A arquitectura portuguesa chega a casa em Veneza
As casas não estão lá, fisicamente (ficaram nas dunas da Comporta, em Campo de Ourique, no Alto Alentejo, no Bairro da Bouça), mas por pouco. A representação portuguesa na 12.ª Bienal de Arquitectura de Veneza leva à cidade italiana, a partir de 29 de Agosto, algo mais do que maquetas ou modelos de edifícios. Basta ler o título, "No place like - 4 houses, 4 films". É literal: em Veneza vão estar (não fisicamente, mas quase) quatro casas e (fisicamente, agora sim) quatro filmes. As casas são dos arquitectos Manuel e Francisco Aires Mateus (que, extra representação oficial portuguesa, estão também em "People meet in Architecture" - ver caixa), Ricardo Bak Gordon, João Luís Carrilho da Graça e Álvaro Siza Vieira. Os filmes são dos artistas plásticos Filipa César, Julião Sarmento e João Onofre, e do realizador de cinema João Salaviza, o mesmo de "Arena", que em 2009 venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes para as curtas-metragens.
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As casas não estão lá, fisicamente (ficaram nas dunas da Comporta, em Campo de Ourique, no Alto Alentejo, no Bairro da Bouça), mas por pouco. A representação portuguesa na 12.ª Bienal de Arquitectura de Veneza leva à cidade italiana, a partir de 29 de Agosto, algo mais do que maquetas ou modelos de edifícios. Basta ler o título, "No place like - 4 houses, 4 films". É literal: em Veneza vão estar (não fisicamente, mas quase) quatro casas e (fisicamente, agora sim) quatro filmes. As casas são dos arquitectos Manuel e Francisco Aires Mateus (que, extra representação oficial portuguesa, estão também em "People meet in Architecture" - ver caixa), Ricardo Bak Gordon, João Luís Carrilho da Graça e Álvaro Siza Vieira. Os filmes são dos artistas plásticos Filipa César, Julião Sarmento e João Onofre, e do realizador de cinema João Salaviza, o mesmo de "Arena", que em 2009 venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes para as curtas-metragens.
Não é necessário já ter visitado a exposição para tentar adivinhar as relações que ela sugere. Cinema e arquitectura, filmes e edifícios, casas e personagens, planos cinematográficos e desenhos de arquitectura. Mas regressemos, para já, a Veneza, onde o contingente de portugueses escolhidos por Julia Albani, José Mateus, Rita Palma e Delfim Sardo (membros da equipa curatorial de Trienal de Arquitectura de Lisboa, entidade convidada a colaborar este ano na representação oficial portuguesa) ocupa os dois pisos da Università Ca' Foscari, importante instituição pública cujo edifício, de estrutura veneziana, tem um invejável currículo de exposições (no ano passado, durante a Bienal de Arte, recebeu a exposição de Bruce Nauman).
Vamos entrar.
Da habitação social à casa na praia
O tema da Trienal de Lisboa - a habitação como momento redentor da arquitectura e motivação central do pensamento arquitectónico - contagiou a natureza e o espírito da operação Veneza. "Daí surgiu a ideia de escolher um certo número de casas, cada uma delas contada por um artista ou realizador através de um filme ficcional cujo protagonista fosse a própria casa", explica um dos curadores, o comissário e ensaísta Delfim Sardo. "Depois de um longa pesquisa, decidimos incluir casas que tivessem uma relação específica com o lugar e com uma determinada pré-existência. Esse foi o nosso ponto de partida", continua.
Pelo caminho, acertaram-se critérios. "Recusámos uma exposição que, com arquitecturas extraordinárias, passasse a ideia de um belo país com uma aristocracia rural. Podia acontecer, porque realmente alguns dos projectos de habitação com mais recursos são segundas casas feitas no campo. Nesse sentido, rejeitámos também a retórica dos recursos financeiros. Queríamos coisas mais ligadas à vivência dos seus habitantes", sublinha Delfim Sardo.
As casas escolhidas espelham estas intenções. O Bairro da Bouça, de Siza Vieira, desenvolvido no Porto logo após o 25 de Abril no contexto do Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL), foi interrompido após a sua primeira fase e ficou parado durante 30 anos, isolando-se da cidade e sofrendo a intervenção dos moradores. Quando o projecto foi retomado, o arquitecto manteve o desenho da segunda fase, mas incorporou as modificações "populares". A casa nas dunas da Comporta (Tróia), de Manuel e Francisco Aires Mateus, nasceu de construções precárias em madeira e alvenaria e abre o habitar ao mar e ao chão da areia. Invisível, nas traseiras do bairro de Campo de Ourique, em Lisboa, a casa de betão de Ricardo Bak Gordon preenche um espaço vazio com uma arquitectura de recortes modernistas, e revela-se num conjunto de pátios interiores como um palco disponível ao olhar (a casa dá para as traseiras dos prédios envolventes). A casa de Carrilho da Graça em Évora, no Alentejo, revela referências da arquitectura popular: mostra-se primeiro com a sua fachada mais simples e branca, cresce com um pátio e depois "entrega-se" ao campo em volta.
A qualidade arquitectónica, insiste o comissário, não foi o único critério. "Interessavam-nos [estes projectos] também porque faziam a quadratura de um círculo entre um bairro de habitação económica que conta a história da arquitectura portuguesa dos últimos 30 anos, uma casa à beira-mar, uma casa no Alentejo e uma casa no centro da cidade, cada uma respondendo a programas muito específicos de uma forma brilhante e com enorme economia e secura."
A emoção do cinema
Eleitas as casas, seguiram-se os artistas. Para o Bairro da Bouça foi escolhida Filipa César, para a casa da Comporta João Salaviza; João Onofre ficou com a habitação em Lisboa e Julião Sarmento com a "casa alentejana". "Foi mais ou menos natural", revela Delfim Sardo. "Entre o Julião Sarmento e o Carrilho da Graça existe uma enorme cumplicidade, já colaboraram nalguns projectos. No caso do Onofre, perguntámo-nos quem podia fazer um filme ficcional à volta de uma casa que está escondida num casco da cidade, quem podia fazer um 'close-up' para dentro daquela situação? E o nome apareceu como uma solução clara. O trabalho dele é sempre uma aproximação a alguma coisa que se está a passar em frente à câmara. Aqui tratava-se de uma aproximação a partir de fora para uma realidade fechada dentro de um quarteirão".
Para a Bouça a escolha recaiu numa artista de uma geração totalmente diferente da do arquitecto, mas com uma vivência do Porto e um trabalho que se situa entre o documentário e a ficção (e do qual não está ausente, antes pelo contrário, uma atenção particular ao social): Filipa César. A casa dos irmãos Mateus ficou nas mãos de João Salaviza. "É provavelmente a mais narrativa e a mais cinematográfica", sublinha o curador, "porque a utilização e a configuração [da casa] são completamente inusitadas, e por isso fomos à procura de um realizador de cinema". O talento do jovem cineasta para filmar espaços ajudou na decisão: "Tem uma sensibilidade arquitectónica fantástica e caracterizou aquele local com uma enorme economia processual".
Ao reflectirem sobre o que é viver o espaço arquitectónico, os filmes põem estas casas em movimento: "Pedimos uma curta ficcional sobre cada casa, mas não pedimos que mostrassem a casa na sua completude, até porque a única completude na vivência de um projecto arquitectónico é 'in loco'. Tem de se entrar, tem de se estar no espaço. A emoção da arquitectura é feita assim. E o mais semelhante, de forma a podermos proporcionar essa relação corporal com a arquitectura, não é a imagem fixa, mas a imagem háptica, do cinema".
Outra razão influenciou o trabalho com o filme, as relações históricas entre o cinema e a arquitectura: "Atravessam-se desde a génese do cinema e do modernismo arquitectónico, influenciando-se mutuamente. E há uma teorização dessas relações feita por gente como o Le Corbusier, o Mies van der Rhoe, o Philip Johnson, o Anthony Vidler, a Gionna Bruno".
A casa como palco
Todos os quatro filmes, de forma distinta, põem corpos em movimento no espaço para contarem a história das casas. O filme de Julião Sarmento, "Cromelech", narra a estadia de três raparigas na casa do Alentejo. Elas são os espectadores móveis no espaço, mas não estão sozinhas. O olho da câmara segue-as, desfoca-as, silencia-as (a dada altura uma voz em off, que parece descrever a casa, sobrepõe-se às vozes delas), e em certos planos manifestam-se "assuntos" recorrentes na obra do artista: o desejo, a figura feminina, o voyeurismo.
"Porto, 1975", de Filipa César, é um belíssimo plano-sequência (carregamos no superlativo) que começa numa imagem em movimento e termina numa imagem fixa (o objecto é o mesmo: um comboio) para descrever um passeio pelo Bairro da Bouça. Nos seus nove minutos, faz do corpo no espaço também o corpo de uma consciência política e de uma memória. João Onofre traz para a casa de Ricardo Bak Gordon não um ser humano, mas um barco. Vemo-lo recortado no céu azul e, seguro por um guindaste, a descer sobre a piscina da habitação. Uma acção inútil, uma performance absurda num espaço privado transformado em palco.
Na curta de João Salaviza só vemos a casa no fim e no princípio, mas ela é o centro geográfico do percurso da personagem: um rapaz que parte de manhã à procura da família e regressa à noite, à boleia com Germesindo, um homem da terra. Os dois conversam sobre a arquitectura local, as casas, os materiais e, nesse momento, tal como acontece com os espaços exteriores e interiores da casa da Comporta, a ficção e o documentário diluem-se (e pensa-se em Kiarostami). Numa curta conversa telefónica com o Ípsilon, o realizador resumiu assim a posição que inspirou a obra: "Para mim, a arquitectura e o cinema ligam-se não tanto numa questão estética, mas num princípio moral, político. Da mesma forma que acho que uma casa não nos deve limitar o quotidiano, o cinema não deve limitar o nosso olhar, o enquadramento não deve ser o limite afectivo e conceptual do olhar".