Uma história a dois
A história da dança contemporânea em Portugal não é pródiga em duplas. Uma eventual genealogia não seria representativa de uma corrente ou mesmo de uma intencionalidade que não partisse de afinidades estéticas e cumplicidades pessoais.
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A história da dança contemporânea em Portugal não é pródiga em duplas. Uma eventual genealogia não seria representativa de uma corrente ou mesmo de uma intencionalidade que não partisse de afinidades estéticas e cumplicidades pessoais.
Sobretudo, se falarmos em duplas, são mais os exemplos de pares que assinam diferentes áreas de um mesmo espectáculo, do que aquelas que co-assinam uma obra. Falaríamos, claro, de Francisco Camacho e Carlota Lagido, ele a coreografá-la e ela, depois a assinar os figurinos das suas peças, e ainda de Sílvia Real e Sérgio Pelágio, ela a coreografar-se e ele a sublinhar a sua particular construção através da banda-sonora.
Depois teríamos que falar de peças, mais do que percursos. São os casos de "Nu Meio", de Filipa Francisco e Bruno Cochat, de "Dançar Cabo Verde", de Clara Andermatt e Paulo Ribeiro, de "Antonio Miguel" e "Antonio & Miguel", de Miguel Pereira e Antonio Tagliarini", de "Swingers", de André Murraças e Inês Jacques.
E, por fim, e de modo a explicar a singularidade, de vidas que se cruzam com o trabalho, como os casos de Ana Borralho e João Galante (em destaque neste trimestre com uma quase retrospectiva no Maria Matos), de Luís Guerra e Tânia Carvalho, que se coreografam mutuamente, e, no que agora importa focar, Sofia Dias e Vítor Roriz.
"Unfolding", a peça que apresentam este sábado, 2, no festival Circular, em Vila do Conde, é a sétima peça que co-assinam e teve a sua estreia em 2009 no âmbito do projecto internacional Looping, desenvolvido pelo festival Uzés Danse CDC (França), em parceria com o TanzWerkstaat Berlim (Alemanha) e o Espaço do Tempo (Portugal). Mas não teve ainda direito a uma apresentação regular em Portugal. E é pena, já que simboliza a solidificação de um percurso feito à margem de uma qualquer obediência estilística, liberto de pressões deterministas e, muito particular, consciente da possibilidade de transformação do significado do movimento quando exposto perante o quadro formal de uma apresentação.
Estados mentais
Sofia Dias e Vítor Roriz falam, entrecortando a palavra e terminando um as frases do outro, de "estados mentais": "Há uma estrutura que é fixa no nosso trabalho mas há também e sempre uma margem de improviso. Isso permite-nos reciclar estando a fazer. Acreditamos muito no efeito do real no momento da apresentação", começam por contar.
É um trabalho de detalhe, introspectivo, que vai relevando uma estrutura feita a partir da memória que o corpo traz para cada movimento, feito de frases coreográficas que são atentas aos percursos individuais, ela vinda do Conservatório Nacional e tendo prosseguido estudos em Nova Iorque, ele tendo-se licenciado em Educação Física e Desporto e continuado a formação no Fórum Dança, ambos com ampla experiência de trabalhos feitos com Wim Vandekeybus, Lília Mestre, Tânia Carvalho, Javier de Frutos, Jan Fabre ou Aldara Bizarro (e brevemente em cena no São Luiz na nova peça de Clara Andermatt e Marco Martins).
"Vamos fixando o processo à medida que o vamos repetindo. Não é tanto a nossa expectativa sobre o que deve ficar, embora façamos coisas muito claras, mas deixarmos que seja o trabalho a revelar-nos isso. Quando começamos a improvisar há um estado mental que aflora e, ao longo do trabalho, vamos tentando definir o que não cabe nesse estado", explicam.
"O material vai-nos informando da direcção do trabalho. As soluções de composição vêm do material de trabalho", acrescentam, falando de uma "composição em tempo real". Este modelo de trabalho, que tem como base uma forte cumplicidade que procuram preservar - "convidamos pessoas para verem o trabalho, mas às vezes isso leva-nos para outros lados que não são os do processo", dizem -, permite que as suas peças possam ser entendidas como paragens de um discurso. "Há algo que vai muito para lá da articulação de palavras. Escrevemos muito, falamos muito e, por isso, não é um estado de transe. A dada altura segues numa espiral em que já não és tu que dominas o material, mas há regras e nisso somos certinhos".
Ele trabalha mais de manhã e ela mais à noite: "Quando nos encontramos, à tarde, o trabalho surge desses ritmos. No fundo estamos sempre a falar da mesma coisa mas é a sensação de incompletude que nos faz questionar. É como se os trabalhos fossem tentativas de experimentação de um discurso que surge deste nosso encontro".
O que nos têm vindo a apresentar parece partir dessa inquietude que faz com que os seus corpos activem ideias que encontram num corpo em aberto uma forma de trabalho não definitiva. "Unfolding" explora uma energia particular, criada a partir do diálogo proposto pelos dois corpos, "sem que se tenha ido especificamente à procura dela". "Tem a ver com o facto de nós próprios passarmos por uma experiência quando fazemos a peça. Há formas de acção e interpretação que vão condicionando os processos e aquilo a que chegamos são coisas muito simples que encontram o seu espaço e a sua justificação". Dizem ainda que "há um esforço grande de pesquisa" que leva o corpo a perguntar o que traz como memória e o que entende como percurso. "Esta ideia de contenção obriga a uma depuração", reconhecem. E nessa depuração, ou através dessa pesquisa atenta a um percurso livre, o que estão a construir oferece paisagens que a criação contemporânea portuguesa há muito não encontrava.