Os lugares sentem-se nos ossos
Para Charles Correa, arquitecto de origem goesa e apelido de ressonância portuguesa, o lugar faz o projecto. Em 2007 visitou pela primeira vez a doca de Pedrouços, em Lisboa, local destinado a acolher o novo Centro Champalimaud, ou Centro de Investigação para o Desconhecido, que hoje é inaugurado. Concluído o projecto nesse mesmo ano, foram 23 meses de estaleiro, um período curto dada a complexidade do programa - um conjunto de edifícios dedicados à ciência, mais exactamente à investigação no campo das neurociências e do estudo e terapia do cancro. Trata-se de um equipamento singular para a escala europeia e que coloca Portugal num plano competitivo no domínio internacional da investigação científica na área da saúde.
Localizado na zona ribeirinha de Lisboa, e fronteiro à Torre de Belém, o novo centro está dividido em três núcleos relativamente autónomos entre si e que correspondem a diferentes públicos-alvo. O primeiro edifício, de acesso mais restrito - e que ocupa a maior faixa do terreno - cruza a investigação com a prestação de serviços de ambulatório a doentes oncológicos. Para já, o internamento não faz parte do complexo construído, ainda que esteja prevista uma futura expansão para a área da Docapesca entretanto desactivada. O segundo núcleo pressupõe um uso mais comunitário, integrando uma área de exposições temporárias, um auditório e um restaurante. Os dois são ligados entre si através de um tubo de vidro - "uma peça de joalharia que os engenheiros alemães conceberam", segundo Charles Correa, em resposta à solução high tech que o arquitecto pretendia.
O último volume está integrado no espaço exterior e é essencialmente composto por um anfiteatro. A implantação segue a forma curva do passeio público que já lá estava. O conjunto não é vedado, incentivando o atravessamento público entre os três edifícios. Charles Correa esclarece: "O que fizemos foi deixar que os espaços públicos complementassem os espaços privados. Penso que é uma postura aproximada ao yin-yang da filosofia chinesa, em que ambas as partes são independentes e, ao mesmo tempo, complementares."
Este é o seu primeiro projecto em Portugal. O arquitecto, nascido em Hyderabad, na União Indiana, com escritório aberto em Bombaim desde 1958 e actualmente com 80 anos, afirma que provavelmente não voltará a projectar um edifício desta escala e que agora pretende dedicar-se ao desenho de mobiliário e de pequenas casas. O convite, endereçado pela Fundação Champalimaud, foi em parte justificado pela sua performance no desenho do Brain and Cognitive Sciences Complex, em Boston. Este edifício, concluído em 2005, é também orientado para a investigação em neurociências e integra a estrutura do MIT (Massachusetts Institute of Technology), a famosa universidade norte-americana onde, aliás, Correa se formou e onde também é professor. Mas no projecto de Boston não enfrentava um lugar "tão belíssimo", como aqui.
Antes da proposta da fundação, Charles Correa reconhece que tinha um conhecimento limitado de Portugal. Visitara Lisboa com a mulher, a artista têxtil Monika Correa, pela primeira vez em 1979, recordando-se do clima pós-revolucionário que então se vivia no país.
Mereceu, entretanto, o reconhecimento dos profissionais portugueses que, em 2005, lhe atribuíram através da Ordem dos Arquitectos o título de membro honorário, distinção conferida a arquitectos como Oscar Niemeyer ou Paulo Mendes da Rocha.
O espírito do lugar
Do último andar do Hotel Sheraton, onde está hospedado, Charles Correa recorda ao P2 as circunstâncias da primeira visita ao local: "Ouvira falar de Belém e perguntei: "É o mesmo lugar de onde os descobridores partiram?", responderam que sim e pensei: "Então tenho que ir ver esse lugar onde o rio se transforma em oceano"." O sítio impressionou-o bastante. Desde logo percebeu que não poderia aceitar fazer o projecto "a menos que tivesse uma boa ideia", porque, como explica, "seria estúpido vir de tão longe e fazer uma coisa vulgar".
Não é daqueles arquitectos que "dá voltas ao mundo para fazer projectos": "Tenho uma ideia diferente do que deve ser arquitectura." Essa ideia assenta essencialmente no facto de acreditar que a arquitectura é "site specific", ou seja, está enraizada no lugar. Faz um paralelo com a música: ao contrário da arquitectura, "music is a mobile fest" (a música é uma festa com mobilidade). E dá exemplos, como o do maestro Arthur Rubinstein, morto em 1982, que podia fazer o mesmo concerto de Chopin em diferentes cidades como Manaus, Tóquio ou Paris: "Mas eu não posso construir sempre o mesmo edifício. Porquê? Porque as raízes de um edifício estão na terra. Se não compreender a cultura de um povo, as suas aspirações, não posso "realmente" desenhar um edifício. Os lugares sentem-se nos ossos, não se analisam" apenas friamente.
Enquanto teoria, a ideia de que o "projecto está no sítio" (parafraseando Álvaro Siza) vem do final da década de 60 do século passado através do historiador de arquitectura Christian Norberg-Schulz, que Charles Correa cita. Evocando a ideia do "genius loci" (conceito "emprestado" da cultura romana que associava um espírito a cada lugar), Correa fala do privilégio do arquitecto em "revelar o espírito do lugar". Foi o que procurou fazer em Belém: "Uma das coisas que gosto muito neste projecto é que tem tudo a ver com este pedaço de terra. É acerca de Lisboa; mas não é kitsch, e não se torna português porque usa a telha na cobertura. É "português" num sentido mais profundo porque "fala" sobre este lugar."
O céu é mais enigmático
Adivinha-se uma dimensão mítica: "No projecto queria ver não o oceano, mas o céu, que é muito mais enigmático." A decisão justifica a colocação das duas colunas de betão pintadas de azul como apoteose de um percurso exterior no coração do complexo. De algum modo também evoca o pátio central aberto sobre o oceano Pacífico do Salk Institute de Louis Kahn, projectado em 1959 para La Jolla, na Califórnia. Tal como Kahn, Correa imaginou o núcleo de investigação de Lisboa como um lugar de encontro entre a arte e a ciência. Ou, como diria melhor Kahn, um lugar para mentes afins.
Nos edifícios do Centro Champalimaud, qualquer alusão a Lisboa ou à frente ribeirinha não significa que o Tejo seja vista constante. Se se é público ou paciente, é preciso estar no exterior para sentir a paisagem; ou então ser cientista e ocupar um dos laboratórios nos pisos superiores, onde foi "traçada uma varanda monumental sobre o rio". As vistas estão portanto bastante condicionadas. Dentro do edifício sente-se uma certa "porosidade" - significa que os espaços comunicam uns sobre os outros, criando um ambiente interno rico e complexo.
Existem alusões à "natureza", que Charles Correa considera "uma das melhores terapias que conhecemos", mas estas são "encenadas", como acontece com o jardim murado que integra o edifício principal, apoiando a área de recepção aos doentes. Correa imaginou-o como uma floresta tropical, "densa como uma selva, com borboletas e serpentes". Corresponde à "reinvenção contemporânea de uma ideia antiga" - como diz - e que permite tornar a velha tipologia ibérica do jardim enclausurado num elemento arquitectónico moderno.
Quase a terminar a conversa, remata: "Temos aqui um edifício que tem a ver com ciências. Para mim é uma peça de escultura, para outros é como um museu de arte... Mas qualquer um pode fazer uma escultura ou um museu, porque não têm programa." Para Charles Correa, museus e também aeroportos são os projectos contemporâneos que prestigiam os verdadeiros arquitectos-estrela: "São edifícios culturalmente livres e geralmente implantados em lugares que não estabelecem relações entre si." Aponta-o para que possamos perceber o seu desacordo: "Veja para onde a arquitectura nos levou... em vez de aprendermos com os lugares, projectamos agora para lugares sem significado." E conclui: "Mais vale construir no Dubai."
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Para Charles Correa, arquitecto de origem goesa e apelido de ressonância portuguesa, o lugar faz o projecto. Em 2007 visitou pela primeira vez a doca de Pedrouços, em Lisboa, local destinado a acolher o novo Centro Champalimaud, ou Centro de Investigação para o Desconhecido, que hoje é inaugurado. Concluído o projecto nesse mesmo ano, foram 23 meses de estaleiro, um período curto dada a complexidade do programa - um conjunto de edifícios dedicados à ciência, mais exactamente à investigação no campo das neurociências e do estudo e terapia do cancro. Trata-se de um equipamento singular para a escala europeia e que coloca Portugal num plano competitivo no domínio internacional da investigação científica na área da saúde.
Localizado na zona ribeirinha de Lisboa, e fronteiro à Torre de Belém, o novo centro está dividido em três núcleos relativamente autónomos entre si e que correspondem a diferentes públicos-alvo. O primeiro edifício, de acesso mais restrito - e que ocupa a maior faixa do terreno - cruza a investigação com a prestação de serviços de ambulatório a doentes oncológicos. Para já, o internamento não faz parte do complexo construído, ainda que esteja prevista uma futura expansão para a área da Docapesca entretanto desactivada. O segundo núcleo pressupõe um uso mais comunitário, integrando uma área de exposições temporárias, um auditório e um restaurante. Os dois são ligados entre si através de um tubo de vidro - "uma peça de joalharia que os engenheiros alemães conceberam", segundo Charles Correa, em resposta à solução high tech que o arquitecto pretendia.
O último volume está integrado no espaço exterior e é essencialmente composto por um anfiteatro. A implantação segue a forma curva do passeio público que já lá estava. O conjunto não é vedado, incentivando o atravessamento público entre os três edifícios. Charles Correa esclarece: "O que fizemos foi deixar que os espaços públicos complementassem os espaços privados. Penso que é uma postura aproximada ao yin-yang da filosofia chinesa, em que ambas as partes são independentes e, ao mesmo tempo, complementares."
Este é o seu primeiro projecto em Portugal. O arquitecto, nascido em Hyderabad, na União Indiana, com escritório aberto em Bombaim desde 1958 e actualmente com 80 anos, afirma que provavelmente não voltará a projectar um edifício desta escala e que agora pretende dedicar-se ao desenho de mobiliário e de pequenas casas. O convite, endereçado pela Fundação Champalimaud, foi em parte justificado pela sua performance no desenho do Brain and Cognitive Sciences Complex, em Boston. Este edifício, concluído em 2005, é também orientado para a investigação em neurociências e integra a estrutura do MIT (Massachusetts Institute of Technology), a famosa universidade norte-americana onde, aliás, Correa se formou e onde também é professor. Mas no projecto de Boston não enfrentava um lugar "tão belíssimo", como aqui.
Antes da proposta da fundação, Charles Correa reconhece que tinha um conhecimento limitado de Portugal. Visitara Lisboa com a mulher, a artista têxtil Monika Correa, pela primeira vez em 1979, recordando-se do clima pós-revolucionário que então se vivia no país.
Mereceu, entretanto, o reconhecimento dos profissionais portugueses que, em 2005, lhe atribuíram através da Ordem dos Arquitectos o título de membro honorário, distinção conferida a arquitectos como Oscar Niemeyer ou Paulo Mendes da Rocha.
O espírito do lugar
Do último andar do Hotel Sheraton, onde está hospedado, Charles Correa recorda ao P2 as circunstâncias da primeira visita ao local: "Ouvira falar de Belém e perguntei: "É o mesmo lugar de onde os descobridores partiram?", responderam que sim e pensei: "Então tenho que ir ver esse lugar onde o rio se transforma em oceano"." O sítio impressionou-o bastante. Desde logo percebeu que não poderia aceitar fazer o projecto "a menos que tivesse uma boa ideia", porque, como explica, "seria estúpido vir de tão longe e fazer uma coisa vulgar".
Não é daqueles arquitectos que "dá voltas ao mundo para fazer projectos": "Tenho uma ideia diferente do que deve ser arquitectura." Essa ideia assenta essencialmente no facto de acreditar que a arquitectura é "site specific", ou seja, está enraizada no lugar. Faz um paralelo com a música: ao contrário da arquitectura, "music is a mobile fest" (a música é uma festa com mobilidade). E dá exemplos, como o do maestro Arthur Rubinstein, morto em 1982, que podia fazer o mesmo concerto de Chopin em diferentes cidades como Manaus, Tóquio ou Paris: "Mas eu não posso construir sempre o mesmo edifício. Porquê? Porque as raízes de um edifício estão na terra. Se não compreender a cultura de um povo, as suas aspirações, não posso "realmente" desenhar um edifício. Os lugares sentem-se nos ossos, não se analisam" apenas friamente.
Enquanto teoria, a ideia de que o "projecto está no sítio" (parafraseando Álvaro Siza) vem do final da década de 60 do século passado através do historiador de arquitectura Christian Norberg-Schulz, que Charles Correa cita. Evocando a ideia do "genius loci" (conceito "emprestado" da cultura romana que associava um espírito a cada lugar), Correa fala do privilégio do arquitecto em "revelar o espírito do lugar". Foi o que procurou fazer em Belém: "Uma das coisas que gosto muito neste projecto é que tem tudo a ver com este pedaço de terra. É acerca de Lisboa; mas não é kitsch, e não se torna português porque usa a telha na cobertura. É "português" num sentido mais profundo porque "fala" sobre este lugar."
O céu é mais enigmático
Adivinha-se uma dimensão mítica: "No projecto queria ver não o oceano, mas o céu, que é muito mais enigmático." A decisão justifica a colocação das duas colunas de betão pintadas de azul como apoteose de um percurso exterior no coração do complexo. De algum modo também evoca o pátio central aberto sobre o oceano Pacífico do Salk Institute de Louis Kahn, projectado em 1959 para La Jolla, na Califórnia. Tal como Kahn, Correa imaginou o núcleo de investigação de Lisboa como um lugar de encontro entre a arte e a ciência. Ou, como diria melhor Kahn, um lugar para mentes afins.
Nos edifícios do Centro Champalimaud, qualquer alusão a Lisboa ou à frente ribeirinha não significa que o Tejo seja vista constante. Se se é público ou paciente, é preciso estar no exterior para sentir a paisagem; ou então ser cientista e ocupar um dos laboratórios nos pisos superiores, onde foi "traçada uma varanda monumental sobre o rio". As vistas estão portanto bastante condicionadas. Dentro do edifício sente-se uma certa "porosidade" - significa que os espaços comunicam uns sobre os outros, criando um ambiente interno rico e complexo.
Existem alusões à "natureza", que Charles Correa considera "uma das melhores terapias que conhecemos", mas estas são "encenadas", como acontece com o jardim murado que integra o edifício principal, apoiando a área de recepção aos doentes. Correa imaginou-o como uma floresta tropical, "densa como uma selva, com borboletas e serpentes". Corresponde à "reinvenção contemporânea de uma ideia antiga" - como diz - e que permite tornar a velha tipologia ibérica do jardim enclausurado num elemento arquitectónico moderno.
Quase a terminar a conversa, remata: "Temos aqui um edifício que tem a ver com ciências. Para mim é uma peça de escultura, para outros é como um museu de arte... Mas qualquer um pode fazer uma escultura ou um museu, porque não têm programa." Para Charles Correa, museus e também aeroportos são os projectos contemporâneos que prestigiam os verdadeiros arquitectos-estrela: "São edifícios culturalmente livres e geralmente implantados em lugares que não estabelecem relações entre si." Aponta-o para que possamos perceber o seu desacordo: "Veja para onde a arquitectura nos levou... em vez de aprendermos com os lugares, projectamos agora para lugares sem significado." E conclui: "Mais vale construir no Dubai."