Quando o medo ultrapassa a realidade: a história de um livro proscrito

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As "Novas Cartas Portuguesas" (NCP) são "um documento feminista, porque contra a opressão de um grupo social, as mulheres", clarifica uma das suas autoras, Isabel Barreno, 40 anos depois de, juntamente com Teresa Horta e Maria Velho da Costa, ter tido a ousadia de escrever o que escreveu. Peremptória, acusa: "Se um homem faz um texto sobre a sua existência ninguém fala em masculinista. E toda a gente aceita que o representante universal da humanidade é o homem. O homem é o genérico, a mulher é a especificidade".

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As "Novas Cartas Portuguesas" (NCP) são "um documento feminista, porque contra a opressão de um grupo social, as mulheres", clarifica uma das suas autoras, Isabel Barreno, 40 anos depois de, juntamente com Teresa Horta e Maria Velho da Costa, ter tido a ousadia de escrever o que escreveu. Peremptória, acusa: "Se um homem faz um texto sobre a sua existência ninguém fala em masculinista. E toda a gente aceita que o representante universal da humanidade é o homem. O homem é o genérico, a mulher é a especificidade".

Também Teresa Horta classifica as NCP como "um livro político". Mas garante que "não foi pensado como uma bíblia do feminismo": "Até porque a Maria Velho da Costa recusa o tema, apesar de no seu íntimo ser mais feminista do que eu." Maria Velho da Costa foi a única das três Marias que não teve disponibilidade para falar com o PÚBLICO, por motivo de doença.

"Não só o livro, como a Teresa e eu própria ficámos com o rótulo de feministas. A Maria de Fátima tratou de se livrar do rótulo, prevendo o prejuízo. Eu e a Teresa não, porque estavam em causa as nossas convicções", continua Isabel Barreno, concluindo que "em Portugal ainda hoje se usa o termo feminista de forma caluniosa". Em 1972 era pior: "Éramos vistas como extra-terrestres. Aquilo abalou muito fundo os alicerces." Ao ponto de ter estado directamente ligado ao nascimento do Movimento de Libertação das Mulheres (MLM), em casa de Isabel Barreno na noite de 7 de Maio, depois de as três autoras terem sido absolvidas da acusação de pornografia e atentado ao pudor. Dirigente do MLM, assim como Isabel Barreno, Teresa Horta considera que foi "o único movimento feminista até hoje em Portugal". E lamenta: "Continua a ser uma grande falha da sociedade portuguesa não haver um movimento feminista que não seja apenas um movimento de mulheres."

Isabel Barreno já nem se lembra porque é que a reunião foi em sua casa: "Provavelmente porque era a que tinha a casa maior, com a sala maior." Já tinha falado com Teresa Horta que "era importante fazer um movimento de mulheres", mas "a formação do MLM foi espontânea": "Éramos algumas dezenas de mulheres, nunca fomos muitas."

Mulheres normais

Reflectindo hoje sobre aqueles tempos, Isabel Barreno - também autora do outro grande documento feminista escrito em Portugal "A Morte da Mãe", editado em 1979, que "chegou a ter mais de mil páginas", com o primeiro capítulo em francês, convencida que a autora estava de não o poder publicar em Portugal - defende que "a polémica em torno das NCP e o julgamento estiveram na origem da perspectiva de igualdade de direitos entre mulheres e homens reconhecida pela Constituição e no direito de família após o 25 de Abril".

Mas a ideia "era fazer o retrato da sociedade portuguesa", sublinha Teresa Horta. Acabara de ter sido espancada na rua por um homem, naquele ano de 1970,  na sequência do escândalo que gerou o seu livro "Minha Senhora de Mim", editado em 1967 e apreendido pelo regime. "Então a reacção foi esta? Se com uma é assim, então vamos fazer as três, vamos falar de Portugal."

Tantos anos depois, as NCP permanecem de uma actualidade imensa. "Nós tocámos em coisas tabu: a masturbação, a menstruação, o prazer da mulher que é diferente do que o homem acha que é o prazer da mulher. As mulheres escrevem sobre mulheres normais e nós fizemos isso. E isso causou escândalo", argumenta Teresa Horta. Ainda hoje, não é evidente: "Nas aulas, a Ana Luísa Amaral faz sempre um jogo. Dá um texto das 'Cartas' onde se descreve um corpo de homem, mas, antes do fim, pergunta o que é e os alunos dizem que é uma mulher. É um lugar comum que a descrição de um corpo é sempre uma mulher."

Não negando que, à época, os escritores foram genericamente "solidários", a autora diz que não houve verdadeiro apoio e entendimento da radicalidade do livro: "A mim, só o Cardoso Pires e o Artur Portela Filho me elogiaram pessoalmente. O assunto nunca foi tratado seriamente. Mesmo a seguir ao 25 de Abril, a RTP mandou o Fialho Gouveia fazer-nos uma entrevista e ele acabou-a a dizer que é um livro muito chato." Isabel Barreno lembra a reacção de Raul Rêgo quando lhe foram perguntar se as apoiava: "Há coisas que as senhoras não deviam sequer pensar, muito menos escrever."

"Um recreio"

Apesar de pensadas e escritas em conjunto pelas três escritoras, Teresa Horta recorda que as NCP "são sempre textos individuais, nunca houve interferências de nenhuma no texto das outras". "Podíamos questionar-nos umas às outras e os textos eram muito discutidos, tanto que as discussões passaram para a nossa vida. Por isso uma das cartas diz: quando começamos todas tínhamos homem e no fim é só uma. Tínhamos a consciência de que mexia na nossa vida", continua. Foi, salienta, "a primeira vez no mundo que três mulheres, já escritoras, abdicaram dos seus textos sem os assinarem individualmente, abdicaram da autoria".

No entanto, as conversas a três eram importantes. Não se inibiam, por exemplo, de fazer pedidos. "A certa altura, a Maria Velho da Costa pediu-me para não matar a personagem de um homem, que ela tinha projectos para ele. Eu andava depressiva e matava as personagens", ri Teresa Horta. E continua a contar: "Havia conversas. Risos. Foi muito divertido. A criatividade foi a galope. Era um recreio. Mas era também muito sério. Houve textos que nos perturbaram muito. No fim, a coisa endureceu. Começaram-se a notar posições diferentes sobre o quotidiano. No final, as cartas em que há acusações têm a ver com o real. Havia conivência e grande solidariedade."

Indo mais longe na recordação do quotidiano daqueles nove meses que as NCP levaram a ser escritas, Teresa Horta lembra que as três escritoras tinham muito em comum. "A Maria Velho da Costa e a Isabel Barreno trabalhavam juntas no departamento de relações públicas do Instituto Nacional de Investigação Industrial; todas tínhamos lançado livros: a Maria Velho da Costa a 'Maina Mendes', a Isabel Barreno o 'Os Outros Legítimos Superiores' e eu o 'Ambas as Mãos sobre o Corpo'. Estávamos as duas na Europa América e tínhamos lançado os livros no mesmo dia", recorda.

É nesse momento que, como jornalista de "A Capital", Teresa Horta entrevista primeiro Isabel Barreno, depois Maria Velho da Costa. "Passámos a ter um almoço semanal no restaurante 13, no Bairro Alto, às quartas-feiras. Tínhamos um projecto vago de escrita em comum." E decidiram arrancar.

Estabelecido o projecto, encontraram a mulher que iria servir de eixo a esta análise da sociedade portuguesa. "Encontramos uma mulher-centro, a Mariana Alcoforado: tinha a clausura, tinha a paixão, o homem que usa e larga. A Isabel, ao princípio, disse que não queria a Mariana, mas é a Isabel que na semana seguinte traz uma carta", relata Teresa Horta.

Cada uma escrevia o que queria, mas havia regras: "Tínhamos de fazer com papel químico na máquina e levar cópias para as outras, e tínhamos de ler alto, para acabar com a solidão da escrita", descreve Teresa Horta, acrescentando que outra regra era que tinham de escrever sempre sob a forma de carta.  É então que passam a ter dois encontros semanais: "Mantivemos o almoço no 13, onde às vezes falávamos do livro, mas nunca só do livro. E depois um encontro para o livro. Aí líamos umas às outras e comentávamos".

"Lá nos vão rapar o cabelo!"

"É um livro corajoso. É feito sob o fascismo. Não se pode esquecer isso. Se não fosse o 25 de Abril tínhamos ido presas", frisa Teresa Horta, lembrando o processo que decorreu no Tribunal da Boa-Hora e que terminou já depois da revolução, com a ilibação das três escritoras: "É um documento político e queriam que fosse visto como pornográfico e obsceno." Por isso, nem sequer foram nunca incomodadas pela PIDE. O processo passou pela Polícia Judiciária e as três autoras foram interrogadas pelo "agente Henrique Parente, que era o que ouvia as prostitutas, os homossexuais e as escritoras malditas", sorri, Teresa Horta. Luís Francisco Rebelo, advogado do processo, lembra que "o livro foi apreendido cinco dias após publicado", pelo mesmo agente da PJ que dirigiu a apreensão da 'Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica', de Natália Correia e Ary dos Santos.

Numa das últimas "Conversas em Família" Marcello Caetano "disse na TV que havia três mulheres em julgamento por pornografia e obscenidade que não eram dignas de serem portuguesas", lembra Teresa Horta. "Ele condenou Judith Teixeira e Botto em jovem. E no fim, a nós."

No primeiro dia do julgamento, estavam também a ser julgados "os presos da ARA, o Carlos Coutinho e outros": "Eu e a Maria Velho da Costa fomos perguntar a um polícia de pingalim porque estava tanto carro com polícias. Ele respondeu: 'É o julgamento das três Marias e elas devem ir presas'. A Maria Velho da Costa virou-se para mim e disse: 'Lá nos vão rapar o cabelo!'".

 Logo na primeira sessão, "houve muita gente à porta, os escritores queriam ser testemunhas, mas só os familiares e os amigos é que podiam ir". "A minha mãe e a da Maria Velho da Costa estavam sempre", diz. Era para ser um julgamento sem assistência, mas "em Maio encheu até à porta e aí, no fim, é que se marcou a primeira reunião na casa da Isabel".

Como directora da editora Estúdios Cor, Natália Correia impôs a edição do livro, ameaçando demitir-se. E aceitando oficialmente que algumas cartas fossem  retiradas, "depois foi à tipografia incluí-las de novo". Ora, segundo Teresa Horta, "um dos textos que entrou na tipografia foi o que diz que os homens portugueses são bons na arena mas maus na cama".

O mesmo texto pelo qual, "no julgamento, o promotor público atirou o livro para cima da mesa num gesto teatral": "Foi uma cena muito ridícula. Até o juiz tapou a cara para rir. A Isabel Barreno ainda hoje tem esse livro." Verdade, confirma a própria: "O delegado do Ministério Público atirou o livro e, quando se esvaziou a sala, eu vi-o e agarrei-o. Tinha as anotações para a acusação. Pelo menos dei trabalho ao homenzinho, teve de o ler e anotar outra vez."

Cenas de bastidores de um processo na praça pública: "Foi duro, mas tínhamos momentos engraçados. E pudemos sentir a força da solidariedade do apoio internacional das mulheres, a invasão de embaixadas portuguesas, as manifestações."