"Fuga" faz subir a tensão entre as potências do Golfo Pérsico
A "fuga" de 250 mil documentos diplomáticos americanos faz-se sentir sobretudo no Médio Oriente. Na Europa, as referências cruas a alguns líderes são minimizadas. A questão dominante continua a ser o descrédito diplomático americano e os "buracos" na sua segurança.
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A "fuga" de 250 mil documentos diplomáticos americanos faz-se sentir sobretudo no Médio Oriente. Na Europa, as referências cruas a alguns líderes são minimizadas. A questão dominante continua a ser o descrédito diplomático americano e os "buracos" na sua segurança.
A tensão silenciosa que se instalou no Médio Oriente não reflecte apenas a quebra do segredo. O analista libanês Rami Khouri sublinha a "perda do sentido de dignidade nacional", patente nos contactos diplomáticos dos vários Estados árabes e que poderá levar a um maior descrédito. "É triste e chocante o modo como os líderes árabes são retratados pelo Departamento de Estado americano nos "telegramas" divulgados pelo site WikiLeaks."
Os documentos põem em xeque a dupla linguagem dos líderes árabes perante o Irão ou a sua "hipocrisia" perante os prisioneiros de Guantánamo. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, aproveitou a frase atribuída ao rei Abdullah, da Arábia Saudita, convidando os americanos a "cortar a cabeça da serpente" [o nuclear iraniano], para reforçar a sua campanha contra Teerão.
"As revelações do WikiLeaks ameaçam inverter os equilíbrios no Golfo, entre a hostilidade da opinião pública ao envolvimento de segurança americano nos assuntos regionais e o reconhecimento de que os EUA constituem a sua última garantia de segurança" perante o Irão, declara à Deutsche Welle um especialista do Médio Oriente.
Os sauditas temem a desestabilização regional, a reacção da sua importante minoria xiita ou o aumento de tensão na fronteira com o Iémen. E, acima de tudo, Riad teme que os seus islamistas radicais dividam a Arábia Saudita, berço histórico da Al-Qaeda.
Se os documentos confirmam a obsessão saudita perante a ascensão iraniana, Teerão tenta desvalorizar as revelações, atribuindo-as a um "complot americano". Mas a imprensa oficial faz uma leitura pessimista. Assinala "a situação inquietante que o Irão poderá ter de afrontar no futuro próximo" perante a hostilidade dos vizinhos do Golfo, falando num "clima de guerra não-declarada".
Diz à AFP um diplomata ocidental: "Os documentos WikiLeaks não revelam nada e os iranianos conhecem há muito os sentimentos dos países árabes do Golfo. Mas ver a prova escrita de que os seus vizinhos encorajam o seu inimigo a atacá-los deixará marcas".
A transparência"A próxima vez que ouvir o discurso americano sobre a cibersegurança, direi alto algumas coisas desagradáveis", disse ao Washington Post François Heisbourg, presidente do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres.
"É um enorme fiasco da nossa comunidade de intelligence e do nosso Departamento da Defesa", afirmou Peter Hoekstra, republicano da comissão de Defesa da Câmara dos Representantes. "Esta base de dados nunca devia ter existido e centenas de milhares de pessoas a ela não deveriam ter acesso", declarou à CBS. A conexão entre as diversas bases de dados foi imposta pela experiência do 11 de Setembro.
A "fuga" dos 250 mil documentos vai ter um efeito perverso na "transparência", escreve na Foreign Policy o analista Daniel Drezner. "Penso ser seguro dizer que a compartimentação vai estar em voga muito em breve - o que significa, a longo prazo, não só menos transparência como uma coordenação política menos efectiva. Não cabe ao WikiLeaks preocupar-se com o segundo problema, mas deveria pensar no primeiro."
Alguns militantes da "transparência" do Estado, que ganharam importantes batalhas, temem um retrocesso.
As edições de ontem dos jornais que participaram na operação WikiLeaks deram particular destaque à questão norte-coreana e ao papel da China, uma questão na ordem do dia. No entanto, há uma estranha dissonância editorial. Assim, o El País titulou: "A China aposta em dominar uma Coreia reunificada." O The Guardian tem um olhar distinto: "Os telegramas WikiLeaks revelam que "a China está pronta a abandonar a Coreia do Norte"."
A polémica mais interessante trava-se nos inúmeros editoriais e artigos sobre o WikiLeaks. É a questão central. Cito duas avaliações europeias.
Massimo Razzi, director da edição online de La Repubblica, sublinha o momento histórico: "O 28 de Novembro de 2010 ficará como o dia em que tudo ou quase tudo se deslocou, desenrolou e se espalhou na Internet, ou pelo menos a partir da Internet". Não apenas o dia em que a informação passou a ser apanágio da Internet: "É o dia em que, pela primeira vez, os cidadãos têm a possibilidade de dissecar numerosos factos recentes e desmascarar as mentiras dos seus respectivos "poderosos"".
"Transparência, transparência... seria a lei e os profetas?", interroga-se Laurent Joffrin no editorial de Libération. "Num mundo atravessado por conflitos violentos, o Estado não pode agir sob o olhar instantâneo da opinião. Tem o direito de conservar os segredos de defesa e discutir discretamente com os aliados ou com os adversários."
Conclusão de Joffrin: "Mesmo a democracia mais aberta e preocupada com os direitos humanos tem necessidade de um Estado. É um paradoxo ver o WikiLeaks só atacar as democracias, deixando de lado as ditaduras mais opacas e repressivas. E é reconfortante ver que as conversas secretas das grandes democracias são no fundo pouco diferentes do seu discurso público".