António Garcia, o designer tranquilo

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António Garcia adora resolver problemas, lemos ou vivemos - tudo porque adora resolver problemas, lemos ou vivemos - tudo porque adora resolver problemas, lemos ou vivemos - tudo porque adora resolver problemas Enric Vives-Rubio

A tentação é grande. Queremos chamar-lhe português suave, dar-lhe o título quase nobiliárquico desse estilo arquitectónico, aplicar-lhe esse dichote que define quase tudo o que é calmo e lusitano. António Garcia é assim: caloroso, conversador, tranquilo. Mas também nos faz pensar em tabaco, em livros e num romance de Graham Greene em particular, "O Americano Tranquilo". António Garcia, está visto, não é fácil de engavetar.

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A tentação é grande. Queremos chamar-lhe português suave, dar-lhe o título quase nobiliárquico desse estilo arquitectónico, aplicar-lhe esse dichote que define quase tudo o que é calmo e lusitano. António Garcia é assim: caloroso, conversador, tranquilo. Mas também nos faz pensar em tabaco, em livros e num romance de Graham Greene em particular, "O Americano Tranquilo". António Garcia, está visto, não é fácil de engavetar.

Fez todo o tipo de design (gráfico, de interiores, de equipamento, de mobiliário) e ainda arquitectura. Capas de livros, embalagens de cigarros, stands açucarados, cadeiras para japonês ver, cartazes. Aquele maço de SG Filtro, Ventil ou Gigante? Foi ele. O branco do pacote do tabaco Ritz, imutável até hoje, salvo os retalhos que avisam que fumar não é simpático para os pulmões? Foi ele. As capas dos livros da colecção Autores Modernos, da Ulisseia, que se escondem nos alfarrabistas e nas prateleiras da casa de família? Também foi ele. Entre elas, a de "O Americano Tranquilo", sim. E também "O Adeus às Armas" (Ernest Hemingway), "Tempo de Matar" (Ennio Flaiano), "A Cidadela" (A. J. Cronin), "Os Nus e os Mortos" (Norman Mailer).

Nestas pequenas grandes coisas, António Garcia faz parte do quotidiano visual de todos os portugueses, da identidade gráfica de marcas e de objectos que integram a nossa paisagem mental involuntária. Reconhecemos o que ele fez. Agora. "A relação entre o que ele fez e o que nós conhecemos só neste momento está estabelecida, só agora relacionamos a obra com o autor", frisa Sofia da Costa Pessoa, autora de tese de mestrado sobre António Garcia e responsável pela compilação do seu espólio ("ZEITGEIST - o espírito do tempo, António Garcia, Depois da obra, o futuro, Design e Arquitectura, 1950-1970").

Mas António Garcia prefere o seu trabalho na arquitectura e no design de interiores. "Se toquei a vida das pessoas? Não sei. O que mais pode tocar as pessoas é a arquitectura. Se conseguimos estar de mãos dadas com quem a vai habitar... É o que me liga mais às pessoas - os projectos de interiores", diz-nos, ponderado, lembrando com igual carinho as agências bancárias, as casas, os escritórios do grupo CUF. "O trabalho liga as pessoas quando elas trabalham no mesmo comprimento de onda. O livro é uma coisa muito gira, mas é uma coisa mais anónima, não sabemos quem o lê...", continua.

Não vamos, afinal, chamar-lhe português suave. Foi o tipo de arquitectura de regime com que a sua fábrica para a Canada Dry (1956) quebrou. "Todos somos políticos, todos éramos contra Salazar, mas nunca fui um activista. Ia contra o chamado estilo português suave, mas não foi propositado". E a verdade é que essa não é uma das marcas de tabaco que desenhou.

Soldado desconhecido

Está (quase) tudo lá, ele incluído, no primeiro piso do Museu de Design e de Moda (Mude), em Lisboa, cenário da retrospectiva "António Garcia - designer - Zoom in/Zoom out". E é por lá que, de vez em quando, poderá ver António Garcia em passeio. Intrigado, como na conversa com o Ípsilon, com quem se debruça sobre as maquetes de um salão de exposição. Pesaroso por não falar bom inglês para interpelar quem com tanta atenção examina a sua cadeira Osaka'70, criada a correr para a Exposição Universal de Osaka (1970), um mês antes da abertura e com o drama de já não poder enviar o resultado por barco. Solução: bons materiais, e uma cadeira leve, desmontável e prática. Numa caixa cabiam 12 cadeiras, "12 Osaka Sophistyled Doityourchairs", e lá foram elas, de avião, ligeiras e compactas. "Dizem que é tipo Bauhaus, é muitíssimo confortável, e estava em minha casa até agora", aponta.

Também está mesmo quase, quase tudo no catálogo da exposição hoje lançado no Mude, que faz as vezes de monografia do seu trabalho, coligido ao longo de anos por Sofia da Costa Pessoa. Ela debateu-se com a dificuldade da perda de documentos ("é só papelada", sacode António Garcia) ao longo dos anos, mas teve um aliado: o próprio autor que, por sua iniciativa, refez muitos dos cartazes e das maquetes agora expostos. Era um trabalhador incansável, confidencia-nos Sofia da Costa Pessoa - e ainda o é, aos 85 anos. Foi há mais de 20 que o conheceu e à sua casa no Bairro Alto, cheia dos seus objectos - "era um mundo fascinante".

António Garcia é um dos soldados desconhecidos do design português e, segundo Sofia da Costa Pessoa, "um homem sem idade", "prático e muito intuitivo, que faz não porque viu ou leu mas porque tem de resolver um problema". Já se cantaram os elogios a Daciano Costa e Sena da Silva, seus contemporâneos e colegas regulares, que muito admirava pelo lado mais literato, teórico. Faltava António Garcia, Prémio Nacional de Design Carreira 2010 que doou o seu espólio ao Mude e agora é cumprimentado pelos vigilantes do museu enquanto mexerica na Osaka ou ajeita uma vitrina.

Dos livros da Ulisseia que desenhou para os escaparates só leu "O Adeus Às Armas" e "A Casa de Jalna" (Mazo de la Roche), frisa. Não havia tempo para ler tudo e, à velocidade a que a editora lançava livros, algumas capas eram desenhadas com menos de 15 dias de antecedência. Por isso, lia os resumos de uma ou duas páginas dactilografadas feitos pelo editor, para que dali saíssem ideias, "elementos que pudessem simbolizar os conteúdos". Raramente precisou disso, de grandes leituras. Estudou na António Arroio mas aos 17 anos já estava a trabalhar. Sempre teve "a necessidade de resolver coisas", conta. Das separatas de construções da revista "Mosquito" até aos modelos de coelheiras encomendados pelo Estado Novo durante a Segunda Guerra Mundial e publicados nos jornais para mostrar os cidadãos o que deviam ter nas varandas, do bar do Hotel Alvor Praia, que desenhou com Daciano Costa, aos aposentos de Américo Tomás no navio Príncipe Perfeito, António Garcia fez de tudo para solucionar problemas.

Finalmente em casa

O seu trabalho ligou-o, de facto, a quem estava no mesmo comprimento de onda. Ligou-o a um então desconhecido que conheceu numa festa no Rio de Janeiro, em 1965, e a quem ofereceu um maço de tabaco Sintra. Esse desconhecido far-lhe-ia um convite para uma noite de Bossa Nova em que conheceu Elis Regina e João do Vale, em que viu Claudia Cardinale, em que foi, uma vez mais, um português tranquilo. Ligou-o também a um mundo de gentes que com ele se cruzou na publicidade ou no atelier que ocupou por 40 anos na Avenida da Liberdade, e que era "quase uma república". Por ali passavam arquitectos, pintores e surrealistas como Fernando Lemos e Marcelino Vespeira.

Tem memória, mas sobretudo calos dos tempos em que tudo se desenhava à mão, sem Photoshops ou Illustrators. "O design é algo que tenho dificuldade em explicar. Sempre houve design, desde que o homem lascou a pedra para cortar carne. Hoje em dia é tudo design, há coisas a que se chama design e que são horrorosas", diz, pragmático. Os designers - e António Garcia é outras coisas para além disso - são treinados a pensar em termos de limitações e constrangimentos. Garcia não teve teoria, foi a prática que o fez assim. Agora, gosta de pensar que o seu trabalho encontrou uma casa.

"Foi um projecto que me ultrapassou, a mim e ao autor", comenta Sofia da Costa Pessoa, encantada com os círculos que se fecharam. "Desde os 20 anos que lhe digo que tínhamos que fazer uma exposição do seu trabalho". Aconteceu agora (20 anos, um mestrado e uma tese depois), num espaço tocado por ele - o auditório do Mude, ex-Banco Nacional Ultramarino, foi desenhado por António Garcia e era, há anos, a única sala intacta e por esventrar do edifício que hoje acolhe o museu; o Mude pretende agora reactivar e rentabilizar essa sala.

"O grande valor de António Garcia é a grande paixão pelo ofício e pela resolução de problemas a qualquer escala. É o grande sentido de construir, mas também da comunicação, da síntese, rápida. Gosta de resolver desafios", diz a comissária. Directamente da era sem computadores, de lápis e esquadro na mão, para aquela em que uma janelinha digital nos oferece a possibilidade de resolver problemas, António Garcia e o seu trabalho ainda estão por aí.