O cineasta que abriu as portas à nova Hollywood
Foi Arthur Penn quem deu as boas vindas à geração que revolucionou o cinema americano nos anos 70: Scorsese, Coppola, Spielberg, Lucas, Brian de Palma, Bob Rafelson e Hal Ashby. Mas foi Bonnie e Clyde que lhe garantiu um lugar na história do cinema
Penn, que morreu em Nova Iorque na noite de terça-feira, aos 88 anos, não fora a primeira escolha para dirigir Bonnie e Clyde, o filme-charneira da "nova Hollywood". Mas François Truffaut, o primeiro nome avançado pelos argumentistas David Newman e Robert Benton, cujo guião fora abertamente influenciado pela Nouvelle Vague francesa, estava comprometido com Fahrenheit 451 e sugeriu o nome de Penn.
Mas Arthur Penn, escaldado por anteriores experiências em Hollywood, começou por recusar o convite. O seu primeiro filme, Vício de Matar (1958), western revisionista com Paul Newman no papel de um Billy the Kid entendido como delinquente juvenil, fora literalmente ignorado pelo estúdio. Burt Lancaster despedira-o das rodagens de The Train, substituindo-o por John Frankenheimer, e o produtor Sam Spiegel afastara-o da montagem de Perseguição Impiedosa (1966).
Além disso, o realizador, veterano da Segunda Guerra Mundial formado na escola da televisão e nos dramas intensos que articulavam o desconforto do pós-guerra, não viu interesse num filme sobre dois ladrõezecos arrivistas dos anos 1930.
Warren Beatty, produtor do filme e também actor principal, não largou o osso e lá convenceu Penn, que ainda chegou a considerar abandonar o projecto durante a pré-produção, sentindo que o guião ainda tinha problemas. E a rodagem não foi um mar de rosas: o actor-produtor e o cineasta andaram de candeias às avessas, e o director de fotografia Burnett Guffey, um veterano da "velha Hollywood", abandonou tudo durante uma semana, porque Penn insistia em rodar apenas com luz natural.
Guffey acabaria por ganhar um dos dois Óscares (em dez nomeações) que Bonnie e Clyde recebeu em 1968, depois de uma carreira fulgurantemente turbulenta que viu o filme, enjeitado pelo estúdio e arrasado pelos críticos mais veteranos, tornar-se numa sensação aclamada por toda uma nova geração de críticos e de público que percebeu a bofetada sem mão que se dava ali às convenções do cinema americano.
Anfitrião improvável
O filme que Arthur Penn aceitara relutantemente foi a charneira que abriu a porta à "nova Hollywood" dos anos 1970, a geração de Scorsese, Coppola, Spielberg, Lucas, Brian de Palma, Bob Rafelson ou Hal Ashby, o movimento que veio reinventar o modo como o cinema americano era pensado, filmado e mostrado. Sem Bonnie e Clyde, não teria havido Easy Rider, A Primeira Noite, A Quadrilha Selvagem e muitos outros.
Arthur Penn, contudo, era o mais improvável dos anfitriões para o fazer. É verdade que Paul Schrader, o argumentista de Taxi Driver e O Touro Enraivecido, disse dele que "trouxe a sensibilidade dos filmes europeus dos anos 1960 ao cinema americano, e abriu caminho à nova geração de realizadores americanos que estudaram cinema".
Mas, embora não viesse da "velha Hollywood", Penn estava longe de ser um "jovem turco". Chegou à rodagem de Bonnie e Clyde com 45 anos e uma extensa experiência na televisão em directo, onde dirigira, por exemplo, um dos debates entre John F. Kennedy e Richard Nixon na eleição presidencial de 1960 (que Kennedy venceria).
Tinha igualmente uma carreira de encenador de teatro e, no currículo, o sucesso público e crítico do seu segundo filme, O Milagre de Anne Sullivan (1962), adaptação da peça de William Gibson sobre a relação entre a cega surda-muda Helen Keller e a sua tutora, Anne Sullivan. Penn dirigira primeiro uma produção televisiva da peça e em seguida a encenação teatral que ficou dois anos em cartaz na Broadway, antes de realizar a versão cinematográfica que valeu Óscares de interpretação a Anne Bancroft e Patty Duke, e a primeira de três nomeações (nunca concretizadas) para o Óscar de melhor realizador (as outras foram por Bonnie e Clyde e O Restaurante de Alice).
Mas o seu desencanto com o desrespeito da máquina de Hollywood, que sentira na pele com as experiências de The Train e Perseguição Impiedosa, levá-lo-ia a regressar a Nova Iorque, aos palcos e ao ensino, dos quais Beatty, que trabalhara com Penn em Mickey One (1965), o arrancaria finalmente em 1967.
O regresso ao teatro
O "segundo fôlego" que Bonnie e Clyde poderia dar à sua carreira foi significativo mas fugaz - embora tenha rodado mais pós-1967, Penn apenas dirigiu 14 longas-metragens numa carreira de 50 anos. Sinal de que o cineasta não encaixava decididamente na geração de autores que começavam a impor-se, mesmo que a "nova Hollywood" se mostrasse mais receptiva às suas narrativas oblíquas, que muitas vezes reviam os parâmetros do filme de género pelo prisma da sociedade conturbada que o rodeava.
Vício de Matar olhava para Billy the Kid como um adolescente rebelde dos anos 1950 à la Fúria de Viver, os tiroteios sangrentos de Bonnie e Clyde sugeriam uma metáfora do Vietname. Seguir-se-iam a abordagem à contracultura americana do flower power (O Restaurante de Alice, 1969, baseado no êxito do cantor folk Arlo Guthrie), o western como olhar sobre a sociedade capitalista (O Pequeno Grande Homem, 1970), e o policial negro como reflexo existencialista (Um Lance no Escuro, 1975). Penn assinaria em 1976 um dos últimos estertores da "nova Hollywood" com Duelo no Missouri, encontro desmesurado entre Marlon Brando e Jack Nicholson para acabar de vez com o western.
Com o blockbuster segundo Spielberg e Lucas - um tipo de cinema que Penn achava óptimo, mas que confessava ser incapaz de fazer - a tomar o lugar deste cinema mais intimista e europeu na produção de Hollywood após o sucesso de Tubarão e A Guerra das Estrelas, o realizador regressou ao teatro e ao ensino.
Até ao final da sua carreira assinaria apenas mais cinco filmes, sem que nenhum deles se impusesse verdadeiramente junto do público ou da crítica: Quatro Amigos (1981), O Alvo (1985), Dead of Winter (1987), Penn & Teller Get Killed (1989) e o telefilme Inside (1996). O seu último trabalho foi, em 2001, um episódio da série televisiva 100 Centre Street.
Arthur Penn nunca fez realmente parte da geração a que abriu as portas, mas também nunca se inseriu confortavelmente numa Hollywood que dava cada vez menos espaço aos cineastas mais interessados nas pessoas e nos seus dilemas do que em fórmulas mecânicas. Mas, sem o seu contributo, a paisagem do cinema actual seria muito diferente.
Segundo filho de Sonia e Harry Penn, uma enfermeira e um relojoeiro, irmão mais novo do fotógrafo Irving Penn, que morreu o ano passado, Arthur Penn nasceu em Filadélfia a 27 de Setembro de 1922.
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Foi Arthur Penn quem deu as boas vindas à geração que revolucionou o cinema americano nos anos 70: Scorsese, Coppola, Spielberg, Lucas, Brian de Palma, Bob Rafelson e Hal Ashby. Mas foi Bonnie e Clyde que lhe garantiu um lugar na história do cinema
Penn, que morreu em Nova Iorque na noite de terça-feira, aos 88 anos, não fora a primeira escolha para dirigir Bonnie e Clyde, o filme-charneira da "nova Hollywood". Mas François Truffaut, o primeiro nome avançado pelos argumentistas David Newman e Robert Benton, cujo guião fora abertamente influenciado pela Nouvelle Vague francesa, estava comprometido com Fahrenheit 451 e sugeriu o nome de Penn.
Mas Arthur Penn, escaldado por anteriores experiências em Hollywood, começou por recusar o convite. O seu primeiro filme, Vício de Matar (1958), western revisionista com Paul Newman no papel de um Billy the Kid entendido como delinquente juvenil, fora literalmente ignorado pelo estúdio. Burt Lancaster despedira-o das rodagens de The Train, substituindo-o por John Frankenheimer, e o produtor Sam Spiegel afastara-o da montagem de Perseguição Impiedosa (1966).
Além disso, o realizador, veterano da Segunda Guerra Mundial formado na escola da televisão e nos dramas intensos que articulavam o desconforto do pós-guerra, não viu interesse num filme sobre dois ladrõezecos arrivistas dos anos 1930.
Warren Beatty, produtor do filme e também actor principal, não largou o osso e lá convenceu Penn, que ainda chegou a considerar abandonar o projecto durante a pré-produção, sentindo que o guião ainda tinha problemas. E a rodagem não foi um mar de rosas: o actor-produtor e o cineasta andaram de candeias às avessas, e o director de fotografia Burnett Guffey, um veterano da "velha Hollywood", abandonou tudo durante uma semana, porque Penn insistia em rodar apenas com luz natural.
Guffey acabaria por ganhar um dos dois Óscares (em dez nomeações) que Bonnie e Clyde recebeu em 1968, depois de uma carreira fulgurantemente turbulenta que viu o filme, enjeitado pelo estúdio e arrasado pelos críticos mais veteranos, tornar-se numa sensação aclamada por toda uma nova geração de críticos e de público que percebeu a bofetada sem mão que se dava ali às convenções do cinema americano.
Anfitrião improvável
O filme que Arthur Penn aceitara relutantemente foi a charneira que abriu a porta à "nova Hollywood" dos anos 1970, a geração de Scorsese, Coppola, Spielberg, Lucas, Brian de Palma, Bob Rafelson ou Hal Ashby, o movimento que veio reinventar o modo como o cinema americano era pensado, filmado e mostrado. Sem Bonnie e Clyde, não teria havido Easy Rider, A Primeira Noite, A Quadrilha Selvagem e muitos outros.
Arthur Penn, contudo, era o mais improvável dos anfitriões para o fazer. É verdade que Paul Schrader, o argumentista de Taxi Driver e O Touro Enraivecido, disse dele que "trouxe a sensibilidade dos filmes europeus dos anos 1960 ao cinema americano, e abriu caminho à nova geração de realizadores americanos que estudaram cinema".
Mas, embora não viesse da "velha Hollywood", Penn estava longe de ser um "jovem turco". Chegou à rodagem de Bonnie e Clyde com 45 anos e uma extensa experiência na televisão em directo, onde dirigira, por exemplo, um dos debates entre John F. Kennedy e Richard Nixon na eleição presidencial de 1960 (que Kennedy venceria).
Tinha igualmente uma carreira de encenador de teatro e, no currículo, o sucesso público e crítico do seu segundo filme, O Milagre de Anne Sullivan (1962), adaptação da peça de William Gibson sobre a relação entre a cega surda-muda Helen Keller e a sua tutora, Anne Sullivan. Penn dirigira primeiro uma produção televisiva da peça e em seguida a encenação teatral que ficou dois anos em cartaz na Broadway, antes de realizar a versão cinematográfica que valeu Óscares de interpretação a Anne Bancroft e Patty Duke, e a primeira de três nomeações (nunca concretizadas) para o Óscar de melhor realizador (as outras foram por Bonnie e Clyde e O Restaurante de Alice).
Mas o seu desencanto com o desrespeito da máquina de Hollywood, que sentira na pele com as experiências de The Train e Perseguição Impiedosa, levá-lo-ia a regressar a Nova Iorque, aos palcos e ao ensino, dos quais Beatty, que trabalhara com Penn em Mickey One (1965), o arrancaria finalmente em 1967.
O regresso ao teatro
O "segundo fôlego" que Bonnie e Clyde poderia dar à sua carreira foi significativo mas fugaz - embora tenha rodado mais pós-1967, Penn apenas dirigiu 14 longas-metragens numa carreira de 50 anos. Sinal de que o cineasta não encaixava decididamente na geração de autores que começavam a impor-se, mesmo que a "nova Hollywood" se mostrasse mais receptiva às suas narrativas oblíquas, que muitas vezes reviam os parâmetros do filme de género pelo prisma da sociedade conturbada que o rodeava.
Vício de Matar olhava para Billy the Kid como um adolescente rebelde dos anos 1950 à la Fúria de Viver, os tiroteios sangrentos de Bonnie e Clyde sugeriam uma metáfora do Vietname. Seguir-se-iam a abordagem à contracultura americana do flower power (O Restaurante de Alice, 1969, baseado no êxito do cantor folk Arlo Guthrie), o western como olhar sobre a sociedade capitalista (O Pequeno Grande Homem, 1970), e o policial negro como reflexo existencialista (Um Lance no Escuro, 1975). Penn assinaria em 1976 um dos últimos estertores da "nova Hollywood" com Duelo no Missouri, encontro desmesurado entre Marlon Brando e Jack Nicholson para acabar de vez com o western.
Com o blockbuster segundo Spielberg e Lucas - um tipo de cinema que Penn achava óptimo, mas que confessava ser incapaz de fazer - a tomar o lugar deste cinema mais intimista e europeu na produção de Hollywood após o sucesso de Tubarão e A Guerra das Estrelas, o realizador regressou ao teatro e ao ensino.
Até ao final da sua carreira assinaria apenas mais cinco filmes, sem que nenhum deles se impusesse verdadeiramente junto do público ou da crítica: Quatro Amigos (1981), O Alvo (1985), Dead of Winter (1987), Penn & Teller Get Killed (1989) e o telefilme Inside (1996). O seu último trabalho foi, em 2001, um episódio da série televisiva 100 Centre Street.
Arthur Penn nunca fez realmente parte da geração a que abriu as portas, mas também nunca se inseriu confortavelmente numa Hollywood que dava cada vez menos espaço aos cineastas mais interessados nas pessoas e nos seus dilemas do que em fórmulas mecânicas. Mas, sem o seu contributo, a paisagem do cinema actual seria muito diferente.
Segundo filho de Sonia e Harry Penn, uma enfermeira e um relojoeiro, irmão mais novo do fotógrafo Irving Penn, que morreu o ano passado, Arthur Penn nasceu em Filadélfia a 27 de Setembro de 1922.