Companhia de Pina Bausch não será como ela, eterna

Foto
Nelken Gonçalo Santos

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Foi em Wuppertal que morreu, aos 69 anos. E foi em Wuppertal que deixou um imenso legado - livros, fotografias, filmes, e sobretudo um reportório de mais de 40 coreografias originais criadas para o Tanztheater Wuppertal, a companhia que dirigia desde 1973.
 
Todas as noites Pina Bausch se sentava na plateia a tomar notas, para no dia seguinte voltar a repensar com os bailarinos a peça que haviam dançado na véspera. A coreografia estava, assim, em quase constante evolução, inspirada pela marca pessoal da coreógrafa alemã. Ela era a sua própria obra. "O que faço não é uma arte nem uma ciência, é a vida", costumava dizer. E a sua vida "era a dança", disse há um ano ao New York Times a directora executiva da companhia, Cornélia Albrecht.
 
A companhia decidiu, por isso, manter um espectáculo previsto na Polónia, um dia depois da morte de Pina Bausch. E até ao final do Verão de 2009 aceitou ainda apresentar-se em Moscovo, São Paulo, Paris, Cairo, e muitas outras cidades, regressando a Wuppertal em Setembro. Nos programas dessa temporada estava, ainda sem título quando Bausch morreu, a última obra que criara para o Festival de Santiago do Chile e que viria a chamar-se Como el musguito en la piedra, ay, si, si, si.
 
A companhia tinha, então, espectáculos agendados até 2012. E esses vão continuar. Mas confundindo-se ela com a sua própria obra, é inevitável perguntar: como fazer para que a companhia se mantenha viva na sua ausência? Sem que ela possa ajustar, na espuma dos dias, as suas próprias coreografias ou criar novas? Um ano depois da sua morte - Pina Bausch morreu a 30 de Junho e soubera apenas cinco dias antes que sofria de cancro - a companhia, que tem desde então como directores artísticos o bailarino Dominique Mercy e o ex-assistente de Pina, Robert Sturm, ainda não tem delineado um plano. Ou, pelo menos, não o revela. "Um ano é pouco tempo para falar de objectivos para o futuro", disse ao P2 Ursula Popp, do gabinete de imprensa da companhia, recusando responder a mais perguntas.
 
Herdeiro sem testamento
 
Pina Bausch não deixou escrito o que desejava para a companhia, como fez por exemplo Maurice Béjart, que legou o Béjart Ballet Lausanne ao seu companheiro, Gil Roman, director artístico desde 2007. Ou como José Límon, da Límon Dance Company, em Nova Iorque, que se mantém depois da morte do bailarino e coreógrafo (1908-1972) como companhia e como escola. O património coreográfico da criadora alemã ficou nas mãos do único herdeiro, o filho Salomon Bausch, que criou a Fundação Pina Bausch. Sem um testamento escrito, é ele que detém todos os direitos sobre obras maiores como Café Müller, Nelken, 1980, Viktor ou OLavador de Janelas.
 
A solução encontrada foi "positiva", considera o director da revista alemã especializada em dança Tanz, Arnd Wesemann. "A pessoa que detém os direitos juntou-se às pessoas [os directores artísticos] com o conhecimento", disse ao P2. E tanto o filho como a direcção artística da companhia parecem de acordo em criar um "arquivo vivo" e, mais tarde, talvez um museu com livros, fotografias e até filmes com Pina Bausch.
 
Mas isso nada diz sobre o futuro da companhia. Nos palcos, o Tanztheater Wuppertalmantém os espectáculos que estavam previstos até 2012. Para lá dessa data, vários são os caminhos que a companhia pode tomar, defende. "Pina Bausch entrou para a história. Mas as coisas estão por vezes condenadas a desaparecer ou, pelo menos, a transformar-se", diz por seu lado Jean-Marc Adolphe, director da prestigiada publicação francesa Mouvement. O jornalista é também um dos autores de uma longa entrevista, a última da coreógrafa, publicada no livro Pina Bausch (Actes Sud, 2007), que traça o seu percurso à frente da companhia através da objectiva do fotógrafo Guy Delahaye. Para Jean-Marc Adolphe, esses mais de 30 anos captados em imagens podem chegar ao fim, com a morte de Pina e o provável desaparecimento do Tanztheater Wuppertal.
 
E aqui é aquela imagem da coreógrafa sentada na sala a tomar notas todas as noites para no dia seguinte retrabalhar as obras que o especialista evoca para dizer que há um lado único, irrepetível, no trabalho e no génio de Pina. "Nas peças ela transmitia um estado de espírito, algo que emanava da sua personalidade", explica. "Criou um estilo que em muito influenciou os artistas de dança e teatro, de uma maneira que lhe pertencia." E isso será difícil de reproduzir. "Mesmo que o reportório continue a existir no imaginário das pessoas, a companhia, sem criações novas, dificilmente conseguirá manter os seus bailarinos."
 
Outros coreógrafos?
 
A solução seria outros coreógrafos prolongarem o reportório da companhia. Mas quem? Wesemann e Adolphe avançam dois nomes, ambos belgas, ambos muito influenciados pelo trabalho de Pina: Alain Platel e Jérôme Bel.Mas isso permanece como uma hipótese longínqua já que Platel tem a sua própria formação e qualquer decisão de convidar coreógrafos externos terá de passar pela companhia e pela fundação. "O trabalho de Pina Bausch era tão único que nenhum coreógrafo quererá fingir que fará algo como ela", acrescenta o jornalista alemão.
 
A cidade de Wuppertal atravessa graves problemas financeiros mas o governo regional da Renânia do Norte-Vestefália garante os fundos para a sobrevivência da companhia, diz Wesemann. O governo alemão já manifestou "vontade política de cuidar melhor do património da dança", mas também será necessário que o público se manifeste a favor.
 
Quando chegou, em 1973, Pina Bausch revolucionou a filosofia e o trabalho do teatro e substituiu artistas. Suscitou ódios na cidade. Recebeu ameaças por telefone e cartas com insultos. Pensou partir. Mas ficou. Tinha sido convidada, aos 33 anos, para dirigir um teatro oficial - o que demonstrava grande confiança e abertura de um município capaz de dar uma oportunidade de ouro à nova geração.
 
Quase sempre controversa, Pina passou a ser um importante pilar da cultura do seu país no mundo. E tornou-se, para muitos, uma artista eterna. Mas daqui a dez anos, acrescenta Jean-Marc Adolphe, e dez anos são um tempo-limite, "os bailarinos que participaram nas criações de Pina Bausch com Pina Bausch já não estarão lá" e "as suas coreografias dificilmente serão procuradas". Não só porque Pina Bausch era irrepetível, mas porque "a dança contemporânea está condenada a apagar-se".