O desassossego de João Botelho
É uma das obras mais arriscadas da filmografia de João Botelho: "Filme do Desassossego", adaptação do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa, tem estreia absoluta no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, na próxima quarta-feira, dia 29. É uma obra central da literatura portuguesa, das mais traduzidas a nível mundial, que chega agora ao cinema, dando corpo a Bernardo Soares, o quase-heterónimo que Pessoa criou para espelhar a sua vida diária em Lisboa, e às projecções que Botelho construiu da cidade. Num gesto radical, o cineasta recusou distribuir o filme nas salas de cinema do país e optou por criar o seu próprio roteiro alternativo: depois da estreia, o filme será exibido numa rede de salas de espectáculo e de cineteatros espalhada pelo continente e pelas ilhas.
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É uma das obras mais arriscadas da filmografia de João Botelho: "Filme do Desassossego", adaptação do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa, tem estreia absoluta no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, na próxima quarta-feira, dia 29. É uma obra central da literatura portuguesa, das mais traduzidas a nível mundial, que chega agora ao cinema, dando corpo a Bernardo Soares, o quase-heterónimo que Pessoa criou para espelhar a sua vida diária em Lisboa, e às projecções que Botelho construiu da cidade. Num gesto radical, o cineasta recusou distribuir o filme nas salas de cinema do país e optou por criar o seu próprio roteiro alternativo: depois da estreia, o filme será exibido numa rede de salas de espectáculo e de cineteatros espalhada pelo continente e pelas ilhas.
Como se adapta o "Livro do Desassossego"? É um livro em que tudo é relativo e o relativo é absoluto....
Podia fazer um filme de 50 horas ou 50 filmes de uma hora. O "Livro do Desassossego" não é um livro definitivo, é um livro aberto. Podíamos ir pela cronologia de vida, por associação de ideias. Mas quis uma cronologia na progressão: há um hiato de 15 anos entre a primeira fase do texto e o final, mais maduro. Qualquer um de nós pode fazer um "Livro do Desassossego": o Pessoa permitiu isso, é um puzzle sem fim nem solução. E isso é muito agradável no cinema. Tinha isso como ponto de partida: a ideia de que o cinema é aberto. Há três coisas no "Livro do Desassossego" que me levaram a esse risco. A primeira é a sua ideia de luz: devem iluminar-se as caras dos santos e as polainas das pessoas normais da mesma maneira. Pessoa ia ao cinema - o Richard Zenith [investigador pessoano e organizador da edição do "Livro do Desassossego" na Assírio & Alvim] disse-me que havia textos inéditos dele sobre cinema. Depois, havia um texto sobre a distorção do tempo. Como o tempo do cinema nunca é o da vida, isso deu-me a estrutura do filme. Parece que se passa em três dias e três noites, e depois em três minutos, mas na verdade passa-se no tempo real do filme. Por fim, havia uma afirmação fundamental: o "Livro do Desassossego" só existe em voz alta. Isso permitiu-me brincar com canções e óperas.
Essa oralidade torna a adaptação cinematográfica difícil devido à presença da declamação. É um filme em que toda a cidade tende para a literatura, o que pode ser sufocante.
Mas a ideia é sufocar. O grande risco está em não permitir que os actores interpretem o texto; não queria que acrescentassem sentidos abusivos. Por outro lado, queria tornar o filme o mais abstracto possível, com índices de realidade e de inverosimilhança e uma geografia de Lisboa fora do tempo, que tanto pode ser de há 30 anos como de daqui a 50. O filme são fragmentos em série, tal como a escrita de Bernardo Soares. Bernardo Soares está cada vez mais angustiado, e, quando parece que atinge o sossego, fica de novo desassossegado. Dá-nos armadilhas sucessivas, como quando diz "a minha pátria é a língua portuguesa" e a seguir "não escrevo em português, escrevo eu mesmo". O grande problema é ser digno do texto e não o violentar. Se calhar, o ideal seria fazer como o João César Monteiro, só com negro e texto. Mas precisava de uma Lisboa abstracta que permitisse a circulação de alguém que não é uma pessoa igual ao Pessoa, mas um quase-igual.
De onde vem a sua relação com o livro?Estava numa crise de vida, comecei a ler o livro e não parei. O meu sofrimento, ao pé daquele, era ridículo. Salvou-me porque era um livro muito violento sobre a abdicação. Diz que não é preciso dançar, basta ver dançar. A grande dificuldade foi escolher o que deitar fora, trabalhei seis meses até chegar a uma solução razoável. Sei que é apenas uma das hipóteses de filmar o "Livro do Desassossego". Há textos que deixei quase integrais, como "Educação Sentimental", um dos mais comoventes que já li. Queria chegar à origem, fazer o grande plano da matéria do texto na sua boca. Chegar a isso foi muito atractivo.
Como é que se consegue ser livre a adaptar um livro com uma carga cultural tão pesada?
É-se livre quando se arrisca. O texto é do "Livro do Desassossego", mas fiz alterações para haver ligações. Ser livre é usar uma premissa que aprendi com Godard: pôr tudo num filme. Lumière é o meu início do cinema, mas este filme está cheio de Méliès: há vidros pintados à frente da câmara, sombras projectadas com papéis e um projector no chão. Tenho coisas feitas à mão, algo que me interessava experimentar. Há muitos planos feitos contra o espelho para dar uma inquietação da imagem. Não tinha muitos meios, mas gosto de filmar as ideias, como a ideia da morte e a ideia do sexo, sem "voyeurismo". Isso sim é complicado.
Como é que se filma o sonho?
Não há um único sonho, são cenas de ficção. Bernardo Soares inventa conversas como, por exemplo, a de Rita Blanco com Miguel Guilherme sobre a literatura e a gramática. Bernardo Soares diz: "Eles nunca disseram isto, inventei esta cena porque achei que deviam falar assim". Interessava-me a possibilidade de uma ficção quase sem ficção. O cinema é uma associação de ideias, gosto que o cérebro circule, que não existam soluções mas inquietações. É um filme cheio de perguntas sobre a forma e as situações. No final, o livro não é dele: Pessoa inventou uma personagem e Bernardo Soares inventou as pessoas. E o que é decisivo nele é a maneira de escrever. Nem é o que está escrito - é a maneira como ele escreve. No texto da morte do Luís II da Baviera, dei conta de que podia dividi-lo em rimas musicais, como nas canções do filme. Queria afirmar a musicalidade de Pessoa.
Existe também uma ficção da cidade, cenas em que as paisagens de Lisboa se sobrepõem.
Interessou-me um texto dele sobre o cubismo. Filmei quase tudo a 50 metros de minha casa. É uma liberdade do cinema: ele vive na Rua dos Douradores, mas filmei-o noutro sítio. O escritório é o Arquivo Histórico Militar em Chelas, o mais angustiante que encontrei - são corredores de 80 metros de prateleiras com a nossa vida. Quis mudar a geografia de Lisboa porque Pessoa foi o maior viajante do mundo sem nunca ter saído da cidade. A sua escrita tem muitos níveis: psicanálise, psicologia, sociologia, textos de direita, de esquerda, anárquicos. É a fragmentação de um mundo sem centro, tal como o mundo de hoje. E isso é uma premonição em relação ao futuro.
Não existe o perigo de recriar a Lisboa de Pessoa como um postal?
Sei que Pessoa frequentava o Terreiro do Paço e gostava de estar no Cais das Colunas. Pôr a Lula Pena a cantar "O Criador de Argonautas" quando a personagem está em contraluz em relação à paisagem serve para atenuar isso. Pode parecer um postal, mas por outro lado é o meu Infante, é a perda do mar. Quando abordo a solidão do Pessoa quanto à ideia de Deus, fui buscar a Igreja da Inquisição mais negra, com mais passado e peso cultural sobre Lisboa, onde houve um incêndio e se faziam os autos de fé. Quis uma geografia que destruísse a ideia do postal bem feito. É evidente que não podia fugir à Rua dos Douradores, aquela rua miserável e pequenina que foi uma grande parte da vida dele.
Acha que a Lisboa de Pessoa ainda está presente?
Sim. Ele pensava o futuro. Há uma luz que se faz em certas pessoas, como quando se faz as "Demoiselles d'Avignon" e se muda a pintura do mundo. Sei que os heterónimos já existiam, mas Pessoa criou um mundo de escrita, uma nova maneira de ligar as palavras portuguesas. Tive a sua arca comigo quando fiz "Conversa Acabada" (1982) e nem se sonhava com o "Livro do Desassossego", só se ouviu falar dele alguns anos depois... Encontrei folhas que pareciam canções do Cole Porter. Ele meteu-se em tudo, era um cérebro descomunal.
Outro elemento do presente é a maneira como associa as actrizes às imagens a que estão associadas na representação ou na vida: a Mónica Calle como corpo nu, a Margarida Vila-Nova como mãe, a Ana Moreira como rapariga pálida, a Alexandra Lencastre como centro da mesa...
É a democracia do texto - utilizar os actores como são. O Cláudio da Silva, que interpreta o Bernardo Soares, anda com a manca que realmente tem. Quando diz que tem dificuldade em andar, é um texto meu, tive de justificar um actor que teve pólio na infância. Esse defeito (ou virtude) físico permitiu-me criar um desequilíbrio, sem o disfarçar. Trata-se de não esconder ou alterar as pessoas, poderem ser elas a dizer um texto de Pessoa. Peguei na minha família de actores e juntei outros, como a Maria Antunes, que trabalha no Lux e é a minha Vénus de peles. Quando filmo, pego sempre em dois pintores: peguei em Lucian Freud para filmar os corpos e em Gerhard Richter para a desfocagem. Depois destruí-os, porque é algo que não sei fazer, mas há sempre um ponto de partida de referência. São matérias e convocações que me ajudam. Há coisas do Griffith neste filme, são memórias.
Como objecto cultural, o "Livro do Desassossego" também tem uma função escolar. O filme não vai passar nas salas de cinema e vai ser distribuído numa rede de teatros e escolas.
Vou fazer sessões à tarde em que vou falar de cinema, e também para os alunos das escolas e das faculdades. Há filmes que precisam disso. Fiquei muito triste com "A Corte do Norte" (2008): é uma boa adaptação de um livro da Agustina Bessa-Luís e fez uma merda de espectadores, desculpe a expressão. Já chega de salas de coca-colas, perdemos as salas todas. No centro do Porto, não há uma sala de cinema; em Lisboa, só em centros comerciais. É preciso criar dignidade no cinema. Inspirei-me no "Miserere" da Cornucópia, há uns meses, no Teatro Nacional D. Maria II. Estavam lá miúdos, uma confusão enorme, telemóveis ligados. Começou a peça e calaram-se, viram-na religiosamente. A dignidade da sala impôs respeito. E é também a ideia do cinema ambulante: uma carrinha e um projector. Somos apoiados pelo Estado, por isso devemos fazer serviço público. Não se pode estar numa sala a ouvir o texto de Bernardo Soares a comer e a beber.
As salas de cinema já não são dignas dos filmes?Não. É uma coisa para aventuras infanto-juvenis. A maioria das pessoas que vão ao cinema são miúdos. Os adultos têm mais relação com as séries televisivas americanas, onde há mais cinema clássico, do que em filmes com três mil planos. Hoje, ir ao cinema é consumir, tanto faz comprar sapatos como ver um filme. Desapareceu a ideia da sala escura, a dignidade do espectáculo. Os adultos vêem em casa, com agrado, os "Sopranos" e o "The Office", que é uma invenção inacreditável do ponto de vista cinematográfico; eles olham para a câmara e não se sabe se é verdade ou mentira. Os miúdos vão às salas porque é uma aventura de adolescentes. Há miúdos que acham que o cinema começou com o Tarantino!
Mas que futuro é que as salas têm se cineastas que carregam a história do cinema já não passam lá os seus filmes?
É preciso fazer novas salas.
Mas se tirarmos os espectadores delas..
É preciso inventar circuitos de arte e ensaio que não sejam de consumo imediato. Quero chegar ao máximo número de pessoas, nunca penso fazer 300 mil espectadores, mas quero, pelo menos, 30 mil, não três mil. E a maneira de o fazer é com projecções no país inteiro. Depois, faço uma sessão na Aula Magna para 1.400 pessoas. Vou também a outras universidades arrastar as pessoas para uma sessão.
Vai seleccionar os seus espectadores...
Quem me dera que fosse para todos, mas não querem. Se eu pusesse o filme numa sala comercial, destruíam-me.
Numa sala comercial com 20 espectadores. 19 podem detestar o filme, mas há um que adora. Pode mudar a vida desse espectador.
Mas os 19 que detestam incomodam a pessoa que adora. Quero um sítio onde as pessoas sejam livres, sem telemóveis a perturbar a atenção. Como dizia o Manoel de Oliveira, bastam dois espectadores para o filme existir, mas temos de chegar ao maior número de pessoas possível. Em Portugal, se o cinema não for apoiado pelo Estado, não existe. Os filmes que se dizem comerciais dão mais prejuízo do que os filmes de arte e ensaio. Não saem de cá e o mercado português não dá para pagar um décimo do filme. Somos apoiados pelo Estado, por isso temos de devolver a atenção que o Estado nos dá para ganhar o maior número de pessoas. Trata-se de dar a possibilidade de existir a um cinema que pensa.
Mas custa-lhe não poder fazer isso com outros filmes? Porque o "Livro do Desassossego" é um objecto que, à partida, permite...
Pode ser a inauguração de uma rede. Comprámos um projector para ir de sala em sala, vamos tentar pagá-lo com a exibição. Há teatros fantásticos: uns dão a receita, outros compram a exibição. Numa sala de cinema, o distribuidor dá apenas um quinto do bilhete ao produtor.