Henrique Alves Costa: O cineclubista jovial e hiperactivo
Eram, por assim dizer, dois "rapazes" da mesma idade. Conheceram-se no início dos anos 30 e tornaram-se amigos e companheiros de tertúlias, de viagens, de aventuras. Um fazia filmes (e continua a fazê-los), quando as circunstâncias o permitiam. O outro via filmes, criticava-os, defendia-os e ajudava a divulgá-los, quando achava que eles o mereciam.
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Eram, por assim dizer, dois "rapazes" da mesma idade. Conheceram-se no início dos anos 30 e tornaram-se amigos e companheiros de tertúlias, de viagens, de aventuras. Um fazia filmes (e continua a fazê-los), quando as circunstâncias o permitiam. O outro via filmes, criticava-os, defendia-os e ajudava a divulgá-los, quando achava que eles o mereciam.
Manoel de Oliveira (n. 1908) e Henrique Alves Costa (1910-1988) são os dois amigos de que falamos. Dois portuenses autodidactas na sua paixão pelo cinema. O primeiro tinha na sétima arte, então a dar ainda os primeiros passos como tal, a sua vocação primeira, que conciliava com a gestão da indústria herdada do pai. O segundo herdara também do pai a profissão de despachante oficial de alfândega, que exerceria toda a vida, mas era para o cinema que corria todas as horas restantes. "Conheci Henrique Alves Costa depois de ter apresentado o Douro, Faina Fluvial em Lisboa, no Cinema Condes, onde figurou no V Congresso Internacional da Crítica, na noite de 21 de Setembro de 1931."
Com estas palavras, Manoel de Oliveira vai começar a recordar o seu amigo, hoje à noite, na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, na homenagem no centenário desta "figura histórica da cinefilia nacional", justifica a instituição. Para além do decano do cinema português e mundial, estarão presentes o realizador da geração do Cinema Novo José Fonseca e Costa e familiares e amigos do homenageado. O realizador de "Acto da Primavera" - o filme que será exibido na Cinemateca, e que era um dos preferidos de Alves Costa - acrescentará que a "boa amizade" entre ambos foi firmada num "forte interesse comum pelo cinema em geral e pelo cinema português em particular". E realçará o trabalho que o crítico e cineclubista dedicou à defesa do cinema português e, em particular, dos seus próprios filmes.
De facto, desde que viu "Douro, Faina Fluvial" - o filme que "de súbito colocava o incipiente cinema português à hora mais avançada do cinema mundial", escreveu mais tarde -, Alves Costa não mais deixou de acompanhar Oliveira. "Às vezes, sentávamo-nos à mesa para jantar e tínhamos de esperar uma hora que o meu pai acabasse de falar ao telefone com o Manoel", recorda Alexandre Alves Costa, afilhado do realizador. A primeira imagem que se guarda de Henrique Alves Costa - para além da figura jovial do velho senhor de bigode grisalho, óculos grossos e cigarro permanente na mão - é a do crítico de cinema e grande referência do Cineclube do Porto (CCP).
Não tendo integrado o núcleo fundador do Clube Português de Cinematografia, em 1945, a ele aderiu logo dois anos depois e foi sob a sua direcção que o CCP se tornou no maior do país, reunindo na década de 50 mais de 2500 sócios.
Semana histórica
Para além da exibição e debate dos filmes, o CCP organizou encontros de cineclubes e outras iniciativas, muitas delas em claro desafio à censura salazarista. Entre elas destaca-se a I Semana do Cinema Português, no Porto, em Dezembro de 1967, que reuniu um conjunto de jovens realizadores que aí mostraram os seus filmes, mas também apontaram pistas para o futuro de uma cinematografia que estava num beco sem saída, apesar das fitas inovadoras de Paulo Rocha ("Os Verdes Anos" e "Mudar de Vida"), Fernando Lopes ("Belarmino") e António de Macedo ("Domingo à Tarde"). "Do que foram esses dias no Porto, de onde nasceu o que viria a ser o Centro Português de Cinema e a possibilidade para a nossa geração de fazer filmes, em pleno marcelismo, lembro-me do clima de agitação e de euforia que tomou conta de todos e do papel catalisador que o Henrique Alves Costa teve na organização dessas jornadas", recorda o realizador António-Pedro Vasconcelos.
E revê essa figura com "um sorriso infantil, uma irreverência juvenil e um entusiasmo contagiante". Nessa semana histórica nasceu o movimento que haveria de convencer a Gulbenkian a apoiar a produção de cinema e criar a oportunidade a vários realizadores de fazerem a sua primeira longametragem, como aconteceu com o próprio António-Pedro Vasconcelos ("Perdido por Cem") e José Fonseca e Costa ("O Recado"), por exemplo.
Já depois do 25 de Abril de 1974, Henrique Alves Costa - que, "sendo de esquerda, sempre recusou a pertença a qualquer partido, porque não aceitava espartilhos", diz o filho Alexandre - não aceitou a influência que o Partido Comunista exerceu sobre o CCP, e também sobre o Instituto Português de Cinema (IPC), criado em 1973. Saiu do primeiro e apoiou a criação do alternativo Cineclube do Norte. "Decidi ir brincar com outros meninos", disse, então, a André Oliveira e Sousa, seu companheiro de aventuras cinéfilas, como agora recorda o expresidente da Federação Portuguesa de Cineclubes.
Vasconcelos recorda também a presença de Alves Costa no encontro que então teve, no Porto, com Oliveira, quando o autor de Aniki-Bobó subscreveu "um pacto secreto de resistência" contra a política jdanovista do PC e a sua influência no Instituto de Cinema.
O crítico de cinema Jorge Leitão Ramos só conheceu Alves Costa depois do 25 de Abril, nas I Conversações Cinematográficas Luso-Espanholas, no Porto, e no lançamento do Cinanima, em Espinho - de que ele foi uma espécie de "padrinho e mentor", nota o presidente do festival, António Gaio. "Ele era o homem que fazia coisas. E fazia-as com um grande dinamismo e facilidade de relacionamento humano", diz o crítico do Expresso, considerando essa sua faceta mesmo mais relevante do que a de crítico ou historiador de cinema. E destaca também a liberdade do seu discurso, como quando definiu António Lopes Ribeiro como "o homem que amou sinceramente o cinema e que mamou da teta dele alegremente".
Mas a história do cinema português não seria a mesma sem Henrique Alves Costa, que escreveu livros ("Breve História do Cinema Português", "A Longa Caminhada para a Invenção do Cinematógrafo" e "Raul de Caldevilla" são alguns títulos) e colaborou regularmente em revistas e jornais (Espectáculo, Invicta-Cine, Cinéfilo, mas também O Comércio do Porto e o Jornal de Notícias). Só não conseguiu ver concretizado um dos seus sonhos: a Cinemateca do Porto, de que foi o principal mentor desde que, no final dos anos 70, se ocupou da criação duma filmoteca no Museu Soares dos Reis.
É por isso que a homenagem do centenário tem hoje lugar na... Cinemateca em Lisboa. No Porto, na terça-feira, a Medeia Filmes dedica-lhe uma sessão no Estúdio Campo Alegre, exibindo "L'Atalante", de Jean Vigo, outro dos seus filmes favoritos.