A tabela periódica
Aaronson corre às voltas para evitar decisões sobre o caminho a seguir Baumann lava o lixo, como se estivesse a restaurar antiguidades. Camer faz inquéritos a transeuntes com perguntas como: "já maltratou animais?". Cohen é um intelectual vítima de tiques nervosos. Glasser, que tem o coração ligado a uma bateria de camião, frequenta um bordel. Goldstein, um homem cego, vive fascinado com os elementos microscópicos da tabela periódica. Holzberg arquitecta uma rotunda quadrada, para que os automobilistas façam realmente um círculo em volta dela. Kashine, um adolescente, escreve "não" em todo o lado. Matteo perdeu o emprego.Estes casos, mais do que contos, fazem parte de uma taxinomia do comportamento humano. Gonçalo M. Tavares escolheu duas dezenas e meia de nomes (quase todos judaicos) retirados de um trabalho de Daniel Blaufuks, e os textos são acompanhados de inquietantes fotos de manequins. O design gráfico e ilustração fotográfica são de Diogo Castro Guimarães e Luís Maria Baptista.
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Aaronson corre às voltas para evitar decisões sobre o caminho a seguir Baumann lava o lixo, como se estivesse a restaurar antiguidades. Camer faz inquéritos a transeuntes com perguntas como: "já maltratou animais?". Cohen é um intelectual vítima de tiques nervosos. Glasser, que tem o coração ligado a uma bateria de camião, frequenta um bordel. Goldstein, um homem cego, vive fascinado com os elementos microscópicos da tabela periódica. Holzberg arquitecta uma rotunda quadrada, para que os automobilistas façam realmente um círculo em volta dela. Kashine, um adolescente, escreve "não" em todo o lado. Matteo perdeu o emprego.Estes casos, mais do que contos, fazem parte de uma taxinomia do comportamento humano. Gonçalo M. Tavares escolheu duas dezenas e meia de nomes (quase todos judaicos) retirados de um trabalho de Daniel Blaufuks, e os textos são acompanhados de inquietantes fotos de manequins. O design gráfico e ilustração fotográfica são de Diogo Castro Guimarães e Luís Maria Baptista.
Enquanto "Uma Viagem à Índia" estudava a civilização ocidental em tom falsamente épico, "Matteo Perdeu o Emprego" tem um registo minimalista e elíptico. É uma sucessão de "case studies" que segue a ordem alfabética e termina em "Matteo". E cada texto nomeia, a bold, o protagonista do texto seguinte, incluindo um, chamado Nedermeyer, que nem chega a aparecer. Fica-se com a ideia de um livro-jogo, embora desta vez o intento de Tavares esteja longe de ser lúdico.Estas histórias, noutras circunstâncias, podiam ser lidas como contos fantásticos, embora não sobrenaturais. Há um ambiente "Twilight Zone" nas narrativas da mulher sem braços, da experiência médica com animais, do técnico da cadeira eléctrica, do prostituto tatuado ou da rua cujos prédios têm todos o número 217. Como os textos são curtos e alguns têm um final em aberto, ficamos fascinados com aquelas situações, à falta de empatia pelas personagens. Mas já sabemos que não é essa a estratégia de Gonçalo Tavares. Na verdade, as narrativas vêm acompanhadas de um longo posfácio, "Notas sobre Matteo perdeu o emprego", que serve como inusitado guia de leitura. É um texto fulgurante de inteligência, mas tem talvez o defeito de estreitar as histórias a uma determinada intenção autoral.
O autor confessa que estes contos são alegorias, e não recusa a dimensão de ensaios ficcionados: "Os nomes das personagens são assim nomes de acontecimentos. Dar um nome humano a algo que acontece no mundo é uma das maneiras de humanizar o monstruoso e o informe que não entendemos. / (...) De qualquer maneira, o narrador actua assim: o olhar fixa-se num pormenor de uma pequena narrativa e é esse pormenor que faz a ligação com a pequena narrativa seguinte. (...). Há, de facto, aí, como em qualquer romance ou obra de ficção, um sistema de ligações" (pág. 207). Essas ligações narrativas são também ligações filosóficas: "Matteo Perdeu o Emprego" é uma pequena história da racionalidade. Uma e outra vez, Tavares insiste nas questões da decisão e da crença, nos motivos por detrás das acções, mas sem recurso a nenhuma psicologia que não seja uma psicologia colectiva. "Matteo" é uma colmeia humana, uma "cartografia da desordem".E assim entendemos que Baumann boicota a noção de detrito, fundamental numa comunidade humana. Que Camer faz inquéritos porque a liberdade de perguntar é maior que a liberdade de responder. Que Glasser não receia exibir fisicamente a sua mortalidade quando sacia os seus instintos. Que o "não " de Kashine mostra que a verdade é aleatória, e que a insubmissão verbal pode ter consequências devastadoras. Tavares está decerto consciente de que essa sua "interpretação autêntica" é contestável, mas na verdade essa interpretação é apenas mais uma ligação.
Citando autores como Musil, Jünger ou Agamben, o escritor usa estas "ligações" como exemplos da ténue fronteira entre a barbárie e a civilização. Tavares volta a propor um entendimento da humanidade com base em categorias racionais que escapam à racionalidade iluminista: a racionalidade do dinheiro, a racionalidade do instinto, a racionalidade do conflito, a racionalidade das imagens E não se esquece de acrescentar que muitas questões filosóficas são na verdade geométricas ou aritméticas. É por isso que estes "nomes" e "acontecimentos" vivem em cidades que Gonçalo Tavares apresenta graficamente como uma tabela periódica alternativa. Uma tabela feita de cidades que funciona como um ícone deste estudioso dos elementos.