Maçãzinhas, no centro histórico da cidade. Depois de percorrem a cidade em carros alegóricos, dezenas de rapazes vão oferecer pequenas maçãs às raparigas, que estão espalhadas pelas varandas das praças da Oliveira e de S. Tiago. O fruto chegará às mãos das jovens através de uma lança artesanal, ornamentada com fitas coloridas e colocada no topo de uma cana. À noite, os antigos estudantes apresentam, no Centro Cultural Vila Flor, as Danças de S. Nicolau. Trata-se de uma dramatização que perpassa a actualidade local e nacional ao longo do último ano, com um tom cómico. À semelhança de anos anteriores, o evento tem já garantia de lotação esgotada. As Nicolinas prolongam-se até à noite da próxima terça-feira, altura em que os estudantes se reúnem no baile, um jantar de gala que marca o encerramento das festas.