O Verão verdadeiro

A literatura comparada também é isto: com 48 horas de intervalo, dois escritores nos antípodas um do outro, o americano Bret Easton Ellis (n. 1964) e o português João Tordo (n. 1975), repetem as mesmas ideias de forma quase literal. Entrevistado pelo Ípsilon, Ellis afirma: "Não me preocupo com a Literatura." Põe aspas em literatura. Entevistado pelo "i", Tordo diz o que pensa do caso português: "Existe um conjunto de regras das quais não se deve sair se queremos fazer o que cá se chama literatura." Tal como Ellis, que evita o Panteão americano (James, Faulkner, Bellow, etc.), Tordo faz questão de deixar claro que "o que cá se chama literatura" pode não ser literatura, de facto. É o postulado de quem escreve ao arrepio dos experimentalismos abjeccionistas e metafísicos que fizeram o mito da "ficção" portuguesa dos anos 60. (Quem a lê hoje?) Não está sozinho: Paulo Castilho, Hélia Correia e Ana Teresa Pereira, para dar exemplos claros, são predecessores bem sucedidos. Mas Tordo é o primeiro da sua geração a demarcar-se sem complexos da aura do escritor. Ainda que possa dizer, como a Llansol disse de si mesma: "escrevo sem romantismo, sem drama e sem consolação". O futuro dirá se valeu a pena.

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A literatura comparada também é isto: com 48 horas de intervalo, dois escritores nos antípodas um do outro, o americano Bret Easton Ellis (n. 1964) e o português João Tordo (n. 1975), repetem as mesmas ideias de forma quase literal. Entrevistado pelo Ípsilon, Ellis afirma: "Não me preocupo com a Literatura." Põe aspas em literatura. Entevistado pelo "i", Tordo diz o que pensa do caso português: "Existe um conjunto de regras das quais não se deve sair se queremos fazer o que cá se chama literatura." Tal como Ellis, que evita o Panteão americano (James, Faulkner, Bellow, etc.), Tordo faz questão de deixar claro que "o que cá se chama literatura" pode não ser literatura, de facto. É o postulado de quem escreve ao arrepio dos experimentalismos abjeccionistas e metafísicos que fizeram o mito da "ficção" portuguesa dos anos 60. (Quem a lê hoje?) Não está sozinho: Paulo Castilho, Hélia Correia e Ana Teresa Pereira, para dar exemplos claros, são predecessores bem sucedidos. Mas Tordo é o primeiro da sua geração a demarcar-se sem complexos da aura do escritor. Ainda que possa dizer, como a Llansol disse de si mesma: "escrevo sem romantismo, sem drama e sem consolação". O futuro dirá se valeu a pena.

"O Bom Inverno" é o quarto (e o melhor) romance do autor, que se estreou na literatura em 2004, depois de ter feito jornalismo literário e escrita criativa. No dia em que decidiu escrever o primeiro romance, "O Livro dos Homens Sem Luz", mandou o curso de Nova Iorque às urtigas. Aparentemente, não perdeu nada. A segurança da voz dá a medida do domínio dos recursos estilísticos.

Como em livros anteriores, a acção tem lugar fora de Portugal. O narrador é português e, apesar da pouca idade, coxo. (Coxo à maneira do Dr. House, com pose, bengala Rosewood e consumo imoderado de vicodin.) O expediente ilustra o óbvio: "O ponto de vista é a condição primeira da narrativa e a narrativa a condição primeira da ficção." Vem a propósito notar que seria temerário confundir o narrador com a pessoa do autor. À laia de "companion" de narratologia, as extensas notas de rodapé que fecham cada secção (não confundir com capítulos) sinalizam o subtexto com grande minúcia.

O narrador vai de Lisboa a Budapeste participar num ciclo de conferências, e é na capital húngara que conhece as personagens que animam a intriga. Em pouco tempo estamos enredados num "thriller" contagiante sobre o desejo e as expectativas de um grupo de criadores jovens que tudo fará para "agitar as águas" em Sabaudia: "Os verões na propriedade de Metzger são conhecidos na comunidade artística internacional, e não apenas a do cinema." A escolha de Sabaudia para cenário da história estabelece um contraponto irónico com as contradições sociais e políticas da contemporaneidade. Sabaudia é uma estância balnear italiana da região do Lácio, frequentada por homens tão diferentes quanto Mussolini e Pasolini, famosa pelo urbanismo de Cancellotti, Montuori, Scalpelli e outros arquitectos fascistas. É lá que Vincenzo e os amigos encontram a prova da sua finitude: "Todos a carregamos connosco de uma maneira ou de outra, porque estamos agora e para sempre predestinados ao fracasso." Faz parte do jogo paródico que os protagonistas se chamem Vincenzo Gentile e Don Metzger.

O desenlace lembra "A História Secreta" (1992), de Donna Tartt. De certo modo, a propriedade de Metzger é o equivalente boémio de Hampden; e o narrador podia ser Richard Papen: "Se, por hipótese, nenhum dos presentes fosse culpado do assassinato de Don Metzger, isso só serviria para suscitar ainda mais incógnitas: quem então o fizera?". Apesar das diferenças geracionais, o imaginário de Tordo tem afinidades com o de Tartt.

Verosímeis, os diálogos são adequados às circunstâncias e às personagens. Contrariamente ao que tantas vezes sucede na literatura portuguesa, ninguém se exprime como se estivesse a invocar o senhor Manuel Luís de Sousa Coutinho (cf. Garrett) numa sessão espírita. Essa desenvoltura contribui para sedimentar o "plot", mantendo a fluência do ritmo narrativo.