Na Casa de Paula Rego, a história recomeça do zero

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A Casa de Paula Rego está aberta há um ano Foto: Nuno Ferreira Santos/arquivo

É um desafio: como fazer uma exposição na Casa das Histórias, o museu dedicado a Paula Rego em Cascais, quando a fatia mais importante da colecção que a pintora aí depositou vai viajar, já em 2011, para duas grandes exposições, no México e na Pinacoteca de São Paulo?

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É um desafio: como fazer uma exposição na Casa das Histórias, o museu dedicado a Paula Rego em Cascais, quando a fatia mais importante da colecção que a pintora aí depositou vai viajar, já em 2011, para duas grandes exposições, no México e na Pinacoteca de São Paulo?

“Gosto de trabalhos difíceis”, diz, com um sorriso, Helena de Freitas, a nova directora da Casa, no cargo há apenas cinco meses, e que se prepara para, hoje, celebrar o primeiro aniversário do museu criado pela Câmara Municipal de Cascais a partir da doação e empréstimos feitos pela artista, que passou a infância ali perto, no Estoril, mas que vive há mais de trinta anos em Inglaterra.

Neste momento, é o universo de Victor Willing, marido de Paula Rego, falecido em 1988, que enche as paredes da Casa – uma exposição com curadoria de Hellmut Wohl, que corresponde a um grande desejo de Paula Rego e que já estava programada.

Mas, a partir de Janeiro, Helena de Freitas – que veio do Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (comissariou a grande exposição da Fundação sobre Amadeo de Souza-Cardoso) para substituir Dalila Rodrigues, afastada da direcção da Casa das Histórias um mês depois de o museu ter inaugurado, por divergências com a artista e a administração da Fundação Paula Rego – tem esse novo, e enorme, desafio.

É um trabalho de imaginação – mas a directora já tem ideias concretas sobre o caminho a seguir. Tem uma colecção composta por 220 desenhos e 257 gravuras doadas, mais 52 pinturas e 206 desenhos emprestados por um período de dez anos renovável, e ainda 11 telas de Victor Willing. Além disso, tem uma equipa de 23 pessoas, um espaço cuja organização interna “terá que ser mais versátil porque a programação também não é rígida”, e um orçamento “que neste momento não é tão regular como tinha imaginado, mas essa é uma circunstância que todos os museus estão a viver”. É com isto que terá que “reformular o museu todo a partir de Fevereiro”, explica, sentada no seu gabinete no edifício concebido pelo arquitecto Eduardo Souto Moura para albergar o trabalho de Paula Rego – e todas as histórias que a partir dele possam nascer.

“O que viaja são 50 obras do nosso depósito. E, como temos um pé-direito muito grande, é difícil apresentarmos uma exposição apenas em torno da obra gráfica que aqui fica. As peças fi cariam perdidas no espaço.” Ou seja, são precisos quadros. A solução passa por uma parceria com o British Council. Helena de Freitas não quer ainda revelar muito, mas o que poderemos ver na Casa das Histórias serão obras da colecção do British Council – iniciada no final dos anos 1930 e que hoje tem mais de 8500 peças.

Mas não são quaisquer obras – serão as que Paula Rego escolher, serão aquilo que mais lhe interessa e atrai no trabalho dos outros artistas. A complementar esta exposição estarão também obras da pintora. “Estamos a fazer uma recolha das obras da Paula Rego que existem em colecções particulares em Portugal. Desde que aqui cheguei que achei que era importante fazer esse levantamento: onde está a obra da Paula Rego? Interessa-nos também mostrar obras menos conhecidas. Já tivemos surpresas muito boas.”

Sempre em diálogo

Tudo é feito sempre em diálogo com a artista. “Esta é a casa dela”, diz Helena. “Vamos articulando a programação com a Paula, sempre em diálogo, mas eu tenho autonomia de programação. Nunca senti nenhum autoritarismo da Paula. Existe uma grande cumplicidade e há objectivos comuns entre a minha programação e o que a Paula deseja que seja o museu dela. Isso é bom.”

Precisamente, a estratégia de programação terá sido um dos pontos de ruptura entre a artista e a anterior directora, Dalila Rodrigues. A saída de Dalila, que fora antes directora do Museu Grão-Vasco, em Viseu, e do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, foi recebida na altura com enorme surpresa. A inauguração do museu tinha acontecido um mês antes, a 18 de Setembro, com bastante sucesso, e, subitamente, a Fundação Paula Rego anuncia o afastamento da directora, apresentando vários motivos, entre os quais as “perspectivas divergentes [entre] a visão pessoal” de Dalila Rodrigues e “o modelo defendido pelo conselho de administração assegurando as orientações da pintora Paula Rego.”

Um ano volvido, contactada pelo P2, Dalila Rodrigues prefere não falar sobre o processo da sua saída da Casa das Histórias e Helena de Freitas confessa que não lhe “apetece falar sobre o passado” – “houve coisas que correram bem no projecto da anterior equipa, a casa teve uma exposição extraordinária, com imenso sucesso; e houve coisas que correram menos bem, julgo que terão sido aspectos relacionados com a programação e o não entendimento entre a artista e a direcção”. Mas a nova directora é clara num ponto: com a sua chegada, “há um fechar de um ciclo” e um recomeço.

“Não conheço a programação anterior, ela não era pública, e por isso tenho que partir do que existe. Existia a exposição do Victor Willing programada, foi um privilégio poder inaugurar uma exposição tão boa e surpreendente, mas a partir daqui é preciso começar do zero: todas as estruturas de um museu, tudo isso está para ser feito.” No entanto, a visão de Helena de Freitas para a Casa já está noutra exposição, com curadoria de Ana Ruivo, que acaba de inaugurar em simultâneo com a de Victor Willing – Paula Rego, Anos 70, Contos Populares e Outras Histórias –, que parte da investigação realizada pela artista sobre contos tradicionais portugueses quando, na década de 70, foi bolseira em Londres.

“Achámos que era importante manter uma presença, mesmo que discreta, da Paula Rego. São obras de um período muito difícil para ela, e que ela nunca gostou muito de mostrar, mas penso que está em reconciliação com esse trabalho e que foi muito importante mostrá-lo agora. Foi muito generosa.”

Esse “período difícil” (ligado à doença de Willing, que, em 1963, sofre um ataque cardíaco e, em 1966, é diagnosticado com esclerose múltipla) estava ausente da exposição que inaugurou o museu há um ano. “Havia obras dos anos 60, passava pelos anos 70 sem obra nenhuma, depois eram os anos 80 e por aí fora. Havia um hiato, uma suspensão de trabalho que não é verdadeira porque a Paula trabalhou intensamente nos anos 70, um trabalho muito experimental, muito à procura dos caminhos a seguir – e nestes trabalhos percebe-se bem como é que lá chegou.”

Entre o bem e o mal

Os contos populares que Paula estudou são um ponto de partida perfeito para se contar histórias. “São histórias que podem ajudar a perceber melhor a nossa identidade, que são muito nossas, são cruéis mas também éticas e pedagógicas. O trabalho da Paula Rego tem muito essa componente ética. Há um fundo que tem a ver com a procura do bem e do mal.” E na festa do primeiro aniversário, hoje e amanhã, vai haver muitas histórias – desde a narração de contos populares, com Catarina Requeijo, a teatro com Capuchinho Vermelho e o Sr. Eng. Lobo, por Carlos Alves, ou com A Galinha da Vizinha, de Graça Ochôa, mas também dança com Aldara Bizarro e música com os Alfa Arroba.

Mas, apesar de Paula Rego gostar de dizer que “as histórias são mais importantes do que os quadros” (“os quadros também são muito importantes”, ri Helena de Freitas), nem só de histórias se faz a lógica de programação da Casa. Os quadros de Victor Willing são um bom exemplo disso – ao contrário dos de Paula, não contam histórias.

A programação futura passará por coisas muito diferentes, com algumas linhas estratégicas. Uma delas será “o aprofundamento das relações do mundo das artes entre Portugal e a Inglaterra”, através de “trabalhos de jovens artistas a estudar em Inglaterra, ou artistas contemporâneos que possamos trazer a Portugal”.

Helena de Freitas está já a preparar uma exposição de Bruno Pacheco, artista plástico português a viver entre Inglaterra e Portugal, e outra do expressionista belga James Ensor (1860-1949). Para além de querer mostrar obras de Paula Rego nunca vistas em Portugal – como Oratório, um trabalho apresentado em Londres e que tem como referência os oratórios portugueses –, Helena pretende “trabalhar a pluralidade das fontes da artista”. Há muitos caminhos. “É um mundo que se quer em expansão.” Não é apenas um trabalho sobre Paula Rego – é um trabalho “a partir dos universos dela”. Até onde eles nos levarem.