Mário Vargas Llosa admite que a literatura se torne marginal no futuro

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Foto: Alejandro Acosta/Reuters

O escritor peruano - cujo nome figurou entre os mais apontados como candidatos sérios ao Prémio Nobel da Literatura deste ano - não descarta a possibilidade de a literatura "se converter nalguma coisa de marginal, relegada cada vez mais como actividade minoritária, e desenvolvida em catacumbas". Se assim acontecer, "haverá um grande empobrecimento da Humanidade", preveniu. "E será por nossa causa, porque a literatura deve fazer parte da vida das famílias e dos programas de ensino a todos os níveis".

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O escritor peruano - cujo nome figurou entre os mais apontados como candidatos sérios ao Prémio Nobel da Literatura deste ano - não descarta a possibilidade de a literatura "se converter nalguma coisa de marginal, relegada cada vez mais como actividade minoritária, e desenvolvida em catacumbas". Se assim acontecer, "haverá um grande empobrecimento da Humanidade", preveniu. "E será por nossa causa, porque a literatura deve fazer parte da vida das famílias e dos programas de ensino a todos os níveis".

Vargas Llosa confessou não saber responder à pergunta de uma jornalista que quis saber qual o papel da literatura num século em que se assiste ao triunfo do "best-seller" rápido e de um tipo de escrita "light". Mesmo aceitando a sua função de entretenimento, avisou que a literatura não pode ser só divertimento. "Se o fosse, seria ultrapassada por outras formas mais eficazes. Não pode competir com a televisão e o cinema", disse. "A riqueza não são as imagens. São ideias materializadas em palavras que se dizem nos livros". O livro de literatura, prosseguiu o escritor, é imprescindível para ensinar a falar as pessoas. "O vocabulário, os matizes, as subtilezas dão-os a boa literatura, que é aquela que mantém um alto nível de criatividade, daquilo que é diferente, do que não temos e com que sonhamos". Uma das superioridades da literatura, concluiu, é a "vocação crítica, que os audiovisuais não têm ou têm domesticada". No centro da trama de "O Paraíso na Outra Esquina", as utopias artística e política de Paul Gaugin, pintor, e da avó Flora Tristan, feminista "avant la lettre", foram pretexto para uma digressão crítica pela história do século XX. "Todas as tentativas de criar a sociedade perfeita traduziram-se em verdadeiros apocalipses", disse Vargas Llosa. "O nazismo foi isso; o comunismo foi isso; todas as grandes utopias levaram a Humanidade à beira do precipício". O escritor adverte que não se pode renunciar à utopia. "É um motor que empurra o desenvolvimento: os grandes cientistas, os exploradores, os santos representam de algum modo a materialização desse sonho utópico". Faz, contudo, uma distinção entre a utopia política e a utopia individual. "As utopias políticas trouxeram mais prejuízos do que benefícios à Humanidade. A felicidade nunca se pode encontrar num projecto colectivo".

Vargas Llosa, que demorou três anos a escrever "O Paraíso na Outra Esquina", serve-se das duas personagens do livro - Flora Tristan e Paul Gauguin - para estabelecer a distinção entre os dois tipos de sonho: o do pintor que foi para o Taiti e as ilhas Marquesas em busca do homem primitivo que mantivesse a riqueza e o prazer sexual como património e valor de todos; e a da "feminista revolucionária" que quis construir uma sociedade igualitária num tempo em que os operários trabalhavam 20 horas por dia e às mulheres poucos ou nenhuns direitos eram reconhecidos.

Avó e neto, que não se conheceram, nunca encontraram o paraíso e muito menos conseguiram trazê-lo à terra. Paul Gauguin morreu nas ilhas Marquesas, pobre, doente e perseguido pelas autoridades. A sua obra, porém, perseguiu a "vocação do absoluto e da perfeição" que caracteriza as grandes obras artísticas e literárias. Se tivesse tido concretização, a sociedade desenhada por Flora "seria terrivelmente opressiva", e criaria, "em nome da liberdade", um "campo de concentração". O projecto da avó de Gauguin cometia "o pecado capital das grandes utopias do século XIX", em que "os métodos são piores do que a doença que querem curar".

Vargas Llosa elogia, porém, a figura de Flora. "Muito daquilo por que lutou é hoje realidade: o direito de voto das mulheres, a igualdade entre os sexos", algo que não era aceite sequer por muitos progressistas do seu tempo. "O que era irreal e utópico era a organização de uma sociedade em que tudo estaria regulamentado". O realismo mágico já não constitui o traço comum entre os escritores da América Latina, sustenta Vargas Llosa. "Há escritores realistas, fantásticos, urbanos, mas também há alguns na tradição da literatura rural. Talvez que um dos poucos denominadores comuns seja a rejeição do realismo mágico", emblema da literatura da região. A ideia "irrita os escritores mais jovens", algo que Vargas Llosa considera normal: "O parricídio simbólico e fundamental para que cada nova geração afirme a sua identidade". O próprio conceito de realismo mágico sempre lhe pareceu, aliás, "vago" e de um conteúdo "pouco sólido", quando sob a sua capa se colocam escritores "tão diferentes" quanto o são, entre outros, o argentino Jorge Luís Borges, o cubano Alejo Carpentier ou o colombiano Gabriel Garcia Marquez.

Antes de regressar a Washington, Vargas Llosa participa este fim-de-semana, no Porto, num encontro do grupo europeu da Comissão Trilateral, que discutirá temas como a globalização, o Iraque e o futuro da Europa. Em Washington, esperam-no os alunos da Universidade de Georgetown a quem ministra dois cursos este semestre: um sobre Literatura e História, o outro sobre Técnica do Conto.