Sem medo dos espíritos
"Na Terra como no Céu", da realizadora Inês Gonçalves, é a história de Nijo e do senhor Nove Nove. O senhor Nove Nove é um espírito bom que entra no corpo de Nijo. E isso acontece quando este quer, porque Nijo é "mestre". É um curandeiro, um santo de água, que só faz o bem às pessoas que o procuram e que mistura a sua fervorosa crença católica com o espiritismo de forma natural. Faz tratamentos com flores, água e perfume e através da oração católica. Vai à missa todos os dias. Uma vez por ano, no djambi, festa pagã de três dias e duas noites, em que muitos se deixam possuir pelos espíritos, através da música, celebra e agradece ao seu santo, o senhor Nove Nove.
Nijo não terá mais de 30 anos e duas vidas no mesmo corpo. Nove Nove tem 90 anos. Morreu envenenado nos anos 50. Mas, dos dois, é ele quem gosta de beber, fumar. E fá-lo assim que pode, ou seja, assim que entra no corpo de Nijo.
É a Nove Nove que se oferecem cigarros. "Um maço de tabaco é um bom presente para dar ao Nove Nove", diz Inês Gonçalves ao P2. A realizadora entrou no jogo nas quatro semanas que esteve em São Tomé e Príncipe para filmar o documentário que passa hoje no DocLisboa, às 18h no Cinema Londres. E conta que, dos dois, o senhor Nove Nove é com quem se dá melhor.
"Foi ele o mais fácil de convencer para filmar este documentário." Por um instante, a conversa pára. Recapitula, confirma. Afinal ouvimos bem. Nove Nove é a pessoa em que se transforma Nijo quando está possuído.
"Que o Nijo tem duas vidas é bastante claro", mantém Inês Gonçalves. Que Nijo é duas pessoas, também, com duas personalidades que nada têm que as ligue entre elas a não ser o espaço físico que ocupam. E isso nota-se na personalidade e na postura diferentes de cada um, descreve a realizadora. Quando é Nove Nove, o corpo "fica um bocadinho diferente, mais encurvadinho".
"Não se trata de acreditar ou não", nota Inês Gonçalves. É uma realidade que existe, "como os heterónimos de Fernando Pessoa, ou pessoas que cometem crimes e depois não se lembram". E é uma crença que envolve quase toda a sociedade de São Tomé e que convive facilmente com o catolicismo.
Na lista de pessoas que Nijo trata, entre as seis e as nove da manhã, estão meninos que entram facilmente em transe (serão os mais vulneráveis) e "meninas que nasceram do fundo". Estas são como sereias, porque quando nasceram já vinham casadas com homens do fundo do mar. Brincam muito sozinhas ou, já casadas, não conseguem ter filhos. No tratamento, Nijo convence o homem do fundo do mar a libertá-las para que possam ser felizes na terra.
"Olho com boca"
Um homem de perfil, em contraluz, reza. É Nijo frente aos santinhos que venera. É neste canto, como um consultório, que ouve as mágoas de quem o procura, com dores de cabeça ou costas, tristezas, que impedem a felicidade plena e a vida de avançar. Pode ser receio de infertilidade ou dificuldades com o marido ou o negócio. Pode ser causa de inveja, "olho com boca", porque "com os olhos me olhas e me invejas e com a boca dizes mal de mim", e isso é doença em São Tomé.
Inês Gonçalves filmou sem intervir, sem tentar explicar o que "é difícil de explicar", deixando a realidade falar por si, sendo ela própria espectadora, quase estupefacta perante este "mundo fechado", mas dentro do qual as pessoas se movem de forma espontânea e natural.
"As almas andam à nossa volta", ouviu várias vezes, sobretudo de pessoas com "olho claro", as que conseguem ver e conviver com os mortos.
E, nesse convívio, os mortos entram no corpo de quem mais gostam, dizem, como o senhor Nove Nove entrou no corpo do seu mestre Nijo.
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"Na Terra como no Céu", da realizadora Inês Gonçalves, é a história de Nijo e do senhor Nove Nove. O senhor Nove Nove é um espírito bom que entra no corpo de Nijo. E isso acontece quando este quer, porque Nijo é "mestre". É um curandeiro, um santo de água, que só faz o bem às pessoas que o procuram e que mistura a sua fervorosa crença católica com o espiritismo de forma natural. Faz tratamentos com flores, água e perfume e através da oração católica. Vai à missa todos os dias. Uma vez por ano, no djambi, festa pagã de três dias e duas noites, em que muitos se deixam possuir pelos espíritos, através da música, celebra e agradece ao seu santo, o senhor Nove Nove.
Nijo não terá mais de 30 anos e duas vidas no mesmo corpo. Nove Nove tem 90 anos. Morreu envenenado nos anos 50. Mas, dos dois, é ele quem gosta de beber, fumar. E fá-lo assim que pode, ou seja, assim que entra no corpo de Nijo.
É a Nove Nove que se oferecem cigarros. "Um maço de tabaco é um bom presente para dar ao Nove Nove", diz Inês Gonçalves ao P2. A realizadora entrou no jogo nas quatro semanas que esteve em São Tomé e Príncipe para filmar o documentário que passa hoje no DocLisboa, às 18h no Cinema Londres. E conta que, dos dois, o senhor Nove Nove é com quem se dá melhor.
"Foi ele o mais fácil de convencer para filmar este documentário." Por um instante, a conversa pára. Recapitula, confirma. Afinal ouvimos bem. Nove Nove é a pessoa em que se transforma Nijo quando está possuído.
"Que o Nijo tem duas vidas é bastante claro", mantém Inês Gonçalves. Que Nijo é duas pessoas, também, com duas personalidades que nada têm que as ligue entre elas a não ser o espaço físico que ocupam. E isso nota-se na personalidade e na postura diferentes de cada um, descreve a realizadora. Quando é Nove Nove, o corpo "fica um bocadinho diferente, mais encurvadinho".
"Não se trata de acreditar ou não", nota Inês Gonçalves. É uma realidade que existe, "como os heterónimos de Fernando Pessoa, ou pessoas que cometem crimes e depois não se lembram". E é uma crença que envolve quase toda a sociedade de São Tomé e que convive facilmente com o catolicismo.
Na lista de pessoas que Nijo trata, entre as seis e as nove da manhã, estão meninos que entram facilmente em transe (serão os mais vulneráveis) e "meninas que nasceram do fundo". Estas são como sereias, porque quando nasceram já vinham casadas com homens do fundo do mar. Brincam muito sozinhas ou, já casadas, não conseguem ter filhos. No tratamento, Nijo convence o homem do fundo do mar a libertá-las para que possam ser felizes na terra.
"Olho com boca"
Um homem de perfil, em contraluz, reza. É Nijo frente aos santinhos que venera. É neste canto, como um consultório, que ouve as mágoas de quem o procura, com dores de cabeça ou costas, tristezas, que impedem a felicidade plena e a vida de avançar. Pode ser receio de infertilidade ou dificuldades com o marido ou o negócio. Pode ser causa de inveja, "olho com boca", porque "com os olhos me olhas e me invejas e com a boca dizes mal de mim", e isso é doença em São Tomé.
Inês Gonçalves filmou sem intervir, sem tentar explicar o que "é difícil de explicar", deixando a realidade falar por si, sendo ela própria espectadora, quase estupefacta perante este "mundo fechado", mas dentro do qual as pessoas se movem de forma espontânea e natural.
"As almas andam à nossa volta", ouviu várias vezes, sobretudo de pessoas com "olho claro", as que conseguem ver e conviver com os mortos.
E, nesse convívio, os mortos entram no corpo de quem mais gostam, dizem, como o senhor Nove Nove entrou no corpo do seu mestre Nijo.