O fim do mundo mora ao lado de André Cepeda
Fotografia nº 12
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Fotografia nº 12
Num prédio antigo, bem no centro da cidade do Porto, mas que Andre Cepeda não teria encontrado sozinho, há um sítio onde se costumam juntar toxicodependentes a fumar heroína. De manhã muito cedo, a uma hora em que ainda não há ninguém - apenas vestígios: um casaco de ganga abandonado numa cadeira, um jornal sobre a mesa, uma manta -, o fotógrafo, ajudado por Henrique, um arrumador de carros, regista a sala vazia.
De manhã muito cedo é quando há silêncio para fotografar, e era preciso que nas fotografias se ouvisse o silêncio. E de manhã muito cedo, nesse sossego, o medo é quase palpável. A qualquer momento, alguém pode chegar. André Cepeda demora muito tempo até conseguir a imagem que procura: um interior com cadeiras de onde se evaporaram os ocupantes, onde a luz nasce tarde e a única decoração é um quadro de um castelo da Baviera fugido dos sonhos das pessoas que costumam vir aqui. O coração do fotógrafo bate depressa enquanto fotografa. Mesmo de manhã muito cedo, tem medo, e ainda bem.
Rua Cândido dos Reis
André Cepeda não tem um ar destemido. Cara redonda, argola numa orelha, parece mais novo do que os seus 33 anos, e mais pequeno no espaço do seu estúdio - tectos altos, janelas até ao tecto com duas longas cortinas vernelhas a controlarem o sol que cai no soalho comprido de madeira. O estúdio, onde trabalha nos seus projectos mas também em imagens de outros fotógrafos para rentabilizar o equipamento, fica no centro do Porto, redondezas da Torre dos Clérigos, numa rua paralela à da Galeria de Paris, há poucos anos quase deserta, hoje com enchentes todos os fins-de-semana à noite.
Cuidadoso, metódico, André Cepeda espera pelas imagens que saem das impressoras, coloca as impressões de grande formato sobre as mesas no centro da sala e cobre-as com papel vegetal. Com as máquinas a trabalhar por cima da sua voz tranquila, vai falando sobre "Ontem", o seu livro mais recente, publicado por um editor belga, Le Caillou Bleu Éditions, com o apoio da fundação portuguesa Ilídio Pinho. É o seu projecto mais ambicioso até agora, levou quatro anos a completá-lo. Dele já tinha apresentado algumas imagens no Prémio BES PHOTO 2010 e, antes ainda, numa exposição na galeria ZDB.
Quando há três meses lançou o livro na Bélgica, na televisão para todos, o apresentador resumiu-o como um trabalho sobre "junkies". Numa das melhores livrarias de fotografia de Londres, recusaram o livro porque que era "demasiado duro".
André Cepeda desliga as impressoras, e durante uns instantes o único som é o folhear de "Ontem": um bairro cigano que entretanto já foi demolido; um vaso onde o verde cresce entre muros a lembrar-nos que, mesmo que o tempo pareça ter parado, a vida não pára; uma mulher, uma "junkie" diria o apresentador belga, nua, entregando-se à câmara de um desconhecido; as traseiras de prédios, as nucas da cidade que nunca vemos, com roupa estendida, uma parabólica e um santo de outros tempos na parede; uma mulata vestida com um casaco a imitar pele a olhar interrogativamente para a câmara, quase acusadora; um interior com cadeiras rotas, paredes descascadas, o chão coberto de sujidade, onde André Cepeda pára para contar que é uma "sala de convívio de heroína", onde o levou o Henrique, como também o levou às ilhas que ainda existem no Porto isolando gente entre prédios, e a caminhos alternativos pela cidade, a pensões e a bairros supostamente "sociais" tão isolados quanto ilhas.
Os sítios de "Ontem", lugares onde teve medo, e ainda bem.
"Ontem" não é um livro documental. É um misto de documentário e ficção, e a narrativa que surge é também a história de um fotógrafo que se quis magoar com as suas imagens, nunca mais ser o mesmo depois. E fazer-nos isso a nós também.
Fotografia nº 1
"Ontem" nasceu de uma vontade de conhecer a cidade desconhecida que convive todos os dias com o Porto. Havia sítios a que precisava de regressar, para registar a sua transformação, recordar-se como era, pensar como seria.
Com as casas demolidas é que se vê como o Bairro de São João de Deus, mais conhecido por "Tarrafal" - e só a palavra provoca calafrios - dá para a cidade.
O "Tarrafal" é agora um descampado com vista para o Porto. Foi um campo de heroína, a prova, se alguém precisasse de prova, de que a toxicodependência foi uma catástrofe, uma calamidade que nunca teve plano de emergência. É a memória do Portugal dos anos 80 e 90, uma realidade persistente.
Em 1997, André Cepeda foi ajudar um fotógrafo americano, como assistente e tradutor-intérprete, a fotografar o Tarrafal. Quando chegava a droga ao bairro, saíam dezenas e dezenas de pessoas não se sabia bem de onde. Chutavam-se na rua, tinham muitas caras, muitos nomes, muitas idades. O bairro de São João de Deus era um lugar tão degradado e degradante que, quando chegava a casa depois do trabalho, chorava.
Dez anos depois, faz uma fotografia sem pessoas e sem explicações porque a palavra Tarrafal, lá está, provoca calafrios, é tão forte que diz tudo. Esta imagem é a primeira do livro, porque sem essa experiência não teria talvez começado sequer a querer olhar diariamente para aquilo a que quase todos nós diariamente fechamos os olhos.
Rua dos Caldeireiros - São Bento
André Cepeda fecha a porta do estúdio. Deixamos para trás os cafés de bom gosto, as lojas de design, a juventude que conhece Londres, Paris, Berlim, e veste vintage da moda, o século XXI.
Atravessando a rua, a Torre dos Clérigos como uma fronteira, a decoração muda: bandeiras do FCP, a única alegria aqui e no último ano nem isso.
Os homens encostam-se nas portas, como se tivessem receio de cair. Ocupam as mãos vazias nos cigarros ou nas beatas, olham quem passa, estranhos como nós, descendo a Rua dos Caldeireiros tão esquisitos, com um propósito.
São cinco e meia da tarde e está calor de meio-dia, o céu sem uma nuvem como nunca acontece nas fotografias de Cepeda. No Inverno, lembra André Cepeda, o céu fica branco de encoberto, a atmosfera pesada, as ruas mais tristes, os homens ainda mais encostados às paredes, parados nas bermas como carros para sucata.
"No Porto", diz, e o mais eficiente é dizer o mais simples, "há muita pobreza".
Passamos pelo Largo dos Lóios e paramos em São Bento, junto de um prédio inteiramente forrado de bandeiras de Portugal, visto que o patriotismo é barato. André Cepeda aponta para a entrada lateral da estação de São Bento. As escadas estão cheias de homens e mulheres de cervejas na mão bebendo o tempo que lhes resta. Uma delas é uma mulher de magreza seca como um homem, um boné escurecendo-lhe mais a cara. "Eu já a fotografei", comenta André Cepeda. "Ela já não me reconhece."
Um dia têm onde dormir, no outro dia não. Um dia recebem um cheque da segurança social e compram um telemóvel, no outro dia vendem-no para comprar droga. Um dia sentam-se a conversar, até parece que vivem neste mundo e têm noção do tempo a passar, no outro dia já se esqueceram onde estiveram, perderam o relógio.
Quando encontrava alguém que queria fotografar, mesmo que marcasse para o dia seguinte, não podia ter certeza de que a pessoa fosse aparecer. "Não sabem o que vão fazer daí a uma hora, vivem um minuto de cada vez", explica.
Uma vez que apareciam, era fácil fotografá-las. "Não têm problemas, não têm pudor".
A maior parte das pessoas que pediu para fotografar aceitou rapidamente. Porque não tinham nada para fazer, porque queriam dinheiro, porque estavam disponiveís para que alguém fosse ter com elas. Levaram-no para quartos, abriram-lhe as portas de casa os que tinham casa, despiram-se, e os casais tocaram-se, sem problemas, sem pudor, para mostrar que, lá por serem "junkies", como diria o apresentador belga, não deixaram de sentir, não deixaram de ser corpos que também amam.
E depois de tudo isso, a maior parte destas pessoas, tão intímas para a sua câmara, não o reconhece se passar por ele.
A mulher levanta-se dos degraus da entrada lateral da estação de comboios de São Bento, esbraceja, discute com um homem. Numa das pernas, os jeans têm umas letras que soletram a palavra DEVIL. A outra perna não dá para ler, provavelmente ANGEL. Duas faces da mesma moeda, é sempre assim.
Fotografia nº 3
A mulher tem cara de medo, cara de quem já viu a morte.
André Cepeda viu-a várias vezes até que falou com ela, combinaram encontrar-se. Ela seria modelo, e faria de si própria.
André Cepeda levou a câmara de grande formato, que o obriga a pensar muito na imagem que quer e a fotografar muito pouco: duas, três imagens, não mais. Com aquela mulher esteve uma hora, talvez duas. Mas o tempo passa muito devagar fechado num quarto a olhar para o corpo de uma mulher que não conhece.
A mulher despe-se, deixando o fio ao pescoço, deita-se na cama de perfil para a câmara, os braços estendidos ao longo do tronco tenso, as costelas salientes, os mamilos quase sem seios, a barriga enrugada, as marcas vermelhas das cuecas apertadas, os pêlos púbicos ralos. A mulher há muito deixou de se importar com a sua aparência, como se já não habitasse o seu corpo. Olha para um ponto no tecto, com cara de quem já viu a morte mas sobreviveu, e para a câmara, faz um esforço para estar presente.
Rua Chã - Batalha - Alameda das Fontainhas
A primeira casa onde André Cepeda viveu no Porto era por cima de uma casa de fados. Na Rua Chã, passeava o cão, e as prostitutas achavam-lhe graça, metiam-se com ele.
Foram precisos dez anos para voltar e fotografar. Nas mesmas pensões, explica, vivem prostitutas e "dealers". Assim que recebem o dinheiro podem ir logo comprar droga.
Mesmo ao lado há uma loja de cabedais, depois uma loja de aparelhos eléctricos onde só negoceiam indianos, a seguir a Loja Crocodilo com o mesmo crocodilo embalsamado pendurado do tecto, e uma discoteca com uma bola de espelhos dos anos 70 de onde sai aos berros um cha-cha-cha em Português. Desde quando em Portugal nos sentimos "no país do cha-cha-cha"?
Cheira a charro e vem de um homem de bigode comprido e cabelo grisalho, idade para ser avô.
André Cepeda anda na rua e ainda se choca e comove como há mais de dez anos, quando aqui chegou e o Porto era o oposto de Bruxelas, onde tinha estudado fotografia, e pouco tinha a ver com Coimbra, onde tinha nascido.
As pessoas, sobretudo, eram diferentes: "Mais directas, mais duras, mais fechadas".
"O Porto nunca foi invadido: nem pelos árabes nem pelos franceses", lembra. Os edifícios têm séculos, as roupas das pessoas têm décadas, e os rostos, milénios.
Antes de começar a fotografar intensamente o que o rodeia, o que faz parte do seu "circuito" quotidiano da cidade, ou que está mesmo à beira desse circuito mas praticamente invisível, André Cepeda viajava para fotografar. Fotografou Bruxelas em "Anacronia" e os Estados Unidos em "River". A sua primeira viagem tinha sido a Moscovo, muito jovem, uma espécie de prova iniciática.
Em nenhum lugar viu estas "caras de fim de mundo", diz, enquanto saímos para a luz da Praça da Batalha, felizmente ainda lúcidos. No centro da praça, a estátua de D. Pedro V agradece, numa inscrição, aos artistas portugueses.
Caminhamos na direcção do rio até à Alameda das Fontainhas, de onde se tem vista de luxo. O sol já começou a descer. Os namorados adolescentes beijam-se nos bancos públicos. Um grupo de mulheres conversa e vigia um grupo de crianças. As gaivotas sobrevoam-nos e hesitam em aproximar-se. Viramos as costas ao rio, direcção Rua de São Vítor, mais ilhas por metro quadrado, freguesia do Bonfim.
Fotografia nº 54, a fechar
Poderia ter sido a primeira fotografia do livro se isto fosse só um livro sobre as ilhas do Porto, mas acabou por ser a última, como se pudéssemos começar tudo outra vez.
Porta sim, porta não, na Rua de São Vítor há um portão para uma ilha.
Com o portão aberto, tem-se um panorama de roupa estendida, pequenas casas à direita e à esquerda, o corredor-rua no centro, vazio.
No nosso imaginário, uma ilha é redonda, ou pelo menos tem uma forma que permite uma certa circulação, andar à volta, olhar a 360 graus, voltar ao lugar de onde se partiu.
As ilhas do Porto foram construídas nos espaços que sobram dos prédios, ou no espaço que os proprietários reservavam para alugar ao proletariado, quando ainda havia proletariado e fábricas sempre a funcionar.
No Porto, uma ilha tem o formato de um túnel. André Cepeda fotografa do portão. Ao fundo a vista de luxo mas o céu cinzento de muita chuva por cair, muita humidade que entrará pelos ossos.
E seria a última fotografia do livro, uma fotografia bonita com ar de família e o sentido de comunidade sempre forte nestes bairros, uma fotografia que convida a entrar, mas sabendo que entrando num túnel pode não se voltar a sair.
Travessa de São Vítor - Rua de São Vítor
Ainda nem chegámos lá em cima à Rua de São Vítor, e já encontramos ilhas, ilhas abertas, das que não têm portão para fechar à noite, apenas uma entrada para um beco onde ficam várias casas. Entramos num desses becos, caiados de branco, o sol de Julho a explodir na parede. Não é de manhã, como quando André Cepeda costumava fotografar, mas mesmo de tarde não se ouve quase nada, só as gaivotas, como se de facto ao entrar na ilha estivéssemos a abandonar a cidade. Andamos até ao fim do túnel branco e não vemos ninguém. Numa porta, alguém deixou colado um bilhete onde se lê: "Não mora aqui ninguém".
Fotografia nº 21
Foi para os lados da Avenida Fernão de Magalhães, num armazém onde não conseguiria ir dar de novo, se é que ainda existe. Descobriu um graffiti e uma palavra que, quando a fotografou, soube que melhor do que nenhuma outra palavra dizia o que todas as imagens que andava a fazer queriam dizer. O graffiti diz "Ontem" e afinal era isso que ele andava a fotografar: sítios e pessoas de que o presente se esqueceu, quanto mais o futuro.
Rua de São Vítor - Jardim de São Lázaro
São João Sempre, está escrito a vermelho numa parede da Rua de São Vítor, e, aqui e acolá, ainda se vêem balões. O São João é mais uma daquelas alegrias, uma vez por ano; ao contrário do FCP, nunca falha. As ilhas ainda têm à porta as classificações do concurso de decoração para as festas de São João.
Uma menina entorna uma garrafa de vinho verde, o avô apanha os vidros, o pai leva-a a passear ao colo para não chorar do susto. São três gerações nascidas nas ilhas da rua de São Vítor, o avô orgulhoso mas cheio de receio e preocupações pelos novos habitantes das ilhas, desconhecidos de bairros ainda piores, de pouca confiança, trazendo droga e criminalidade. "Isto já não é o que era, menina", diz, e a conversa rapidamente vai parar ao 25 de Abril, que esteve bem, sim senhora, mas era preciso estar muito melhor, afinal isto é a Europa ou não é a Europa?
A rua de São Vítor desemboca na Praça da Alegria vazia, e, chegando ao Jardim de São Lázaro, a vida retoma o seu curso. Os carros passam para cruzar a Baixa, e as pessoas apressam-se como quem sabe o que fazer, para onde ir, o tempo passa.
Fotografia nº 16, a capa
Uma armazém ou lá o que é, azul por fora, profundamente monocromatico, e não sabemos como é por dentro. Não tem janelas, não sabemos se alguém vive ali e se respira. Uma ilha é uma ilha é uma ilha e um edifício pode ser uma ilha assim como um homem pode ser uma ilha. Depois, uma ilha pode ou não, depende de tanta coisa, mas sobretudo de nós, ser o paraíso.