O sonho comanda a vida
À primeira vista, parece estarmos no terreno desse género clássico de Hollywood que é o "heist movie", onde um mestre do crime reune uma equipa de luxo para levar a cabo um golpe elaborado e complexo. Mas este não é o território que Steven Soderbergh explorou na trilogia "Ocean's Eleven", para citar um exemplo recente de sucesso.
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À primeira vista, parece estarmos no terreno desse género clássico de Hollywood que é o "heist movie", onde um mestre do crime reune uma equipa de luxo para levar a cabo um golpe elaborado e complexo. Mas este não é o território que Steven Soderbergh explorou na trilogia "Ocean's Eleven", para citar um exemplo recente de sucesso.
Ou antes: Christopher Nolan pegou nesse território, com um passe de magia fê-lo desaparecer das suas coordenadas habituais, e transportou-o inteiro, literalmente, para uma outra dimensão. Porque o alvo do golpe da equipa de luxo liderada por Leonardo di Caprio em "A Origem" não é um cofre físico, não é dinheiro, não são documentos ou protótipos. É algo de muito mais intangível: o mais fundo dos fundos da mente de um magnata da energia.
"A Origem" é um "heist movie" interior, viagem fantástica aos corredores neurais da mente humana, em busca de um "macguffin" hitchcockiano que, na realidade, talvez nunca tenha existido. Afinal, este não é um filme qualquer: é o novo de Christopher Nolan, talvez o mais singular realizador a trabalhar neste momento dentro do sistema americano, capaz de impor a sua visão descentrada aos grandes estúdios e de arriscar milhões num policial onírico e surreal de grande orçamento e elenco "all-stars" que parte do princípio de que os espectadores são gente inteligente capaz de pensar por si. (O que, face ao que os estúdios de Hollywood actualmente produzem, quase parece uma ideia radical.)
E o que é mais espantoso ainda é o modo como Nolan o faz: sem se desviar um milímetro que seja das suas próprias marcas registadas e obsessões, construindo um filme muito visivelmente "de autor", mas sem que isso implique deixar os espectadores de fora. Antes pelo contrário: "A Origem" resulta simultaneamente enquanto filme de grande espectáculo com os requisitos de suspense e acção necessários para deixar um espectador preso ao filme, e enquanto odisseia intimista pela mente torturada de um herói em busca de redenção. O Dom Cobb de Leonardo di Caprio (que, depois do "Shutter Island" de Scorsese, parece ter tirado senha para este tipo de jogos mentais), mestre mercenário na arte de entrar através dos sonhos nos cantos mais recônditos das mentes dos outros e de lhes roubar os segredos que nem sequer sabem que têm, é parente próximo do Batman de Christian Bale em "Batman: O Início" (2005) e "O Cavaleiro das Trevas" (2008). Ou dos ilusionistas de Bale e Hugh Jackman em "O Terceiro Passo" (2006), ou do detective de Al Pacino em "Insónia" (2002), ou do Leonard Shelby de "Memento" (2000). É um homem perseguido pela culpa, em busca da redenção que o apazigue, ao ponto de pôr em causa tudo em que acredita para a conseguir - um homem à beira do abismo, lutando consigo próprio para ficar do lado certo da realidade.
Mas qual é esse lado certo? É aí que Nolan ganha "A Origem", ao mergulhar o espectador numa toca de coelho que vai muito para lá do que alguma vez Lewis Carroll imaginou. O golpe mental de Di Caprio é - lá está - o tal "macguffin" que despoleta uma verdadeira queda livre por níveis progressivamente mais densos de sonhos onde a realidade pode ser manipulada, retrabalhada, reconstruída ao bel prazer de quem sonha. E a tecnologia que o permite - introduzida não como uma invenção de ficção científica, mas como uma evolução natural da tecnologia contemporânea - é trabalhada ao mesmo tempo como uma necessidade, um escape e um risco. O centro emocional do filme, com uma peculiar ressonância de "film noir", tem precisamente a ver com os limites porosos entre sonho e realidade e com o modo como criam um circuito fechado. À medida que o engenho do guião de Nolan, que cita meio século de cinema hollywoodiano em constante mutação, se vai expandindo e arquitectando com cada volta, damos por nós sedutora mas desorientadamente perdidos num universo onde a gravidade tradicional deixou de fazer sentido.
É por esses momentos de imponderabilidade que Nolan consegue repetidamente criar ao longo de "A Origem" que lhe perdoamos a frieza cerebral de uma encenação onde tudo está no sítio, até porque sabemos que essa frieza é o único modo possível para encaixar na perfeição todas as peças do labirinto que ele criou ao longo destas duas horas e meia. Podemos, isso sim, lamentar que não haja um pouco mais de entusiasmo ou de vertigem - mas uma ideia é uma coisa terrível. Uma vez implantada, cada um de nós corre com ela em direcções diferentes. "A Origem" é uma ideia que Nolan implanta nas nossas mentes e que não se esgota na simples visão do filme. De quantos "blockbusters" podemos dizer o mesmo?
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