A segunda vida de um caixeiro viajante

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Willy Loman podia ser um daqueles americanos médios que vimos há dois anos a atirar-se do quinto andar por não terem onde cair mortos depois da espectacular falência da Lehman Brothers, mas em 1954, quando o caixeiro-viajante de Arthur Miller chegou ao Cineteatro Vale Formoso com as suas malas gastas e a sua vida com vista para hipotecas, frigoríficos pagos em suaves prestações mensais, "tijolos e janelas, janelas e tijolos", a crise do "subprime" era ficção científica (embora os irmãos Lehman já estivessem estabelecidos em Nova Iorque há quase cem anos e o "middlename" do capitalismo fosse este que continua a ter hoje: selvagem). O que não era, embora parecesse, ficção científica, era um grupo de amadores dirigido por um visionário, António Pedro (ver caixa), ter tido unhas para estrear um texto que nenhuma companhia profissional se tinha atrevido a encenar (Amélia Rey Colaço, Vasco Morgado? "A Morte de Um Caixeiro Viajante" metia medo até aos "grandes da época"), e o pano ter subido "15 ou 16 vezes" em Lisboa, no Teatro Apolo, repetindo, mas agora em grande, e na capital do Império, o sucesso do espectáculo no Porto.

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Willy Loman podia ser um daqueles americanos médios que vimos há dois anos a atirar-se do quinto andar por não terem onde cair mortos depois da espectacular falência da Lehman Brothers, mas em 1954, quando o caixeiro-viajante de Arthur Miller chegou ao Cineteatro Vale Formoso com as suas malas gastas e a sua vida com vista para hipotecas, frigoríficos pagos em suaves prestações mensais, "tijolos e janelas, janelas e tijolos", a crise do "subprime" era ficção científica (embora os irmãos Lehman já estivessem estabelecidos em Nova Iorque há quase cem anos e o "middlename" do capitalismo fosse este que continua a ter hoje: selvagem). O que não era, embora parecesse, ficção científica, era um grupo de amadores dirigido por um visionário, António Pedro (ver caixa), ter tido unhas para estrear um texto que nenhuma companhia profissional se tinha atrevido a encenar (Amélia Rey Colaço, Vasco Morgado? "A Morte de Um Caixeiro Viajante" metia medo até aos "grandes da época"), e o pano ter subido "15 ou 16 vezes" em Lisboa, no Teatro Apolo, repetindo, mas agora em grande, e na capital do Império, o sucesso do espectáculo no Porto.

É uma das melhores histórias do Teatro Experimental do Porto (TEP), e agora Gonçalo Amorim (Porto, 1976) quer contá-la outra vez. Passaram-se 56 anos, o TEP já não é um "hype", mas Willy Loman continua vivo, e isto podia ser por aí: um encenador nos seus 30 e tais a atirar-se, a convite de uma companhia antiga, a um texto que podia ter sido escrito ontem (a crise, a concorrência, empregados antigos atirados para o balde do lixo, uma casa finalmente paga quando já não há ninguém para lá morar) e a tirar de lá, como se tiram coelhos da cartola, lições para este início do século XXI.

Podia ser por aí, mas não é. Gonçalo Amorim quis que olhássemos para a sua versão de "A Morte de Um Caixeiro Viajante" e víssemos não o presente, mas o passado: "Surpreendi-me com o texto do Miller quando o li, já depois de ter proposto ao TEP remontá-lo. Estava a ler e a pensar: mas isto é de agora! Como a minha proposta original era pegar nisto não pelo texto, mas pela encenação que o António Pedro fez em 1954, admito que tem havido uma guerra entre essa intenção e a genialidade do Arthur Miller, mas acho que o Miller e o António Pedro não se devoram um ao outro", explica. Isto que está desde ontem, e até 17 de Outubro, no Auditório Municipal de Gaia é, sobretudo um exercício de "arqueologia teatral criativa" - e, portanto, vermos atrás de Willy Loman a sombra de António Pedro é mais importante do quer vermos atrás de Willy Loman a sombra da Lehman Brothers, a sombra do desempregado que podia ser o vizinho do lado, que podíamos ser nós.

Também tem a sua emoção, vermos a nossa sombra em todo o lado, mas não é a emoção de fazer arqueologia, não é a emoção de reconstituir a história (sempre muito mal contada) do teatro português. Gonçalo Amorim gosta de coisas velhas, com marcas do tempo (uma das últimas coisas que fez, no Alkantara Festival, foi um espectáculo chamado, e passado num, "Centro de Dia"), e a verdade é que comeu muito pó ao longo deste processo: "Vimos o que havia para ver dessa primeira montagem de 1954 - fotografias de cena, maquetas do cenário, adereços, programas, críticas. Depois esquecemos tudo".

O que é um exagero, porque parte do que o António Pedro, o primeiro director artístico do TEP, fez nessa histórica encenação de 1954 continua lá - a nova versão de "A Morte de Um Caixeiro Viajante" (tal como a anterior remontagem de "O Morgado de Fafe Amoroso", de Camilo Castelo Branco, por Susana Sá, e a próxima remontagem de "Jornada para a Noite", de Eugene O'Neill, por Nuno Cardoso: o TEP a fazer-se aos jovens turcos do teatro português) é uma maneira de dizer que ele continua vivo, cem anos depois.

História viva

Várias peças do puzzle que foi essa encenação histórica continuam vivas - a começar pelo ponto, Joyce Piedade, e por uma das actrizes secundárias, Dulce Pessoa, a primeira Miss Forsythe de António Pedro (houve uma segunda, porque o TEP repôs a peça em 1958, com algumas alterações no elenco, entretanto profissionalizado). Por causa deste regresso ao passado, Piedade, que até hoje é sócio do TEP, embora tenha saído da companhia ao mesmo tempo que António Pedro, estava nervoso "como um pai que está à espera do nascimento de um filho" quando o Ípsilon lhe telefonou. "Juntamente com a 'Antígona' [1954], o 'Macbeth' [1956] e 'Ratos e Homens' [1957], 'A Morte de Um Caixeiro Viajante' é das peças que mais me marcaram. Quando a estreámos, no Vale Formoso, a casa estava cheia e, como se dizia na altura, ninguém atirou batatas. Mas a grande peripécia foi quando chegámos ao Apolo, em Lisboa. Fizemos um brilharete lindíssimo. O pano subiu e desceu 15 ou 16 vezes e fomos cumprimentados nos bastidores por todos os grandes do teatro português".

Dulce Pessoa não foi ontem à estreia: mudou-se para Lisboa em 1970, quando António Pedro já não estava vivo, e é em Lisboa que vai ver a peça em que se estreou, num papel pequeno ("Eu queixava-me muito que o António Pedro só me dava papéis pequenos, e um dia a Eunice Muñoz deu-me uma lição: 'Não há papéis pequenos, só há actores pequenos'"), quando "A Morte de Um Caixeiro Viajante" chegar ao Teatro Municipal São Luiz, em Fevereiro. Era uma das duas raparigas que aparecem no bar com "umas poses um bocado adiantadas" e ainda hoje se lembra da versão "mais inofensiva" que o TEP mostrou à censura. "Era uma peça muito forte e o António Pedro tinha os actores certos para aquilo. A gente era felicíssima a ver o João Guedes e a Dalila Rocha a representar. Aliás ele só pôde fazer o 'Caixeiro' porque os tinha", diz ao Ípsilon. A peça de Arthur Miller já estava na lista das coisas que o TEP queria fazer mesmo antes de António Pedro ter chegado à companhia, mas houve outros casos em que era só ele estalar os dedos e eles faziam o que quer fosse, até um "Macbeth": "Ele dizia-nos 'vamos lá partir as pernas' e nós dizíamos 'vamos', sem sabermos para o que íamos. Estávamos lá para partir as pernas, ou a cabeça, o que é uma boa metáfora do que era um grupo amador fazer um 'Macbeth' naquela altura".

Nem Joyce Piedade nem Dulce Pessoa estão em palco agora, mas há uma série de figuras da história do TEP que estão, a começar por José Brás, de 84 anos, que era o homem que despedia Willy Loman na versão de 1958 e agora é o "barman" que lhe serve um uísque. Estava cheio de saudades da peça em que "pela primeira vez em Portugal os actores mostraram as costas ao público" e das idas do TEP a Lisboa ("Nós enchemos o Teatro Avenida na noite de Natal com o 'Rinoceronte'"), para onde se mudou em 1971, como todos os grandes actores do TEP (João Guedes e Dalila Rocha, os protagonistas do "Caixeiro" foram os primeiros a sair nesse "brain drain").

Nisso de ter José Brás a contracenar com os novos, esta remontagem é a verdadeira história viva do TEP: várias gerações de actores da companhia (e várias maneiras de fazer teatro) cruzam-se em três horas que na prática são 50 e tal anos, e tudo dentro de um cenário que actualiza o original de António Pedro (e que às vezes é mesmo o original de António Pedro: a bola é a dos anos 50, e a maneira de usar a cortina é uma coisa que ficou na cabeça de Gonçalo Amorim). "Os grandes empresários do teatro português achavam que esta peça não se podia fazer porque tinha demasiada cenografia. Nada disso: isto é a cabeça de um homem, e o que é impressionante é como o palco se parece com a cabeça de um homem. O António Pedro pôs isso muito bem nesta casa: o telhado parece um chapéu, parece o prolongamento da cabeça do Willy Loman", argumenta o encenador.

A versão 2010 de "A Morte de Um Caixeiro Viajante" sai completamente do corpo de Cláudio da Silva, o Willy Loman que fala sem parar como se parar fosse morrer, mas também sai do corpo do TEP: "O teatro anda sempre a correr atrás do novo, mas a mim interessam-me os grandes arcos históricos, e interessam-me os anacronismos também. Aqui o teatro evoca-se a si próprio, através de um adereço dos anos 50, através da marca que um actor velho traz para o palco". O corpo, de resto, é tudo nesta peça: Gonçalo Amorim vê-a como o confronto entre "um corpo que nunca tem descanso", o de Willy, e os "novos corpos do pós-guerra, viris e cheios de sexo" dos filhos Biff e Happy.

O velho corpo do TEP, um corpo que nos últimos anos se tornou irrelevante, e o novo corpo da companhia, que este ano se refunda para o centenário de António Pedro, também estão em confronto aqui. O que começou por ser um convite a Gonçalo Amorim - neto de um dos fundadores da companhia, Orlando Juncal - para assumir a direcção artística do TEP (convite recusado para já, por ser "prematuro") transformou-se num "happening" como o de 1954: 56 anos depois, voltamos a falar do TEP. Coisa em grande, coisa em grande.