Intriga Internacional

Roman Polanski voltou às primeiras páginas dos jornais pelas piores razões e o seu nome apareceu conotado com ultrapassados escândalos sexuais, quase fazendo tábua rasa sobre uma obra absolutamente coerente e importante sob várias perspectivas: um olhar singular sobre o património fílmico e literário - desde a paródia vampiresca de "Por Favor Não me Mordam o Pescoço" (1967) ou o revisionismo algo deslocado de "Piratas" (1986), até às curiosas e mais ou menos heterodoxas adaptações de "Macbeth" (1971), "Tess" (1979) ou ao falhado "Oliver Twist" (2005).

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Roman Polanski voltou às primeiras páginas dos jornais pelas piores razões e o seu nome apareceu conotado com ultrapassados escândalos sexuais, quase fazendo tábua rasa sobre uma obra absolutamente coerente e importante sob várias perspectivas: um olhar singular sobre o património fílmico e literário - desde a paródia vampiresca de "Por Favor Não me Mordam o Pescoço" (1967) ou o revisionismo algo deslocado de "Piratas" (1986), até às curiosas e mais ou menos heterodoxas adaptações de "Macbeth" (1971), "Tess" (1979) ou ao falhado "Oliver Twist" (2005).


No entanto, o que nos interessa, aqui e agora, passa pela sua relação persistente com o "thriller", com os vestígios revisitados do "film noir", com o terror psicológico progressivamente interiorizado: das fantasias terríficas de "Repulsa" (1965), dos diabolismos complexos de "A Semente do Diabo" (1968) ou das paranóias visionárias de "O Inquilino" (1976), até ao "neo-noir" de "Chinatown" (1974) ou ao virtuoso grafismo "hitchcockiano" de "Frenético" (1988), decorre todo um percurso de exploração sistemática dos mecanismos do mistério em imagens, filmando sempre muito bem, com enorme rigor e um sentido perfeito do plano e da relevância da montagem.

"Escritor-Fantasma" encaixa nesta pessoal preocupação com os detalhes, com o encadeamento maníaco dos indícios, sem nunca descurar aquilo que constitui uma das suas imagens de marca, desde os tempos precursores do seu mais conhecido filme polaco, "Uma Faca na Água" (1962), um estudo angustiante dos diversos estádios da claustrofobia: um escritor com pouco talento (um Ewan Mc Gregor em grande forma) vê-se contratado para dar consistência literária e narrativa às memórias pessoais e políticas de um ex-primeiro ministro britânico (Pierce Brosnan, em registo quase caricatural, numa emulação evidente de Tony Blair, reforçada pela aparição de uma espécie de "duplo" de Condoleeza Rice), envolvido num escândalo de tortura (a invasão do Iraque e remissões subliminares para a história recente, em pano de fundo). Importante é o facto de substituir um seu predecessor (ausente da narrativa, mas omnipresente nos fatos pendurados no armário ou nas fotos que recolheu, como o fictício agente de "Intriga Internacional" de Hitchcock), que aparentemente se suicidara no mar, ao desaparecer de dentro de um carro encontrado vazio, logo nos primeiros planos do filme, a bordo de um "ferry" que fazia a travessia do continente americano para uma não identificada ilha, com contornos ficcionais de Martha''s Vineyard, embora filmada por razões logísticas algures ao largo da costa alemã.

E é neste contexto fantasmático que o filme nos agarra e nos emociona, criando uma tensão crescente, um delírio imagético que nunca cede à facilidade ou à demagogia: de pista em pista, de personagem em personagem, temos um retrato de corpo inteiro da paranóia (sempre a paranóia) que leva o protagonista a reconstituir o "lugar do crime", mais interessado nos fios da trama ficcional (que espantoso "contador de histórias" permanece Polanski) do que na rede infinita de armadilhas politicamente discerníveis. Fechado numa casa, dentro de uma ilha, dentro das suas próprias perplexidades, o escritor afronta todos os fantasmas com a curiosidade de uma criança que abre os brinquedos para descobrir o que contêm no interior. Esta letal inocência confere ao labirinto de referências uma vertigem inimaginável (veja-se a prodigiosa viagem à casa do agente da CIA, guiada pela voz, também ela fantasmática, de um GPS programado, transformado em instrumento de um destino inevitável), um crescendo dramático em que cada imagem faz tanto sentido, quando a cifrada leitura anagramática do texto das memórias. Mas, como no melhor Hitchcock, tudo funciona como um pretexto, como um McGuffin, tendente a fazer do percurso e do ritmo o melhor da demanda.

Claro que haverá quem aproveite a exterioridade do virtuosístico argumento (a meias entre Polanski e o autor do romance original, Robert Harris) para falar de autobiográfico ajuste de contas com os tentaculares poderes americanos de que foi "vítima", sublinhando as coincidências do exílio forçado e as manobras intimidatórias, mas o essencial passa por ideias de cinema puro: o gélido ambiente da casa modernista, a recordar imaginativamente (e sem cópias simplistas) a de James Mason, em "Intriga Internacional"; as cinzentas brumas da ilha; as mensagens escritas que passam de mão em mão; o encontro, também ele "hitchcockiano", com uma figura que parece não fazer parte integrante da história (inesquecível "cameo" do grande Eli Wallach); a perturbante presença do feminino mortalmente carnívoro, dando a Olívia Williams, a mulher do ministro, uma densidade inesperada. Tudo no seu lugar, como um "puzzle" gigantesco que se desenrola com a perfeição dos grandes divertimentos fílmicos do passado.

Que prazer se torna viver, durante duas horas, dentro de uma redoma cinematográfica, em que as coincidências com o contexto político exterior apenas acentuam o fingimento sistemático das formas fugidias e mutáveis!