A arte urbana de peito aberto numa galeria
Para ver a melhor arte urbana portuguesa há, normalmente, duas formas. Ou se está dentro do meio e, com essa vantagem, facilmente se chega aos lugares onde as obras repousam (ruas, edifícios, cidades). Ou, sem mapa, deixa-se ao acaso e o ao tempo a tarefa de ditar os encontros. Enfim, confia-se na generosidade do quotidiano. Ora, a partir de amanhã, e até Janeiro, existe outra forma, mais simples e imediata: "Underdogs", na Galeria Vera Cortês, em Lisboa, com trabalhos de ±, Adres, Kusca, Mar, Obey, Ram, Smart Bastard, Sphiza, Tosco e Vhils (também conhecido como Alexandre Farto).
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Para ver a melhor arte urbana portuguesa há, normalmente, duas formas. Ou se está dentro do meio e, com essa vantagem, facilmente se chega aos lugares onde as obras repousam (ruas, edifícios, cidades). Ou, sem mapa, deixa-se ao acaso e o ao tempo a tarefa de ditar os encontros. Enfim, confia-se na generosidade do quotidiano. Ora, a partir de amanhã, e até Janeiro, existe outra forma, mais simples e imediata: "Underdogs", na Galeria Vera Cortês, em Lisboa, com trabalhos de ±, Adres, Kusca, Mar, Obey, Ram, Smart Bastard, Sphiza, Tosco e Vhils (também conhecido como Alexandre Farto).
Não se trata da apresentação de um grupo de artistas ou de uma mera exposição. Antes, do primeiro momento de um projecto com um objectivo específico: criar uma plataforma, no espaço da arte contemporânea, para as novas linguagens da arte urbana. Falamos do graffiti, do stencil e (não sabiam?) da fotografia, da escultura e até do vídeo. E Vera Cortês e Vhils, os criadores de "Underdogs", adiantam outras iniciativas: uma selecção de múltiplos do estúdio londrino Picture On Walls, e um livro, com lançamento antes do fim da mostra, do jornalista e autor Miguel Moore sobre a história destas artes nas ruas portuguesas. "Começa pelos murais políticos do pós-25 de Abril, passa pelo graffiti influenciado pelo hip-hop e chega até à street-art actual e serve para contextualizar o aparecimento dos artistas desta exposição", revela Vhils. "Eles têm pontos de ligação. Não através do tag ou do graffiti, mas de uma cultura visual comum dominada pela publicidade, a televisão ou a Internet".
A ironia do nome "Underdogs" evoca, sem desgostos, velhas e ressuscitadas fronteiras: "A arte urbana sempre foi marginalizada pelas instituições, vista como uma forma menor de arte, distante das galerias. E [o nome] assume isso. Ao mesmo tempo remete para trabalhos que se fazem há quase 15 ou 20 anos, com investimento próprio dos artistas, sem apoios exteriores". Vera Cortês contrapõe com uma opinião menos dramática: "Não houve durante esse período uma aproximação desses artistas às galerias. Há 15 anos o mercado era muito diferente".
Comunicação e activismo
Com efeito, as parangonas que algumas publicações têm dedicado a Bansky, a estrela britânica da arte urbana (vende em leilões e foi objecto do documentário "Exit through the gift shop", com estreia prevista em Portugal), parecem assinalar o regresso de uma relação pouco animada desde os graffitis de Jean-Michel Basquiat ou Keith Haring, embora não esgotada (se pensarmos no campo da arte contemporânea portuguesa, sobressaem as intervenções de Rigo 23 em espaços públicos). "Underdogs", no entanto, sugere outras filiações - as das subculturas musicais, da street culture, da BD undergound, da arte de protesto - e tem como elemento central um conceito pouco caro à arte contemporânea: a comunicação. "Os artistas que estão aqui usam a rua como suporte. Intervêm num espaço onde passam milhares de pessoas todos os dias, que tem um público gigante. E isso nota-se nas peças. Algumas têm conceitos mais elaborados, a maioria procura comunicar, tem uma mensagem". Ilustram essa urgência os jogos de linguagem dos stencils de ± ("Perda Filosofal"), as figuras poéticas de Adres, ou a recuperação de ícones da cultura portuguesa por parte de Kusca (Camões, Beatriz Costa, Fernando Pessoa).
Outro traço da arte urbana é o envolvimento com as comunidades, a vontade de intervir nos contextos sociais. Vhils quer dar um exemplo e abre as páginas de um catálogo para mostrar o que J.R., artista francês, fez às fachadas de um favela na Libéria: "Pintou-as com os rostos e os olhos dos seus habitantes. Mostrou para o exterior quem são as pessoas que aqui vivem. E criou actividades de intervenção social dirigidas aos habitantes. Nesse aspecto, a arte urbana aproxima-se do activismo. E não me incomoda essa proximidade". O próprio já a experimentou quando integrou um projecto de graffiti no bairro da Arrentela: "Era um dos mais problemáticos da Margem Sul. Reuni-me com o [rapper] Chullage e desenvolvemos um projecto de reinserção para tirar os miúdos da rua. Depois fiz o mesmo na Amadora e no bairro de Alagoas, na Régua, com o Ram e o Mar, onde pintámos o bairro todo. Ainda hoje está como o deixámos, fizemos do graffiti uma forma das pessoas comunicarem com o exterior. E julgo que dei às pessoas um pouco do que ganho e invisto como artista". Mas não deve ser menosprezado um factor, sublinha Vera Cortês: "É obrigatório para este tipo de trabalho o envolvimento da população. Projectos mais alargados implicam uma colaboração entre os artistas e as comunidades".
Devemos falar de arte pública? Vhils, desconfortável com categorias ou classificações, aceita o termo sem se rever na sua interpretação "oficial": "As instituições que encomendam peças de arte pública têm uma relação mais forte com as instituições de arte contemporânea e por isso não as encomendam a quem faz 'graffiti' ou 'stencil'. Se calhar é uma questão geracional. Porque já há um público que nos acompanha e compreende o trabalho que fazemos". A galerista concorda e complementa: "Há coleccionadores nacionais e internacionais que só compram obras deste tipo de artistas. Outros passaram a comprar".
Na parede e sobre tela
Vera Cortês e Vhils começaram a trabalhar juntos em 2005. "O Alexandre tinha 17 anos, ainda estudava no ensino secundário. Fez uma intervenção na parede durante uma exposição da Gabriela Albergaria e decidi desenvolver o currículo que ele já tinha na rua". Feita a apresentação pública da obra, seguiram-se estudos na Saint Martins School, em Londres, outras exposições (em Portugal e na capital inglesa) e a presença em feiras de arte. Até "Underdogs" que afinal, dá também o título à reunião dos dez nomes. "Foi um desafio que ele me lançou. Estava cada vez mais envolvido no meio da arte urbana e todos os dias falava-me de novos criadores".
O projecto tem uma dimensão didáctica (basta lembrar a edição do livro de Miguel Moore) e o encontro com os trabalhos, por vezes subvertendo as nossas expectativas sobre os suportes e processos utilizados, surpreende e intriga. Vhils mostra as suas figuras, esculpidas nas paredes ou "escavadas" a partir de camadas de cartazes embebidos em resina. Vemo-las nas fotografias de intervenções em Torres Vedras e Moscovo e "in loco" numa das salas. Também especificamente para o espaço da Vera Cortês, são esperados graffitis de Obey (1974) e Tosco (1981).
O primeiro pertence à velha guarda da arte urbana e contribuiu para a expansão da linha ilegal do graffiti clássico. As suas imagens são, por isso, reminiscentes da cultura popular do século XX: o hip hop, os murais de Los Angeles, o graffiti como fundo dos corpos imortalizados pela fotografia da música popular.
Já Tosco segue uma linhagem devedora do comix underground dos anos 70, da animação e da cultura trash: imaginem Walt Disney, S. Clay Wilson e Savage Pencil numa furiosa pintura colectiva.
A figuração expressiva e expressionista (outro motivo que explica o pudor da arte contemporânea face à arte urbana?) também pontua as propostas de Sphiza, Mar e Ram, mas nenhum vai pintar paredes. Todos trazem obras em suportes que normalmente não associaríamos à rua. Sphiza (1988), única mulher, expõe duas telas com figuras humanas e retratos, e Mar (1974), membro do colectivo VSP, conhecido pelas suas pinturas gordas e coloridas, optou por uma instalação e uma escultura feita com lixo. As telas são igualmente as superfícies das imagens abstractas, próxima de uma "action-painting" feita sob o céu azul, de Ram (1976), que tem desenvolvido esculturas a partir de elementos naturais.
Com tácticas irónicas ou políticas, apresentam-se, Adres, Kusca e ±. Expõem peças onde é notório um maior pendor conceptual e crítico. Particularmente activo na cidade do Porto, ± aposta na simplicidade, na herança do agit-prop, alterando o sentido de frases e palavras do património cultural ou do discurso do quotidiano. A violência, o riso, a ênfase na mensagem directa atravessam os seus stencils ("Perda Filosofal" ou "To Buy or Not To Be", "Uma Casa Portuguesa Sem Certeza) ou despertam numa metralhadora que ameaça pintar paredes.
Kusca transforma figuras da cultura tradicional e literária portuguesa em personagens inquietantes: numa impressão emoldurada Camões pisca-nos o olho, num pequeno monitor corre um filme com uma Beatriz Costa psicadélica. Quanto a Adres (1981), vai instalar uma porta onde marcará um dos seus poéticos stencils (visíveis nas ruas de Lisboa e arredores), que aproveitam a as falhas ou os desenhos nas paredes para interpelar quem passa.
E este epílogo de "Underdogs" chega com as fotografia de artistas em plena actividade clandestina, algures em Portugal ou noutro país europeu, prontos a assaltar visualmente um comboio. São imagens assinadas por Smart Bastard (1987), autodidacta que há anos documenta a pintura ilegal de comboios e metros, viajando com passes falsificados do Interail. Como os outros "underdogs", a sua assinatura é o seu nome. A cidade o seu atelier. E só isso que precisamos de