É preciso salvar o jardim do Paraíso

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Sai-se de Bassorá para norte, pela estrada que cruzará Nasiriyah e Amara antes de chegar a Bagdad. Atravessa-se os subúrbios extensos da segunda maior cidade do país, pobreza a perder de vista, e depois ainda Kezayzeh, no fim da estrada, um bairro com um parque infantil sem brinquedos, só terra e umas escadas que terminam no ar.

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Sai-se de Bassorá para norte, pela estrada que cruzará Nasiriyah e Amara antes de chegar a Bagdad. Atravessa-se os subúrbios extensos da segunda maior cidade do país, pobreza a perder de vista, e depois ainda Kezayzeh, no fim da estrada, um bairro com um parque infantil sem brinquedos, só terra e umas escadas que terminam no ar.

Deixa-se a estrada para Bagdad e é logo depois que o cenário muda e passa a fazer-se de palha, de terra seca deste Verão ou já do ano passado e o chão a abrir-se como a querer sugar o ar. A seguir há pedaços de água e a terra a ficar castanha e a palha que de repente é erva muito, muito verde. Canais naturais, com pequenos barcos de madeira, os mashhof, que os cruzam conduzidos por um homem com o seu remo que é um tronco. Os mashhof encontram o caminho por entre a erva alta e espessa. Palmeiras e depois já não. Quando há água, ouvem-se sapos e vêem-se búfalos e miúdos a pescar e a entrelaçar palha e outros só a tomar banho. Também há peixe, mas é pouco e é pequeno.

Estamos em Qorna, início de pântanos que há 20 anos eram sem fim. Uma das zonas húmidas com um dos ecossistemas mais ricos do planeta. Peixes, plantas, aves, insectos. Pessoas como não há iguais. Os árabes dos pântanos.

Na madhif de Umm Ali

O marido de Umm Ali está fora, mas ela faz as honras da casa e recebe-nos na sua madhif, "o local de hospitalidade", uma divisão de tecto abaulado construída com a mesma palha entrelaçada com que se ergueu a outra divisão que serve de quarto e se fizeram todas as casas dos pântanos. Abu Mohammed é o vizinho do lado e aparece depressa, para não deixar Umm Ali sozinha com as crianças e os estranhos que acabam de chegar. Umm Ali tem sete filhas - duas já casadas - e dois filhos. Cabem todos na ampla madhif, mais caberão e mais ainda caberiam.

Chega também Ali, genro de Umm Ali, e ainda vai chegar o marido, Abu Ali. Só não vamos conhecer o Ali que deu nome à mãe e ao pai (Umm quer dizer mãe, Abu quer dizer pai): tem 17 anos e trabalha na cidade, para engrossar o rendimento da família. "Os búfalos vão sozinhos para os pântanos, o Ali não faz falta", explica a mãe. "Há quem pesque com rede, mas nesta altura do ano, por causa da seca, nem vale a pena pescar", diz Abu Mohammed, o vizinho. Cada família tem uns dez búfalos e vive deles, do leite e das natas que se fazem com o leite e que os iraquianos comem à colher ao pequeno-almoço.

Com o genro vêm mais três meninas, todas filhas dele, duas do primeiro casamento. A do meio chama-se Ruqaia e tem quatro anos, é ruiva do sol e tem um vestido com corações verdes e um rasgão acima do umbigo. Mexe-se muito, sempre a saltar do colo da avó emprestada para o colo da madrasta e para o colo do pai e depois das tias, pouco mais velhas do que ela. Anda sempre em bicos de pé. A mãe morreu num atentado em Bagdad, a 29 de Novembro de 2006, e tinha-a ao colo. A menina ficou com uma perna mais curta e tem duas feridas abaixo do joelho, como duas dentadas que já sararam.

As crianças dos pântanos têm espaço para brincar. Ruqaia; Hamad, o irmão mais novo de Ali, muito reguila, despenteado; Aura, oito anos, brincos e uma chave ao pescoço, camisa de noite da Mini; Noura, de vestido cor de laranja; mais as três filhas do vizinho e Mohammed, o irmão destas, com sete anos. Entretêm-se a arrastar ramos na terra. Também há uma televisão na madhif. Está apagada, mas a electricidade (que os homens puxaram das linhas da rede nacional), demasiado fraca para ligar um frigorífico, chega para a acender de vez em quando.

"Todas as nossas casas"

Umm Ali e Abu Ali deixaram os pântanos em 1992, quatro anos depois do fim da guerra entre o Iraque e o Irão, um ano depois da revolta xiita que Saddam esmagou. Abu Mohammed também. "Em 1988, Saddam secou toda a zona. Em 1992, ordenou aos habitantes que deixassem as suas casas e fossem para a rua principal de Amara. A seguir vieram os helicópteros, 30, 35 por dia, e queimaram todas as nossas casas", conta Abu Mohammed.

"Ele chamou-nos traidores, mas nós nem lutámos contra o Irão nem contra Saddam. Naquela altura, quem podia dizer alguma coisa de Saddam? Como era muito difícil sair do serviço militar e quem desertasse era enforcado, alguns homens escondiam-se nos pântanos e o regime depois vinha à procura deles. Por causa dessas pessoas, o Saddam combateu-nos, como se fôssemos todos iguais. Secou a nossa água e deslocou-nos", conta Umm Ali.

Abu Ali saíra de manhã cedo para ir ao médico, a Nasiriyah. Tem pedras nos rins e vai ter de ser operado. Regressa e encontra a casa cheia. Tem olhos azuis pequeninos, muito brilhantes. Diz que nasceu em 1949 e isso faz o vizinho rir e garantir que ele se está a fazer dez anos mais velho.

"Éramos tão felizes antes dos problemas com o Saddam, antes de ele ter drenado a nossa água. Durante a migração foi o pior, porque éramos estranhos", diz Abu Ali. Ele a mulher levaram os búfalos para perto do rio, em Balad, junto a Samarra, na província de Salahedin, a norte de Bagdad. Construíam casas para fazer dinheiro. Voltaram em 2003 aos pântanos, mas não puderem regressar às suas terras, que estão secas.

"O nosso mundo"

Abu Mohammed ficou por uns tempos em Amara, depois mudou-se para Falluja, na província de Anbar, a ocidente da capital, e a seguir instalou-se em Dujail, a pequena aldeia a 40 quilómetros de Bagdad onde em 1982 Saddam mandou matar 143 pessoas sem sonhar que seria enforcado por isso. Abu Mohammed voltou em 2006 e vive de novo nas terras que o viram nascer.

"Algumas pessoas de Balad eram boas. Mas os que pertenciam ao Partido Baas chamavam-nos traidores e éramos maltratados. Nunca sabíamos se íamos ser levados, se íamos ser presos", recorda Abu Ali. "Agora, mesmo não estando de regresso à nossa casa, estamos no nosso mundo."

Com excepção de Ali, o filho, e das idas ao médico do pai, as saídas dos pântanos são poucas. "Às vezes, alguns de nós vamos ter com familiares que vivem noutras zonas, juntamo-nos em aniversários ou para qualquer coisa assim. Mas é aqui que quero viver", diz Umm Ali, que não sabe quantos anos tem e ri muito, quando se lhe pergunta a idade.

Agora, ninguém vai à escola. "Há uma escola, mas é muito longe", diz Umm Ali, que há um ano até deixou uma das filhas ficar com um dos seus irmão para ir à escola com a prima. "A miúda teve muitas saudades." Gostava que eles estudassem? "Gostava muito!" Mohammed, filho do vizinho, quer ir à escola, mas o pai ainda não encontrou solução para isso: "O miúdo gostava de ir e pede livros. Mas nasceu em Dujail e não tem nenhuma identificação. Não aceitam registá-lo aqui. Quando voltámos, tentámos registá-lo, mas mandaram-no ir para Dujail."

Barcos com 6000 anos

É com o dinheiro do leite que vendem que as duas famílias compram o que precisam para além do leite, ali perto, na estrada.

"Nós conseguimos viver do leite. Algumas pessoas conseguem viver da pesca, mas muitos pescadores tiveram de sair, poucos puderam ficar. Algumas pessoas dependem da palha", explica Umm Ali. Com a palha se fazem os tapetes entrelaçados, que nos pântanos são paredes e tecto e servem para construir onde mais se quiser erguer uma madhif. "No fim, não tivemos nada, nem do Irão, nem de Saddam."

Do novo Governo estes árabes têm tentativas para salvar os pântanos do Iraque, secos do sol e da falta de água nos rios que vêm da Síria, da Turquia e do Irão. Há cinco pequenas barragens em construção por ali. Quando estiverem acabadas, vão manter a água nos pântanos, impedi-la de fugir do lugar que os iraquianos e alguns estudiosos da Bíblia acreditam ter sido o jardim do Paraíso.

A Mesopotâmia é rica em mito e em história. A história diz que os madan, como Abu Ali, Abu Mohammed e Umm Ali, são descendentes dos sumérios, a civilização que floresceu no que é hoje o Sul do Iraque a partir de 4000 a.C. Que ali se inventou a escrita cuneiforme e se ergueu a cidade-Estado de Ur, enquanto se pescava em mashhof e se recebia em madhif. Como ainda hoje faz Umm Ali.