Déjà vu fatal
Ninguém melhor do que Sándor Márai (1900-1989) para nos dar em grande angular aquilo em que se transformou o Império Austro-Húngaro. Em síntese, podemos dizer que a obra subsume a implosão do Império (1918), a queda da monarquia (1919), o fim da revolução bolchevique húngara (1920) e a subsequente "regência" de Miklós Horthy, o almirante que impediu o regresso dos Habsburgos, conseguindo manter-se no poder até 1944, ano em que foi expulso pelos nazis. Anti-comunista declarado, Márai partiu para os EUA em 1948. No exílio, viu a cidade onde nasceu mudar de nome e nacionalidade: a primitiva Kassa é hoje a cidade eslovaca de Kosice.Em permanente rota de colisão com a História, Márai foi até ao início dos anos 1950 um dos intelectuais mais populares e respeitados da Hungria. Escreveu ficção, poesia, ensaio e dramaturgia. Romances como "Rebeldes" (1930), "A Herança de Eszter" (1939) e "As velas ardem até ao fim" (1942), entre outros, fazem parte da herança cultural europeia.
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Ninguém melhor do que Sándor Márai (1900-1989) para nos dar em grande angular aquilo em que se transformou o Império Austro-Húngaro. Em síntese, podemos dizer que a obra subsume a implosão do Império (1918), a queda da monarquia (1919), o fim da revolução bolchevique húngara (1920) e a subsequente "regência" de Miklós Horthy, o almirante que impediu o regresso dos Habsburgos, conseguindo manter-se no poder até 1944, ano em que foi expulso pelos nazis. Anti-comunista declarado, Márai partiu para os EUA em 1948. No exílio, viu a cidade onde nasceu mudar de nome e nacionalidade: a primitiva Kassa é hoje a cidade eslovaca de Kosice.Em permanente rota de colisão com a História, Márai foi até ao início dos anos 1950 um dos intelectuais mais populares e respeitados da Hungria. Escreveu ficção, poesia, ensaio e dramaturgia. Romances como "Rebeldes" (1930), "A Herança de Eszter" (1939) e "As velas ardem até ao fim" (1942), entre outros, fazem parte da herança cultural europeia.
Traduzido directamente do húngaro, "Divórcio em Buda" (1935) chegou agora à edição portuguesa. Márai nunca escreveu senão na língua natal, e só depois de dar um tiro na cabeça, semanas antes da queda do muro de Berlim, é que o mundo de língua inglesa descobriu (as primeiras traduções são de 2001) um autor que se mede com Kafka e Musil.
Conceitos como os de patriotismo, honra e lealdade são traves-mestras da obra deste "déraciné" que escreveu sempre ao arrepio do ar do tempo. Vindo de outro tempo, é desse tempo que faz eco. Associamos com facilidade a sua pessoa à figura austera do juiz Kristóf Komives, alguém "a quem se poderia confiar a tradição [...] os segredos práticos da judicatura, o seu espírito." As memórias coligidas em "Confissões de um Burguês" (1934) dão a medida do desacerto de Márai com a evolução social e política da Europa Central. Os romances, e este em particular, acentuam essa linha de fractura.
Sem nunca carregar no traço, o autor faz o retrato subtil dos que sobreviveram ao desmoronamento da Hungria. Homens e mulheres insatisfeitos com as novas fronteiras, hábitos novos, a terra perdida da Transilvânia. A estrutura do livro lembra "Vinte e quatro horas na vida de uma mulher" (1927), romance de Stefan Zweig, pois, também aqui, o essencial da intriga é decidido no lapso de uma noite.
Com a Europa prestes a desabar, Komives e Hertha sentem-se protegidos pela campânula da respeitabilidade: "Ambos pertenciam à mesma classe social, tinham sido educados nos mesmos preceitos e normas, pegavam na faca e no garfo da mesma maneira..." Ali no bairro do Castelo, "o sumo do requinte", descendentes de famílias nobres sem recursos ("funcionários de nome sonante em quartos alugados") cruzam-se com escritores, artistas e os novos-ricos de segunda geração que ocupam as casas da colina. Denominador comum: todos emulam "as excentricidades e o estilo de vida dos inquilinos dos palacetes."
Um "déjà vu" ilumina a intriga: lendo a carta em que o advogado a informa dos trâmites do divórcio, uma mulher (Anna) reconhece no nome do juiz (Komives) que ditará a sentença. Lembra-se: viu esse homem uma vez, num baile: "foi como um terramoto, como se terra e céu se abrissem", um encontro para a vida. Passaram dez anos e três meses. Imre Greiner, o médico que foi seu marido durante oito anos, fica a saber que ela não esqueceu. Agora interpela Komives: pensava em Anna quando estava ("quero dizer, fisicamente") com Hertha? Komives não responde. Por que carga de água será o juiz o responsável pelo suicídio de Anna?