Esther só se lembra do nome Freud nas entrevistas
Dona de uma escrita seguríssima mas que parece (enganadoramente) deixar-se levar sem rumo pela vontade das personagens, a escritora inglesa Esther Freud (n. 1963) - bisneta do pai da psicanálise e filha do pintor Lucian Freud, a quem por várias vezes serviu de modelo, bem como a sua irmã, a estilista Bella Freud - tem vindo, desde a sua estreia literária em 1991, com "Hideous Kinky" (onde narra os anos passados com a mãe em Marrocos e em comunidades "New Age"), a construir uma carreira literária sólida. Não se enganou a revista "Granta" quando logo no início dos anos 90 a incluiu na lista dos "Melhores Jovens Romancistas Britânicos".
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Dona de uma escrita seguríssima mas que parece (enganadoramente) deixar-se levar sem rumo pela vontade das personagens, a escritora inglesa Esther Freud (n. 1963) - bisneta do pai da psicanálise e filha do pintor Lucian Freud, a quem por várias vezes serviu de modelo, bem como a sua irmã, a estilista Bella Freud - tem vindo, desde a sua estreia literária em 1991, com "Hideous Kinky" (onde narra os anos passados com a mãe em Marrocos e em comunidades "New Age"), a construir uma carreira literária sólida. Não se enganou a revista "Granta" quando logo no início dos anos 90 a incluiu na lista dos "Melhores Jovens Romancistas Britânicos".
Autora de sete romances (o último, "Lucky Break", foi publicado já este ano no Reino Unido), tinha apenas um traduzido para português, "Um Verão em Siena" (ASA, 2009). Nele explorava mais uma vez os mistérios da adolescência e sobretudo as relações com um pai muitas vezes ausente (ou demitido) e com uma mãe adepta das modas "New Age", como sempre carregando as histórias de inúmeras referências autobiográficas. Esse romance é um mergulho (apesar de não muito profundo) nas emocionantes descobertas da adolescência, nos dolorosos rituais de passagem à idade adulta, no medo de crescer, na natureza da ambivalência do amor filial, nos segredos que os "crescidos" escondem e na sua complexa rede de relações.
Recentemente chegou às livrarias "A Casa do Mar", livro onde Freud parece abandonar os problemas dos adolescentes para se centrar em exclusivo nos dos adultos, mas que de uma maneira ou de outra são apenas a continuação (e em alguns casos o agravamento) do que já vinha de trás.
A acção de "A Casa do Mar" decorre em dois planos distintos: um em 1953 tendo por personagem Max Meyer, um pintor judeu surdo que sonha com casas. Ele vivia até há pouco com uma irmã; esta morreu recentemente e ele está só. É convidado, por uma amiga da irmã falecida, para retratar uma casa num lugar na costa de Suffolk. Vai deixando o tempo passar enquanto faz esquissos de todas as casas da aldeia. As memórias da sua infância não o deixam, e ele acaba por conhecer Elsa, uma mulher casada que se lembra de Max, do tempo da sua infância e adolescência. O outro plano narrativo decorre no mesmo lugar mas em 2000. Lily é uma académica (que deixou o namorado em Londres) que faz investigação sobre a vida do arquitecto Klaus Lehmann, e que lê e relê um enorme conjunto de cartas escritas por este para a sua muito amada mulher Elsa. Na casa ao lado da de Lily vivem um homem e as suas duas filhas...
Max e Lily procuram ambos, separados por mais de quarenta anos, apenas um lugar que sintam seu. Foi isso que Esther Freud disse em entrevista ao Ípsilon desde Londres, onde reside com o marido e três filhos.
"A Casa do Mar" é um romance sobre segredos, coisas e sentimentos escondidos?
É sempre difícil, para um autor, falar sobre o assunto que um romance trata. Mas acho que "A Casa do Mar" é sobretudo acerca da ânsia de encontrar um lugar para depois se poder pertencer a ele. E quem sabe se é alguma coisa escondida no nosso passado o que nos leva a encontrar esse lugar?
E essa coisa pode ser chamada arte, desejo, relações complexas? Porque o romance acaba por ser também sobre isso...
Sim. Porque são essas coisas escondidas que acabam por fazer de nós quem somos, aquilo que realmente queremos. E provavelmente tudo se resume ao amor.
Pela primeira vez nos seus romances, a história foca-se em problemas de adultos. Foi propositado? Quis explorar outro tipo de problemas?
Eu nunca pensei que escrevia muito sobre problemas de adolescentes, por isso, conscientemente eu não fiz essa escolha de escrever acerca de assuntos de adultos. Mas claro que as coisas foram chegando, primeiro com uma cena de sexo, e, claro, percebi que estava a escrever um livro diferente dos outros.
Mas por vezes parece que as duas raparigas [vizinhas da protagonista] querem ocupar mais espaço no romance. Teve que lutar contra essa vontade das personagens?
É verdade que as duas raparigas queriam ter um lugar maior no livro, e eu tive que lutar para não lhes dar a voz muitas vezes. Houve momentos como esses em que percebi que tinha que tomar decisões, por exemplo, que não haveria no livro nenhum ponto de vista expresso por crianças ou jovens.
Comparando com outros romances que escreveu, precisou de um trabalho maior de pesquisa para este? Pois trata de um tempo que não conheceu...
Eu fiz muita pesquisa para escrever o meu romance "Gaglow" [não publicado em Portugal]. Foi muito difícil, mas aprendi muita coisa - particularmente sobre a Alemanha na primeira metade do século XX -, por isso, quando comecei a escrever "A Casa do Mar", eu já tinha muita coisa. Tive que pesquisar sobre o modo de vida do artista no qual baseei a minha personagem. Também investiguei sobre a História da área de Suffolk, que serve de palco aos acontecimentos do romance.
E, li algures, havia também as cartas do seu avô [o arquitecto Ernst Freud] para inspirar a personagem de Klaus Lehmann, o arquitecto alemão judeu que fugiu ao nazismo... como o seu avô fez em 1933...
Um dos pontos de partida do romance foi de facto uma enorme caixa que o meu pai [o pintor Lucian Freud] me deu - eram cartas do meu avô para a minha avó, escritas durante muitíssimos anos, desde 1919 até à década de 60. Assim que as vi, soube logo que iriam entrar no meu livro, cuja acção queria situar na região costeira de Suffolk. Mas a parte mais estranha foi que, quando eu estava a escrever o livro, fui contactada por um jovem académico que me disse que estava a fazer uma pesquisa sobre o arquitecto Ernst Freud, e perguntou-me se eu sabia alguma coisa sobre o meu avô, se teria cartas... Esse académico era muito como a Lily que aparece no romance, e isso ajudou-me. É estranho como estas coisas acontecem quando se está a escrever um livro.
E a sua tia-avó Anna Freud, em que medida é que lhe deu inspiração para criar a personagem Gertrud, a psicanalista de crianças?
Uma vez alguém me contou - um homem que encontrei numa aldeia - que, quando ele era criança, a Anna Freud quis ajudar a família dele. Ele não tinha querido ir para a escola como o irmão, e então Anna Freud arranjou maneira de ele ter lições de piano quase à força. Eu adorei esta história - ele é o mais infeliz pianista porque nunca gostou de tocar -, por isso aproveitei-a para o romance.
O lugar de Steerborough, onde se passa o romance, existe mesmo na costa de Suffolk?
Steerborough é inspirada numa pequena aldeia para onde a minha família ia passar férias desde a década de 30, quando os meus avós por lá arranjaram uma casa... e a Anna Freud também ia. Toda a gente que saiba disto consegue reconhecer o lugar, apesar de eu ter misturado um bocado as coisas para ter um pouco mais de liberdade - inventar uma linha de caminho-de-ferro, por exemplo - acerca de coisas que não existiam mas que eu sentia fazerem falta ao romance.
Quais são as suas influências literárias?
Eu fui influenciada pelo estilo limpo e claro de Jean Rhys, e inspirada por outros maravilhosos escritores, mas são tantos para os estar agora a mencionar...
Tem uma especial fascinação por casas?
Tenho obsessão. E usei muita dessa minha obsessão por casas na escrita de "A Casa do Mar" - dando ao artista surdo o meu sonho recorrente de encontrar a casa perfeita. E possivelmente também curando-me - não tenho tido esse sonho desde há muito tempo.
O que é que o seu pai lhe ensinou sobre o processo criativo?
Ensinou-me que se tem que ser paciente e trabalhar muito se quisermos criar alguma coisa. E depois continuar a trabalhar. Que o talento influencia muito pouco, e que tudo o resto no processo criativo se chama esforço e capacidade de trabalho.
Qual é o peso, na sua carreira, de ter um nome de família como o seu? Perturba-a?
Quase não penso nisso, só nas entrevistas. Apenas penso em como fazer um livro tão bom quanto possível. É tudo o que me interessa. E aos leitores também. Eles não querem saber do meu nome.