Chris Marker, o gato e os filmes

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Pode parecer uma coisa extraordinária, mas infelizmente é uma coisa corriqueira: nunca um filme de Chris Marker foi estreado comercialmente em salas portuguesas. E já lá vão mais de 50 anos desde que há filmes de Chris Marker. Demasiado "autor", muito pouco "comercial"? Má resposta, até porque justamente é este tipo de raciocínio que, de facto, cria objectos "comerciais" e objectos de "autor". Como Marker tem filmes que, noutros países, foram muito vistos e ficaram famosos, que esta constatação da histórica debilidade do circuito comercial português sirva para reiterar uma verdade que devia ser ponto assente (mas não é): uma visão do cinema - do passado e do presente - fundada apenas no ramerrame semanal do que entra e sai das salas está condenada a ser parcelar e largamente incompleta. E também por isto, a retrospectiva Marker (ainda que bastante incompleta) é capaz de ser o acontecimento mais importante desta edição do Estoril Film Festival.

Chris Marker (que nasceu em 1921 e reitera a tendência dos cineastas europeus para a longevidade: é preciso ser um osso duro de roer para se ser um "cineasta europeu") é razoavelmente inqualificável. Já fez um pouco de tudo, se quisermos recorrer às tradicionais e redutoras categorias: "documentário", "ficção", "ensaio", por vezes tudo junto. Estimulou o diálogo entre o cinema classicamente entendido e as novas artes, e os novos suportes, da imagem (como Godard, acolheu o vídeo de braços abertos). Em termos pessoais, ganhou fama (por ele cultivada) de secretismo. Totalmente avesso a mundanidades, as suas aparições públicas são raras, as entrevistas também. Mas gosta de se fazer "representar", normalmente por via dos seus animais preferidos, os gatos, que com frequência também aparecem nos seus filmes (os espectadores de "As Praias de Agnès", de Varda, devem lembrar-se do gato de Marker).
Tentámos entrevistá-lo por e-mail - coisa sempre ingrata - e mandámos-lhe cinco perguntas mais ou menos esforçadas. Respondeu com um texto curto, muito delicado e muito bem escrito, a justificar por que era incapaz de lhes responder. Transcrevemos uma passagem desse texto, que nos servirá de ponto de partida para ir um pouco mais além: "Sinto-me muito pouco 'cineasta', e por uma razão muito simples: o meu itinerário neste baixo mundo foi feito por etapas que na maior parte foram ocasião para um filme, mas onde o filme não era o elemento mais importante. A viagem, os encontros, as recordações, têm um lugar muito maior na minha bagagem memorial do que uma hora ou duas de projecção cujos detalhes se esvaem com o tempo (não pensa certamente que eu revejo os meus filmes?...)".

As viagens, claro. Marker tem muito que o aproxime de Joris Ivens, recentemente evocado no DocLisboa, e como ele filmou em vários cantos do mundo, deixando testemunho de não poucos momentos históricos. Os seus filmes "cubanos" (como "Le Fond de l'Air est Rouge", de 1977, incluído na retrospectiva), por exemplo, à época atacados pelo seu "propagandismo", mas que vistos hoje parecem ter um sentido mais complexo e linearmente indecifrável, ou os seus filmes asiáticos, especialmente os "japoneses" (de que o festival vai mostrar três: "AK", documento sobre Kurosawa na rodagem de "Ran"; "Sans Soleil", "retrato de Tóquio" que é a obra-prima de Marker; e "Level 5", investigação sobre a relação das "novas tecnologias" com a História, a partir de um dado concreto, a batalha de Okinawa durante a II Guerra). Foi cúmplice da "nouvelle vague" e, digamos, reclamado por ela durante esses breves três/quatro anos em que, de facto, existiu uma "vaga nova", mas os seus encontros anteriores (os filmes com Resnais nos anos 50) e posteriores (o encontro com Godard, Resnais e, já agora, Joris Ivens, em "Loin du Vietnam", filme colectivo) não são mais significativos do que os momentos em que o seu percurso foi intrinsecamente pessoal. Não obstante (e vamos citar o nome Godard pela segunda vez), também Marker usou, sobretudo nos últimos anos, o cinema como forma de contar - evocar, fazer - a história do cinema: já mencionámos o filme sobre Kurosawa (feito nos anos 80), devemos mencionar também dois outros filmes sobre cineastas igualmente mostrados no festival, "Une Journée d'Andrei Arsenevitch" (de 1999, sobre Tarkovski), e sobretudo o fabuloso "Le Tombeau d'Alexandre" (1992), uma lembrança, e quase o reconhecimento de uma filiação, do soviético Aleksandr Medvedkine.

Por toda a saliência espectacular do seu gesto artístico (também uma reflexão sobre a fronteira entre o cinema e a fotografia), o mais célebre filme de Marker, com culto aparentemente reavivado nos últimos anos e constante do programa do festival, é "La Jetée", curta-metragem de 1962, inteiramente "composta" com fotografias e voz "off" (segundo as pobres categorias em vigor, "experimental") para um relato de ficção científica pós-apocalíptica que é em si mesmo um exercício narrativo a conjugar o passado e o futuro (e portanto a questionar o eterno "presente" que o cinema, em princípio, é). Numa aparição rara, Marker virá ao Estoril apresentar a sua obra, num programa que inclui ainda um debate e uma "master class" com Bernard Eisenschitz, e cuja cereja é a primeira apresentação mundial de "Ouvroir the Movie", o seu último filme.

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Pode parecer uma coisa extraordinária, mas infelizmente é uma coisa corriqueira: nunca um filme de Chris Marker foi estreado comercialmente em salas portuguesas. E já lá vão mais de 50 anos desde que há filmes de Chris Marker. Demasiado "autor", muito pouco "comercial"? Má resposta, até porque justamente é este tipo de raciocínio que, de facto, cria objectos "comerciais" e objectos de "autor". Como Marker tem filmes que, noutros países, foram muito vistos e ficaram famosos, que esta constatação da histórica debilidade do circuito comercial português sirva para reiterar uma verdade que devia ser ponto assente (mas não é): uma visão do cinema - do passado e do presente - fundada apenas no ramerrame semanal do que entra e sai das salas está condenada a ser parcelar e largamente incompleta. E também por isto, a retrospectiva Marker (ainda que bastante incompleta) é capaz de ser o acontecimento mais importante desta edição do Estoril Film Festival.

Chris Marker (que nasceu em 1921 e reitera a tendência dos cineastas europeus para a longevidade: é preciso ser um osso duro de roer para se ser um "cineasta europeu") é razoavelmente inqualificável. Já fez um pouco de tudo, se quisermos recorrer às tradicionais e redutoras categorias: "documentário", "ficção", "ensaio", por vezes tudo junto. Estimulou o diálogo entre o cinema classicamente entendido e as novas artes, e os novos suportes, da imagem (como Godard, acolheu o vídeo de braços abertos). Em termos pessoais, ganhou fama (por ele cultivada) de secretismo. Totalmente avesso a mundanidades, as suas aparições públicas são raras, as entrevistas também. Mas gosta de se fazer "representar", normalmente por via dos seus animais preferidos, os gatos, que com frequência também aparecem nos seus filmes (os espectadores de "As Praias de Agnès", de Varda, devem lembrar-se do gato de Marker).
Tentámos entrevistá-lo por e-mail - coisa sempre ingrata - e mandámos-lhe cinco perguntas mais ou menos esforçadas. Respondeu com um texto curto, muito delicado e muito bem escrito, a justificar por que era incapaz de lhes responder. Transcrevemos uma passagem desse texto, que nos servirá de ponto de partida para ir um pouco mais além: "Sinto-me muito pouco 'cineasta', e por uma razão muito simples: o meu itinerário neste baixo mundo foi feito por etapas que na maior parte foram ocasião para um filme, mas onde o filme não era o elemento mais importante. A viagem, os encontros, as recordações, têm um lugar muito maior na minha bagagem memorial do que uma hora ou duas de projecção cujos detalhes se esvaem com o tempo (não pensa certamente que eu revejo os meus filmes?...)".

As viagens, claro. Marker tem muito que o aproxime de Joris Ivens, recentemente evocado no DocLisboa, e como ele filmou em vários cantos do mundo, deixando testemunho de não poucos momentos históricos. Os seus filmes "cubanos" (como "Le Fond de l'Air est Rouge", de 1977, incluído na retrospectiva), por exemplo, à época atacados pelo seu "propagandismo", mas que vistos hoje parecem ter um sentido mais complexo e linearmente indecifrável, ou os seus filmes asiáticos, especialmente os "japoneses" (de que o festival vai mostrar três: "AK", documento sobre Kurosawa na rodagem de "Ran"; "Sans Soleil", "retrato de Tóquio" que é a obra-prima de Marker; e "Level 5", investigação sobre a relação das "novas tecnologias" com a História, a partir de um dado concreto, a batalha de Okinawa durante a II Guerra). Foi cúmplice da "nouvelle vague" e, digamos, reclamado por ela durante esses breves três/quatro anos em que, de facto, existiu uma "vaga nova", mas os seus encontros anteriores (os filmes com Resnais nos anos 50) e posteriores (o encontro com Godard, Resnais e, já agora, Joris Ivens, em "Loin du Vietnam", filme colectivo) não são mais significativos do que os momentos em que o seu percurso foi intrinsecamente pessoal. Não obstante (e vamos citar o nome Godard pela segunda vez), também Marker usou, sobretudo nos últimos anos, o cinema como forma de contar - evocar, fazer - a história do cinema: já mencionámos o filme sobre Kurosawa (feito nos anos 80), devemos mencionar também dois outros filmes sobre cineastas igualmente mostrados no festival, "Une Journée d'Andrei Arsenevitch" (de 1999, sobre Tarkovski), e sobretudo o fabuloso "Le Tombeau d'Alexandre" (1992), uma lembrança, e quase o reconhecimento de uma filiação, do soviético Aleksandr Medvedkine.

Por toda a saliência espectacular do seu gesto artístico (também uma reflexão sobre a fronteira entre o cinema e a fotografia), o mais célebre filme de Marker, com culto aparentemente reavivado nos últimos anos e constante do programa do festival, é "La Jetée", curta-metragem de 1962, inteiramente "composta" com fotografias e voz "off" (segundo as pobres categorias em vigor, "experimental") para um relato de ficção científica pós-apocalíptica que é em si mesmo um exercício narrativo a conjugar o passado e o futuro (e portanto a questionar o eterno "presente" que o cinema, em princípio, é). Numa aparição rara, Marker virá ao Estoril apresentar a sua obra, num programa que inclui ainda um debate e uma "master class" com Bernard Eisenschitz, e cuja cereja é a primeira apresentação mundial de "Ouvroir the Movie", o seu último filme.