Assombro e comoção
No ano passado, e como resultado da estada corajosa de um mês no Afeganistão, Alexandra Lucas Coelho (n. 1967), grande repórter deste jornal - e aqui o adjectivo "grande" não é retórica, pois ela escreve das melhores reportagens que por cá se fazem - publicou o seu inspirado e precioso "Caderno Afegão" na colecção de literatura de viagens (dirigida por Carlos Vaz Marques) da editora Tinta-da-China, em que nos dava conta de um país destroçado, mas também das "rosas cor de sangue, esguias, de cabeça levantada como os velhos afegãos" e do chá com leite perfumado com cardamono. No passado Verão, Alexandra Lucas Coelho andou durante três semanas pelo México - pudemos ler-lhe as reportagens, que no fim nos deixavam sempre com vontade de saber mais. Como resultado dessa viagem, acabou de ser publicado na mesma colecção "Viva México", que mais do que um diário é um livro de histórias, de histórias verdadeiras onde a autora consegue partilhar com o leitor o assombro, a alegria, o horror, o choro e a comoção de viajar num país que é como é porque, como escreveu J. M.G. Le Clézio, resultou do enfrentamento de dois sonhos desmesurados: o cruel e devorador "sonho de ouro dos espanhóis", e o "sonho antigo dos mexicas", que era a chegada de homens guiados por Quetzalcoátl, o deus-serpente emplumada, vindos para "reinar de novo entre eles".
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No ano passado, e como resultado da estada corajosa de um mês no Afeganistão, Alexandra Lucas Coelho (n. 1967), grande repórter deste jornal - e aqui o adjectivo "grande" não é retórica, pois ela escreve das melhores reportagens que por cá se fazem - publicou o seu inspirado e precioso "Caderno Afegão" na colecção de literatura de viagens (dirigida por Carlos Vaz Marques) da editora Tinta-da-China, em que nos dava conta de um país destroçado, mas também das "rosas cor de sangue, esguias, de cabeça levantada como os velhos afegãos" e do chá com leite perfumado com cardamono. No passado Verão, Alexandra Lucas Coelho andou durante três semanas pelo México - pudemos ler-lhe as reportagens, que no fim nos deixavam sempre com vontade de saber mais. Como resultado dessa viagem, acabou de ser publicado na mesma colecção "Viva México", que mais do que um diário é um livro de histórias, de histórias verdadeiras onde a autora consegue partilhar com o leitor o assombro, a alegria, o horror, o choro e a comoção de viajar num país que é como é porque, como escreveu J. M.G. Le Clézio, resultou do enfrentamento de dois sonhos desmesurados: o cruel e devorador "sonho de ouro dos espanhóis", e o "sonho antigo dos mexicas", que era a chegada de homens guiados por Quetzalcoátl, o deus-serpente emplumada, vindos para "reinar de novo entre eles".
Comecemos pelo norte, que surge a meio do livro. "O México é o país do hemisfério ocidental mais mortífero para os media e um dos mais perigosos do mundo", quem o diz é a organização Repórteres sem Fronteiras. E ainda mais: "os jornalistas no México vivem agora em constante medo de serem raptados, torturados e mortos. A violência é encorajada pelo facto de aqueles que matam quase nunca serem punidos." No meio do deserto de Sonora, há Ciudad Juárez (sim, aquela que em "2666" Roberto Bolaño baptizou de "Santa Teresa"), o lugar onde "os mortos fazem fila para entrar nas notícias, tal como na morgue". Fica na fronteira, separada dos EUA pelo Rio Bravo, e é a cidade mais violenta do mundo. Durante os quatro dias que Lucas Coelho lá passou, foram mortas 24 pessoas; não foi a macabra contabilidade que lhe interessou, mas saber como se vive numa cidade assim. Para isso há os relatos de um repórter-fotográfico que se delicia com as sonatas de Beethoven tocadas por Claudio Arrau, da líder de um trio "rap" chamado "Batallones Femininos", de um casal americano de anciãos, da bibliotecária que mantém actualizadas as estatísticas de Juárez, da directora de um centro de acolhimento de mulheres, da procuradora que há meia dúzia de anos investiga os milhares de horrendos crimes, e entre muitas outras páginas impressionantes, há a história da "morgue que está na vanguarda mundial quanto à reidratação de cadáveres mumificados".
Mas não foi só este país feito de sangue e de narcotráfico que Alexandra Lucas Coelho visitou, foi também a Cidade do México, a urbe "mais extensa do mundo", a cidade da Casa Azul de Frida Kahlo, dos murais pintados com esse "dom arcaico da cor" por Diego Rivera, das multidões, dos resultados do confronto entre o ouro e a magia, entre Deus e os deuses, entre o conquistador Cortés e o azteca Moctezuma, entre o México dourado e o México de "terra descalça", onde Frida triunfou diariamente sobre a morte (que tanto agrada aos mexicanos). E no sul, Oaxaca, a Chiapas do subcomandante Marcos e dos zapatistas, o Yucatán, entre outros lugares.
À semelhança do que já acontecia em "Caderno Afegão", também neste livro há uma dimensão poética que o eleva acima de um comum livro de viagens, isto é grande "literatura de viagens". E não apenas por estar também povoado de escritores e poetas (Carlos Fuentes, Octávio Paz, Carlos Monsiváis), mas porque há um verdadeiro e talentoso trabalho com as palavras, como por exemplo o que a autora faz ao intercalar na narração palavras castelhanas com um toque tipicamente mexicano. Este livro é uma delícia, que sem dúvida poderá ombrear com os clássicos do género.
Se a inveja for mesmo um pecado, "Viva México" pode tornar-nos pecadores, porque invejamos a coragem necessária para esta viagem fora dos normais circuitos (mesmo para os mais afoitos), o despojamento para atravessar lugares da selva mexicana onde os habitantes do Velho Mundo pouco se aventuram.