A grande evasão
Quinze anos depois do início da série, onze depois da primeira sequela e após uma bem sucedida operação de "marketing" que consistiu em relançar em sala os dois primeiros filmes, refeitos no formato da moda, o 3D (que pouco lhes acrescenta, diga-se), eis "Toy Story 3", este sim concebido de raiz para o relevo aparatoso, mas inútil, das três dimensões, em que as cores vibrantes do original se perdem um pouco num desbotado efeito de embaciamento.
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Quinze anos depois do início da série, onze depois da primeira sequela e após uma bem sucedida operação de "marketing" que consistiu em relançar em sala os dois primeiros filmes, refeitos no formato da moda, o 3D (que pouco lhes acrescenta, diga-se), eis "Toy Story 3", este sim concebido de raiz para o relevo aparatoso, mas inútil, das três dimensões, em que as cores vibrantes do original se perdem um pouco num desbotado efeito de embaciamento.
Porém, a Pixar não brinca em serviço e atinge, porventura, com esta revisita ao mundo encantado de Andy e dos seus brinquedos favoritos (alguns perderam-se pelo caminho, permanecendo apenas o núcleo duro), que se animam e ganham vida na ausência do dono (velha receita infalível pelo menos desde os tempos de Hans Christian Andersen, passando pelo mais que centenário bailado "natalício" do "Quebra-Nozes"), o melhor e o mais elaborado de todos os seus produtos. Ao seu lado, as aventuras do ogre Shrek e a maior parte das animações contemporâneas fazem figura de meros exercícios de técnica virtuosística e de acanhados artefactos para estrito consumo infantil, o que não passa por desmerecer da sua execução (e função), mas por enaltecer o excepcional trabalho de argumento e de memória fílmica plasmada, na perfeição, em peripécias sabiamente encadeadas, em "Toy Story".
O ponto de partida é simples e eficaz: Andy cresceu (acontece até na animação, imagine-se), vai entrar na Faculdade e deixa para trás os brinquedos da infância, escolhendo apenas levar consigo, como mascote, o "cow-boy" Woody. Por um equívoco engenhosamente imbricado na acção o saco que se destinava ao sótão das recordações (na boa linha do imaginário americano, todas as casas têm esse local de reserva sentimental) acaba como doação num infantário para crianças de diferentes idades, convenientemente divididas em escalões etários: os mais velhos tratam os brinquedos com carinho; os mais miúdos espatifam-nos e usam-nos de forma selvática.
E é aqui que tudo começa a ganhar uma dimensão fantasmagórica: recebidos por um urso coxo e maléfico, vítima de uma rejeição e substituição traumática por parte da sua dona, comandando um exército de bonecos, aparentemente simpáticos, os brinquedos de Andy vêm-se sujeitos a violenta tortura "psicológica" e são encerrados em caixas com grades, como se se tratasse de um campo de concentração, a que não falta um sinistro vigia. Este lado negro desloca a acção de simples divertimento para uma sádica exploração dos terrores infantis, não sem que tenhamos direito a dois prodigiosos "alívios cómicos": a anoréxica Barbie encontra o seu Ken, mais "gay" do que nunca, com a respectiva casa de bonecas a capricho, sucedendo-se os episódios irrisórios, com o absoluto auge na tortura deste pela ameaça da destruição sistemática do seu grotesco guarda-roupa (veste e despe fatos sem conta para se exibir à sua "amada"), nomeadamente o exótico casaco Nehru, quase em tons de paródia da comédia musical; a fim de neutralizar as suas capacidades heróicas, os bonecos carcereiros reprogramam Buzz Lightyear (o herói espacial, que deixa de reconhecer os amigos) e, a certa altura, opera-se uma alteração inesperada para o modo vocal em espanhol mexicano, tornando-o numa hilariante caricatura de um galã de "western" de fronteira, a rimar, aliás, com a artificiosa curta inicial, espécie de sonho premonitório dos horrores por vir.
Tecnicamente e do ponto de vista imagético, o auge deste arremedo de escape da prisão, porventura moldado em fitas de guerra, como "A Grande Evasão" (John Sturges, 1963), atinge-se durante a cena da incineração do lixo, a que os nossos heróis escapam miraculosamente, a recordar também as aventuras mais sofisticadas (e pós-modernas) de Indiana Jones. Por tudo isto fica claro que "Toy Story 3" possui vários níveis de leitura, não se esgotando no seu imediato público-alvo, antes piscando o olho a uma cinefilia inteligente e bem arquitectada.Aliás, a dúvida persistente que fica, depois do imenso prazer reservado aos adultos, é a da sua adequação ao imaginário infantil, apesar da chantagem emocional operada pelo lacrimejante final feliz, com o beneplácito de Andy: os brinquedos ficam todos juntos e encontram uma nova (amorosa) criança para brincarem. No entanto, quando pensamos nos horrores infligidos, durante séculos, à pequenada, desde os irmãos Grimm até aos sinistros desenhos animados da Disney dos tempos áureos (ai, aquela ameaçadora floresta de árvores com olhos, na "Branca de Neve e os Sete Anões", dos nossos pesadelos de criança!), muitas dessas interrogações têm tendência a dissipar-se: o medo faz parte do crescimento necessário a todo o ser humano. E, depois, será que existe mesmo ficção infantil?