Serra de Monchique: o Algarve das alturas ainda espera pela mão humana
Ana Celorico Machadoa O Algarve da serra de Monchique não é o da praia da Rocha. Faz frio, há montes de cortiça à beira da estrada, há castanheiros que provam que no final de Novembro a folhagem caduca está amarela em todo o país. Há água a escorrer de todo o sítio.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Ana Celorico Machadoa O Algarve da serra de Monchique não é o da praia da Rocha. Faz frio, há montes de cortiça à beira da estrada, há castanheiros que provam que no final de Novembro a folhagem caduca está amarela em todo o país. Há água a escorrer de todo o sítio.
É uma paisagem de sítios altos.
A serra é apetecível. O pico da Fóia, o mais alto da região montanhosa de Monchique, com 902 metros de altitude, é o segundo lugar mais visitado do Barlavento algarvio (o primeiro é Sagres). Mas como o interior do resto do país, não agarra. A população residente do concelho de Monchique, que junta as freguesias de Alferce, Marmelete e Monchique, é apenas de 6024 habitantes, dados de 2008.
"O turismo não pode ser a única alternativa para o desenvolvimento das paisagens", disse ao Cidades Oriol Porcel Montané, director da Rede Europeia de Autoridades Locais e Regionais para a Implementação da Convenção Europeia da Paisagem, durante o congresso sobre paisagem e território que teve lugar no início de Novembro em Lisboa. "Há também que potenciar o desenvolvimento do que manteve e transformou as paisagens, a população."
Na vila de Monchique, sede de um concelho com 395 quilómetros quadrados, há um aglomerado de casas com uma população velha. Mais para dentro, na serra, as casas tornam-se esporádicas, muitas são ruínas e vêem-se ainda menos pessoas.
No topo do Vale Largo, antes de chegar à Fóia, o grupo de habitações silenciosas que anima o fundo do vale prova a existência de uma humanização passada. As dezenas de socalcos fabricados para sustentar agricultura abandonada tornaram-se a marca identitária e natural da paisagem. "Provavelmente começaram a construir os socalcos quando aumentou a população", explica ao Cidades Ana Celorico Machado. A antropóloga fez parte do grupo de trabalho que produziu o projecto do Bio Parque de Monchique, uma encomenda por concurso da Câmara Municipal de Monchique.
A ideia do Bio Parque assenta no facto de a serra estar em território que é Rede Natura 2000. O objectivo principal é desenvolver o turismo de natureza da paisagem de Monchique, servindo, por exemplo, os turistas que fazem aVia Pedestre Algarviana, um trilho que atravessa o interior do sotavento ao barlavento. O parque pode criar uma rede de habitações reabilitadas onde os turistas podem ficar.
Outra hipótese é reabilitar as antigas escolas primárias para servirem de entrada do parque, uma espécie de centros interpretativos que explicariam a região. A longo prazo, o turismo seria capaz de estabelecer actividades que sempre decorreram na serra e que não conseguem existir umas sem as outras.
"Foi um diagnóstico holístico. Claro que identificámos os recursos locais a utilizar", acrescenta Machado. Esses recursos não são poucos: a agricultura biológica, a suinicultura, o mel, o medronho, as castanhas, a pastorícia, a manutenção da floresta, a tecelagem, o aproveitamento dos moinhos de água. Depois, vieram as actividades actuais, inseridas numa vertente de turismo de natureza, como o trekking e outros desportos.
"O projecto do Bio Parque é um processo aberto", explica António Marques, o arquitecto à frente do grupo de trabalho e que juntamente com a antropóloga fez um périplo com o Cidades pela serra de Monchique. Mas cabe às actividades tradicionais odesafio mais profundo de "recuperar a paisagem".
O grupo de trabalho abarcou pessoas que avaliaram o potencial turístico, o valor natural da serra, pensaram em possíveis parcerias com entidades privadas da região, elaboraram projectos de restauro de casas. O relatório ficou pronto em 2003, foi entregue à câmara. No Verão desse ano os incêndios lavraram grande parte da floresta. O Bio Parque ficou esquecido durante anos.
Serra de água, serra de fogoNo meio do Vale Largo fica-se rodeado por socalcos. O vento gelado que sopra no cimo desaparece ali e esse conforto torna as ruínas menos inóspitas. Os telhados das antigas habitações já não existem e as silvas passaram a habitar o espaço. Mais acima há ainda uma casa habitada com um pequeno milheiral e um burro.
Em baixo, depois de mais socalcos, está outro grupo de casas abandonado, mas não degradado. A cascata que existe ao fundo ainda não se vê. A água é uma característica identitária de Monchique. Só ali, ao longo da descida do vale, há uma série de minas de água, nascentes que brotam na horizontal.
Os cursos de água que nascem da serra, como a ribeira de Seixe, são dos poucos do Algarve que têm água todo o ano. Foram aproveitados como fonte de energia para moinhos que moíam o trigo vindo do Alentejo, mas também para pisar a lã produzida ali, que depois era tratada com uma gordura para ficar impermeável e servir de vestuário para os pescadores.
As zonas florestais junto aos cursos de água, com uma especificidade original, foram as mais poupadas pelo fogo, o resto da serra não. "O nosso trabalho terminou com os incêndios de 2003", diz Ana Celorico Machado. "Quando há estes incêndios, nas outras partes [fora dos cursos de água], a própria paisagem humana da serra desaparece, o que fica são os eucaliptos." Hoje, o eucaliptal é sempre a linha de horizonte.
Para a serra, a década ficou marcada pelos incêndios de 2003 e 2004. Ao todo, mais de 80 por cento da área do concelho ardeu. Passados seis anos e duas eleições autárquicas depois, os efeitos do desastre são mais imperceptíveis no terreno do que na voz das pessoas.
"Os problemas da serra são resultantes ainda do incêndio de 2003, que destruiu toda a economia da região", explica por telefone Hélder Água, que é presidente da Associação de Apicultores do Barlavento Algarvio. "Nós aqui baseávamo-nos na floresta: sobreiro, pinheiro, medronheiro, eucalipto. Houve duas árvores que responderam com qualidade, o medronheiro, que neste momento está [a crescer] à velocidade de cruzeiro, e o eucalipto que daqui a quatro anos está pronto para ser cortado."
Hélder Água diz que só este ano é que a região voltou a produzir mel com algum nível. "Tivemos uma destruição total do sub-bosque, os outros seis anos não davam para a despesa." O Barlavento produz entre 600 e 800 toneladas de mel todos os anos, a maioria é exportado para a Alemanha, Dinamarca e França. "O essencial para aguentar as colmeias no Inverno é a serra de Monchique", explica.
A preocupação com os incêndios florestais também está no centro do discurso do presidente da Câmara Municipal de Monchique. "Neste momento temos uma grande área florestal contínua com poucos corta-fogos, o que torna a região susceptível", diz Rui Miguel Andrépor telefone, explicando que é preciso uma gestão correcta da floresta, se o concelho quiser depender economicamente dela.
O autarca do PSD está à frente da câmara há um ano, depois de 27 anos de presidência do PS. "Quando cheguei à câmara, todas as dinâmicas estavam mortas, encontrei uma ou outra pessoa a explorar os recursos." O projecto do Bio Parque também estava na gaveta, a primeira coisa que fez foi pegar nele, fazer uma reavaliação da situação.
"Algumas das propostas têm interesse, outras duvido que tenham, devido à viabilidade económica", defende, dando o exemplo da reabilitação das antigas escolas primárias em centros de interpretação. A reabilitação dos miradouros foi um dos poucos investimenos que se fizeram.
Agricultura de fim-de-semanaA câmara tem o projecto de instalar um centro de interpretação na Fóia, um cartão de visitas para os milhares de turistas que vão ao lugar saber quais os sítios mais interessantes a visitar do concelho. Um parque de actividades radicais é outra ideia para ali. O presidente também espera equipar a vila com mais locais de dormida.
O Vale Largo, um "local chave da serra", segundo o arquitecto António Marques, vai manter-se esquecido, se o parque não sair da gaveta. Durante a elaboração do projecto o grupo de trabalho galgou a serra várias vezes, conta com nostalgia o arquitecto: "Foi olhar para a paisagem, caminhar, em cada uma das áreas dirigir-nos às pessoas."
A câmara tinha lançado pistas dos locais a descobrir, mas apresentou-se outro mapa das potencialidades da região. "Acabámos por perceber que o sítio mais interessante não é a Fóia, mas a Picota [o segundo lugar mais alto, a 774 metros], onde existem umas termas interessantíssimas a que se tem de ir a pé", exemplificou Ana Celorico Machado.
Um destes locais fica depois da Fóia, onde a paisagem humanizada está viva, com um grupo de casas habitadas ao redor de um vale. Ainda está lá tudo: os socalcos trabalhados, o riacho a passar, uma cascata, um pequeno milheiral, hortas, um pomar, o sobreiro "esticado" próprio de Monchique, alguns pinheiros e castanheiros, já com poucas das suas folhas largas, mas suficientes para preencher a paisagem com borrões amarelos e castanhos. Só falta a neve. Um Algarve nórdico irreconhecível.
É sábado e uma família sai de uma vivenda com a enxada na mão. "Como a agricultura está em regressão, as pessoas têm um emprego durante a semana e é ao fim-de-semana que o campo fica vivo", diz António Marques.
Nas últimas décadas quem se instala no interior serrano ou são casais estrangeiros mais velhos, ou famílias portuguesas também no final da vida. Os novos vão para a costa, onde há mais emprego, ou estudam em outras cidades do país. Entre 1993 e 2008 o concelho perdeu mais de mil habitantes. Em 1960 tinha mais de 14 mil pessoas.
Mas os tempos áureos da serra foram durante o século XIX, antes da campanha do trigo no Alentejo, quando Monchique alimentava a costa do Algarve. "Ao vermos a quantidade de socalcos, vemos a dimensão que isto tinha para a costa", diz o arquitecto.
A questão é que raras são as espécies que vivem sem o homem. "As paisagens desumanizadas desempenham muito poucas funções ecológicas, produzem muito pouco e ninguém faz turismo numa paisagem sem pessoas", disse durante o congresso em Lisboa Margarida Cancela d"Abreu, arquitecta paisagista e a actual presidente da Associação Portuguesa de Arquitectos Paisagistas.
Olhar e ir emboraO Bio Parque contava com os projectos âncora que já existem hoje no concelho, como a mina que explora sianitos, rocha rara semelhante ao granito, ou as termas de Monchique, mais o investimento no turismo da natureza, para atrair outras actividades que pelo menos garantissem a manutenção desta paisagem.
Emílio Vidigal defende que o projecto "é importantíssimo para desenvolver a região". Mas o presidente da Associação dos Produtores Florestais do Barlavento Algarvio diz que é necessário dinheiro para que isto aconteça e critica o Governo por ter prometido ajudas ao concelho na recuperação dos incêndios. "As expectativas criadas depois dos incêndios para recuperar as áreas ardidas ficaram no papel."
Por outro lado, alega que para os proprietários se candidatarem aos fundos do Programa de Desenvolvimento Rural (Proder) têm que ultrapassar uma burocracia que afasta muitas pessoas.
Já Hélder Água não acredita que o turismo traga mais-valia económica à serra. Além da situação económica, as "pessoas gostam da serra para ficar, olhar e ir embora". O presidente da associação dos apicultores aposta na indústria florestal e em empresas do papel como a Iberflorestal, a Portocel Soporcel ou a Silvicaima, uma empresa silvícola.
A perda do potencial da serra ultrapassa a economia. "Há uma desvalorização económica, mas também simbólica. O que o Bio Parque tinha de inovador era tentar revalorizar os produtos da serra", explica a antropóloga. "Antigamente existiam três locais de visita no Barlavento: Sagres, a Fóia e a praia da Rocha. A praia da Rocha já foi..." Monchique pode ser igual.
Notícia actualizada às 22h47