Ai Weiwei não é um, são milhões

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À nossa frente está um mar cinzento, silencioso. No espaço imenso do Turbine Hall, da Tate Modern, em Londres, olhamos para milhões de pequenas sementes de girassol. Somos mantidos à distância por um cordão de segurança. Falta o som e o toque.

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À nossa frente está um mar cinzento, silencioso. No espaço imenso do Turbine Hall, da Tate Modern, em Londres, olhamos para milhões de pequenas sementes de girassol. Somos mantidos à distância por um cordão de segurança. Falta o som e o toque.

Quando o artista chinês Ai Weiwei pensou a exposição "Sunflower Seeds" para este espaço imaginou que as pessoas poderiam correr sobre as sementes, mergulhar as mãos e deixá-las correr pelos dedos. Imaginou o som dos passos.

Rrrrsss. Rrrrsss. E foi assim nos primeiros dias. Depois os responsáveis da Tate disseram que as sementes largavam um pó prejudicial à saúde e puseram os cordões à volta.

Agora, quem entra pára, respeitosamente, à beira do mar cinzento e olha. Olha e fotografa - há quem fotografe primeiro e olhe depois. Há dezenas de pessoas inclinadas, esticando os pescoços, tentando aproximar-se o mais possível da obra, estendendo os telemóveis para tirar fotografias.

Já não se pode tocar nas sementes, o que torna mais difícil aquilo que Ai Weiwei tinha imaginado: que, ao pegarmos nelas, acabaríamos por perceber que não são verdadeiras sementes de girassol mas sim pedaços de porcelana, cada um deles pintado à mão por um chinês ou uma chinesa na longínqua cidade de Jingdezhen, o primeiro centro de produção de porcelana do mundo.

Impossível não pensar nas pessoas que pacientemente pintaram cada uma das sementes de porcelana - "julgo que não entendiam por que razão o estavam a fazer", diz Ai Weiwei no vídeo que acompanha a exposição. "Sunflower Seeds" é um cruzamento entre a impressionante produção em massa da China e as técnicas ancestrais de trabalho manual. E é, de várias formas, um trabalho sobre a China e sobre a relação da China com o mundo.

Cinzentas, silenciosas, cada peça - são mais de 100 milhões - é parte de um todo, não há individualismo neste mar cinzento, e, ao mesmo tempo, se pudéssemos pegar numa semente estaríamos a pegar num objecto único, pintado com três pinceladas precisas por uma pessoa única, mesmo que diluída na imensidão dos números que aparecem nas nossas cabeças quando pensamos na China.

Há, por outro lado, o poder do grupo. Milhares de milhões. Todos juntos capazes de produzir milhares de milhões de objectos que inundam os mercados ocidentais. Tal como, há muitos anos, os habitantes da mesma cidade de Jingdezhen produziam peças únicas, de porcelana, perfeitas, para um único homem: o imperador.

Para fazer dinheiro

No vídeo, Ai Weiwei passeia-se por uma China rural, por entre as minas de onde são retirados a argila e o feldspato para fazer a pasta da porcelana, os fornos onde as peças de porcelana são cozidas, e os ateliers improvisados, onde homens e mulheres pintam à mão cada semente com tinta preta e pincéis de pontas grossas. Às vezes o trabalho é feito em casa pela avó que ao mesmo tempo toma conta da neta (que se aventura até à porta e tenta apanhar as gotas de chuva com os dedos), ou por um rapaz numa velha mesa de madeira num quintal dos fundos. As técnicas são primitivas mas vêm de uma sabedoria milenar.

Quantas pinta por dia?, pergunta a uma das mulheres o escritor Brendan McGetrick, que visitou a cidade para acompanhar o processo de fabrico das "Sunflowers Seeds" e escreveu um dos textos do catálogo da exposição. "Entre dois quilos e dois quilos e meio", responde a mulher.

McGetrick faz contas de cabeça: são 500 quilos por pessoa, 350 mil sementes, 2,8 milhões de pinceladas.

Outra pergunta: e sabe para onde vão e como serão usadas? A resposta revela pragmatismo: "Não, não sabemos, mas sabemos que serão usadas para fazer dinheiro." Com a indústria da porcelana em decadência e a falta de trabalho em Jingdezhen, o projecto de Ai Weiwei é uma forma de ajudar a população, dando-lhe trabalho.

Mas para o artista - e para muitos chineses - as sementes de girassol significam outras coisas. "Na China, quando eu era uma criança, não tínhamos nada, excepto talvez uma cama, um forno, um banco ou uma cadeira. Tudo aquilo que se vê hoje, não tínhamos. [...] Mas mesmo os mais pobres tinham um tesouro que eram as sementes de girassol", conta numa entrevista no catálogo.

Todos os chineses pobres comiam sementes de girassol. Eram uma espécie de "amigo secreto" no fundo do bolso. Esses eram os tempos em que Ai Weiwei, nascido em 1957, era ainda apenas o filho de Ai Qing, poeta famoso, e crítico do regime comunista, do qual acabaria por ser uma das principais vítimas. Expulso de Pequim, Ai Qing seria enviado para campos de trabalho nas províncias de Heilongjiang e Xinjiang. "Ele era um inimigo do Estado, um inimigo do povo. Quando eu era criança vivi como o filho de um inimigo do povo", contou Ai Weiwei numa entrevista à revista "ArtZine China". O que viveu então marcou-o para sempre. "O meu pai limpava casas-de-banho. Toda a minha família vivia em condições horríveis." Mais tarde o pai acabaria por ser reabilitado, autorizado a regressar a Pequim e a escrever poesia novamente.

Nova Iorque e Warhol

Apesar do trauma (ou por causa dele), Ai Weiwei interessava-se cada vez mais por arte. Estudou na Academia de Cinema de Pequim ao lado de futuros cineastas famosos como Zhang Yimou e Chen Kaige, mas aborreceu-se com o cinema. Queria mais. Juntou- se aos Stars, um grupo de artistas que, na definição da "ArtZine", "questionavam a autoridade e as noções tradicionais de arte", mas depois de um breve momento de abertura, as autoridades voltaram a apertar o cerco e no início dos anos 80, Ai Weiwei chegava aos EUA - primeiro à Califórnia, e pouco depois a Nova Iorque onde iria viver os 12 anos seguintes.

As fotografias dessa década mostram-no com bastante cabelo e sem barba a posar ao lado de um dos seus então recém-descobertos heróis, Andy Warhol, no Museu de Arte Moderna (MoMA) em Nova Iorque. Com dois dedos no queixo, Ai Weiwei imita o gesto que Andy Warhol repete em seis auto-retratos.

Ao deixar Pequim, prometera voltar como um Picasso chinês, mas isso foi antes de descobrir Warhol e Duchamp. Mas se grande parte dos seus dias era passada a visitar museus e galerias de arte, tinha também que garantir a sobrevivência. E isso não era fácil. Trabalhou como baby-sitter e operário, tornou-se amigo do poeta Allen Ginsberg, e nas festas via as pessoas da mundo da arte virarem-lhe as costas quando se apresentava como artista. O seu apartamento era local de encontro para um grupo de artistas e intelectuais chineses em Nova Iorque, mas a sua carreira não existia. Foi só depois de regressar a Pequim, em 1993 (voltou porque o pai estava doente), que as coisas mudaram. Mas, imparável, disparava em todas as direcções: o seu trabalho multiplicava-se em livros sobre outros artistas, fotografias, esculturas, instalações. Ficaram famosas as suas imagens da Casa Branca, da Torre Eiffel, da Praça Tiananmen e de outros monumentos mundiais tendo em primeiro plano o seu dedo do meio espetado.

Ai Weiwei é também arquitecto. Não que tenha estudado para isso. Tudo começou quando decidiu projectar o seu próprio estúdio em Pequim (chamou-lhe FAKE Design). Diz que o desenhou numa tarde e construiu-o em dois meses. Desde então recebeu uma série de encomendas, a mais mediática das quais foi a sua participação, em 2008, como consultor no projecto do estádio olímpico de Pequim (o chamado Ninho de Pássaro), dos arquitectos Herzog & de Meuron.

Foi também com a mesma dupla que se envolveu no Projecto Ordos - 100 jovens arquitectos de todo o mundo (de Portugal os escolhidos foram os SAMI Arquitectos) para projectarem, com total liberdade, casas para um imenso terreno deserto na Mongólia.

Comparável a Vaclav Havel?

Com o tempo, a dimensão política foi-se tornando cada vez mais importante na sua obra. Se durante os anos de Nova Iorque já se fotografava frequentemente, na China o registo de tudo o que fazia tornou-se constante.

Descobriu na Internet, onde criou um blogue, e no Twitter formas de comunicação de massas que, apesar dos esforços das autoridades chinesas para o impedir, se tornaram os seus meios favoritos de comunicação com o mundo. Tornou-se um pesadelo para o regime chinês. Jonathan Jones, o crítico de arte do jornal britânico "The Guardian", escreveu recentemente que o artista chinês "está em vias de se tornar uma figura de séria importância global comparável a Vaclav Havel ou Alexander Soljenitsin".

Ai Weiwei é inesperado. Nunca se sabe o que vai fazer a seguir. Em 2007 a sua participação na Documenta de Kassel chamou-se "Fairytale" e consistiu em levar consigo 1001 chineses, que recrutou através do seu blogue, e cuja visita à Alemanha organizou (e fotografou sistematicamente). Levou também 1001 cadeiras de madeira da dinastia Qing que espalhou por vários locais da exposição. Iconoclasta, em 1995 fez-se fotografar deixando cair um vaso da dinastia Han no chão, onde se desfez em pedaços. Noutras ocasiões pintou com tinta industrial vasos neolíticos ou pintou o logotipo da Coca Cola noutro vaso da dinastia Han. Ao mesmo tempo mantém vivas técnicas antigas de trabalhar a porcelana, encomendando réplicas de vasos "ao estilo" da dinastia Qing, pondo em causa a questão da autenticidade e do valor.

Não são contudo os vasos da dinastia Han partidos que incomodam o regime chinês. São as declarações públicas de Ai Weiwei - cada vez mais ouvido e entrevistado nos media ocidentais - e as que faz no seu blogue ou através do Twitter (os visitantes da Tate podem-lhe fazer directamente perguntas gravando um pequeno video numa sala ao lado da exposição ou enviando uma mensagem pelo Twitter).

As redes sociais foram-lhe muito úteis para uma das suas maiores campanhas. Em 2008, lançou uma investigação sobre as condições que levaram à morte de mais de cinco mil crianças soterradas sob as suas escola durante o terramoto na região de Sichuan. A morte das crianças, argumenta, ficou a dever-se à má qualidade de construção das escolas e à corrupção que está por detrás. Em 2009 fez a obra "She lived happily for seven years in this world/Remembering" cobrindo uma enorme fachada da Haus der

Kunst, em Munique, com nove mil pequenas mochilas azuis, vermelhas, amarelas e verdes. A equipa que trabalha com Ai tem vindo a recolher os nomes e dados sobre cada uma das crianças mortas. A campanha tornou-o mais famoso do que alguma vez tinha sido na China mas levou também à sua detenção. Em Maio de 2009, quando viajava para Sichuan para depor a favor de um activista, foi preso e espancado pela polícia (o momento foi registado pelo artista que fotografou o espelho do elevador onde se encontrava acompanhado por um polícia).

O espancamento provocou-lhe uma hemorragia cerebral que levou a que fosse operado ao cérebro, num hospital de Munique, onde se encontrava a montar a instalação na Haus der Kunst. Também desse momento temos uma fotografia que Ai tirou a si mesmo no hospital segurando o saco que recolhia o sangue do seu cérebro.

Em Novembro, uma fotografia sua ocupava a primeira página do "Financial Times". A notícia era a de que tinha sido colocado sob prisão domiciliária porque as autoridade queriam demolir o seu novo estúdio, em Xangai, e ele tinha decidido convocar uma festa para centenas de pessoas, na qual ia servir caranguejos, petisco apreciado em Xangai e cujo nome é sinónimo de "harmonia". A festa realizou-se, e depois de terminada a ordem de prisão domiciliária foi levantada.

Ai Weiwei não vai parar. Em 2009, escreveu no Twitter: "Se uma pessoa não tem liber***, então eu não tenho liber***; se uma pessoa é humilhada, então eu sou humilhado. Se uma pessoa é ferida, então eu sou ferido. Ouviram e compreenderam?". Os asteriscos correspondem a cortes feitos pela censura chinesa. E no entanto, ouvimos e compreendemos.