Tanto petróleo no mar da América

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O derrame tem afectado fortemente os animais da região Sean Gardner/Reuters

Dean Blanchard, proprietário da maior lota de camarão dos EUA, não está sozinho na sua revolta contra a British Petroleum (BP). A maré negra da Deepwater Horizon não arruinou apenas negócios. Perderam-se pelicanos e passeios na praia, churrascos com amigos e serões a olhar as estrelas. “A vida toda pensei que iam ser os russos ou os chineses que nos iam matar, afinal são os ingleses...”

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Dean Blanchard, proprietário da maior lota de camarão dos EUA, não está sozinho na sua revolta contra a British Petroleum (BP). A maré negra da Deepwater Horizon não arruinou apenas negócios. Perderam-se pelicanos e passeios na praia, churrascos com amigos e serões a olhar as estrelas. “A vida toda pensei que iam ser os russos ou os chineses que nos iam matar, afinal são os ingleses...”

No final de Outubro de 2005, dois meses depois de o furacão Katrina ter varrido a costa do Luisiana, Dean Blanchard já estava a descarregar camarão no seu entreposto da pequena comunidade de Grand Isle, onde o delta do rio Mississípi finalmente encontra as ondas do golfo do México.

“Isto ficou totalmente destruído. Nós trouxemos as roulottes, montámos os geradores e voltámos ao trabalho. A pesca nunca foi tão boa como depois da tempestade”, conta à Pública.

Agora, quase dois meses depois da explosão da plataforma petrolífera Deepwater Horizon, cerca de 50 quilómetros ao largo daquela localidade piscatória, não há movimento nas docas de Blanchard. A sua lota de camarão é a maior dos Estados Unidos, a terceira maior de todo o mundo. Mas, com a maré negra, o negócio parou. “A BP deu cabo de mim. Estou a pensar mudar para a Costa Rica. Não suporto a ideia de ficar aqui sentado, meses, anos, sem nada para fazer”, confessa.

Com mais de um terço das águas do golfo fechadas para a pesca, o negócio de Dean Blanchard está totalmente parado. Na verdade, o seu negócio nem sequer arrancou em 2010. Os meses de Janeiro, Fevereiro, Março e Abril são passados a preparar a temporada, que só começa em pleno em Maio. Em Junho, Blanchard já não pára — a primeira lua nova do mês é supostamente o melhor dia de pesca do ano.

“Se a vida corresse como é normal, nesta altura eu andava a dormir três ou cinco horas por semana. O movimento é insano, são mais de mil barcos por dia a descarregar. Mas quando estou a fazer dezenas de milhares de dólares por dia não preciso de dormir”, garante.

Julho não é muito diferente, mas, quanto mais o calendário entra pelo Verão, maiores se tornam os desafios, nomeadamente furacões. Blanchard reza todas as noites para que — como previu a National Oceanic and Atmospheric Administration, agência federal que supervisiona o estado dos oceanos e da atmosfera — não tarde muito em aparecer uma tempestade forte, para “remexer as águas, trazer o petróleo todo para a costa. É preferível ter de limpar a praia a ter este crude todo a poluir o mar”.

Ron Price também pensa que, mais cedo ou mais tarde, vai acabar por voltar a bater à porta da unidade petroquímica onde trabalhava na linha de produção de um herbicida, há 15 anos. “Pagava as contas, mas não me levantava para trabalhar com o mínimo entusiasmo. Não é como isto”, aponta, rodando o braço de um lado para o outro do corpo: da esquerda para a direita, rebentam das águas acastanhadas do delta tufos de canas marinhas e tapetes de ervas aquáticas, formando línguas de terra que se separam como os dedos a partir da palma da mão, ou pequenas ilhas, perfeitamente redondas, que criam a ilusão de que navegar pelo território pantanoso do delta do Mississípi é o mesmo que entrar num labirinto.

Price, de 40 anos, decidiu deixar o seu emprego na petroquímica para montar uma pequena empresa de serviços para pescadores desportivos: a sua frota de quatro lanchas fornece excursões aos ricos pesqueiros do pantanal do Mississípi e do golfo do México. Ele intitula-se um Fish Intimidator e garante que os seus clientes regressarão a terra com as arcas repletas de peixe. “Da baía de North Shore à baía de Redfish, esta zona é o filet mignon da pesca. Estas são as águas [salobras e pouco profundas] em que os cardumes se reproduzem, são milhões e milhões de peixes”, informa.

Vamos ter de fechar

Todos os dias o poço do Deepwater Horizon debita mais de 500 mil galões (1,8 milhões de litros) de crude para as águas do golfo. Mas essa é uma estimativa, e é optimista: o volume pode ser o dobro e chegar quase aos quatro milhões de litros por dia. Nunca, na história da América, houve tanto petróleo na água.

A última manobra de contenção da BP, que consistiu na instalação de uma cúpula de confinamento sobre o tubo do furo de petróleo, a 1500 metros de profundidade, alcançou um sucesso relativo. De acordo com a companhia, o dispositivo está já a recuperar cerca de 50 por cento do óleo que jorra ininterruptamente (e espera-se que venha a ser progressivamente mais eficiente).

Mas, segundo as previsões, a fuga só será definitivamente reparada com a escavação de dois poços secundários que permitam desviar o fluxo do petróleo. Esse é um processo em curso e que se prevê esteja concluído em meados de Agosto. Mesmo assim, ainda permanecerão milhões de litros de crude no oceano. “Esta é uma operação [de limpeza e mitigação de impactes] que vai demorar muitos meses. Seguramente ainda estaremos a trabalhar quando chegar o Outono”, antecipou o almirante Thad Allen, que dirige a resposta em nome do Governo norte-americano.

A frustração, para pescadores e cientistas, é a de não conseguir avaliar ou prever as consequências do derrame. “Simplesmente não sabemos o que vai acontecer. Até pode ser que a pesca saia revigorada [como aconteceu na reabertura da época do arenque no estreito Prince William, no Alasca, depois do derrame do cargueiro Exxon Valdez, em 1989. O volume total estabelecido por quota foi alcançado nos primeiros 20 minutos]. Ou pode ser que a vida marinha fique irremediavelmente destruída”, diz-nos Robert Thomas, director do Center for Environmental Communication da Universidade de Loyola, em Nova Orleães.

Na marina de Cypress Cove, em Venice, Ron Price e outros como ele reúnem-se todas as manhãs à espera das equipas de produção que chegam às catadupas para contratar os seus serviços — em vez dos aficionados da pesca, são agora os jornalistas e documentaristas que pagam para percorrer os canais do delta.

Ele conduz-nos pelos corredores de água até às primeiras ilhas pintadas de petróleo. A água é castanha, mas de nutrientes — a corrente do golfo levou a mancha de petróleo de volta para alto mar. Os pés das canas denunciam a presença do crude: há barreiras de lona à superfície da água, mas foram postas tarde de mais.

Só que viajar com os pescadores não é o mesmo que conseguir um lugar num dos muitos barcos que a BP e a Guarda Costeira todos os dias fazem chegar ao “ground zero”. A zona de intervenção foi delimitada e vedada a todas as embarcações, e há um número limitado de “oportunidades” para os media assistirem de perto às operações no mar — a colocação das barreiras, a queima de manchas de petróleo ou a construção dos poços de apoio.

Aqueles que trabalham na limpeza do derrame partem às sete horas da manhã e regressam às cinco da tarde. Uns trazem metros e metros de barreiras aquáticas ensopadas em crude, outros vêm com os bidões de dispersantes vazios. Os que estão encarregados de procurar animais afectados pela maré negra podem passar todo o dia em alto mar ou fazer várias viagens a terra, dependendo do estado em que estiverem os espécimes que encontrarem.

Em terra a dificuldade é a mesma. Há dezenas de milhares de pessoas a trabalhar nos quatro estados afectados pelo derrame: Luisiana, Mississípi, Alabama e Florida. Limpam a areia, constroem bermas e instalam barreiras de protecção. Têm instruções para não falar à imprensa e respeitam-nas — os homens que encontrámos a trabalhar desfizeram-se em desculpas, mas não prestaram declarações.

Da Campo’s Marina, estabelecida há mais de cem anos em Shell Beach, um dos muitos canais do delta, pouco mais de cem quilómetros a sul de Nova Orleães, ainda saem barcos para a pesca. “Para já estamos com sorte, o petróleo não chegou aqui”, repara Frank Campo Jr, que opera as docas que antes foram do seu pai e do seu avô. “Podemos sair daqui” — aponta no mapa o ponto marcado Campo’s Marina — “ou daqui” — o dedo vai até às Short Rocks. “Temos todo este território aqui, até à Gardner Island ou Deadman Island”, mostra, “ou para oeste o Mozambique ou o California Point”. “Mas é só uma questão de tempo. O petróleo acabará por chegar aqui e também nós vamos ter de fechar.”

E a sorte de que Frank fala não é igual para todos. “Os viveiros de ostras estão muito perto do derrame, a produção está toda perdida”, diz. O camarão e lagostim também — só as lanchas que vão atrás da truta pintada, do redfish e da corvina é que continuam a trabalhar. “Normalmente temos 30 barcos a sair todos os dias, hoje tivemos cinco que foram pescar e 15 que foram trabalhar para a BP.”

Os mestres dos barcos maiores, dos camarões e das ostras, inscreveram-se na operação de limpeza da BP, mas nem todos foram contratados. “Pegue no carro e dê uma volta pelo bayou. O canal está cheio de barcos. Há muita gente que não está a trabalhar. O máximo que eles podem esperar é conseguir alugar as casas às equipas da BP. Parece que eles estão a pagar à volta de 1500 dólares por mês”, adianta Frank.

Pelas estradas que descem de Nova Orleães até ao golfo sucedem-se manifestações de raiva e repúdio contra a petrolífera britânica. Penduradas em postes de electricidade ou coladas nas janelas dos restaurantes ou nas paredes das estações de serviço, há cartolinas pintadas à mão com apelos à intervenção do exército, à ajuda do Governo e invectivas contra a petrolífera britânica: “A BP mente e o nosso peixe morre”, BP=Bayou Polluters.

No entanto, em conversa, muitas das críticas são atenuadas. “Eu estou zangado com toda esta situação, mas não sei contra quem. Podemos achar que a culpa é da BP ou que é do Governo, mas sei que não fizeram de propósito, que nada disto foi intencional. Para já, acredito que eles estão a fazer todos os possíveis para resolver esta catástrofe. Até porque não nos resta mais do que pôr fé no que eles estão a dizer e a fazer”, resume Ron Price.

Vou atrás dele

Frank Campo não confia. “Não acredito numa única palavra da BP, eles só estão interessados no lucro deles”, confessa. “Mas temos de nos pôr nas mãos deles. Só eles têm a tecnologia para resolver a situação. E o Presidente tem de apertar com eles. Tem de os obrigar a tapar o buraco, a limpar a porcaria que fizeram e a pagar a toda a gente. Eu só ainda não pedi uma indemnização porque a minha marina por enquanto está a trabalhar.”

A indústria pesqueira do Luisiana movimenta 2,5 mil milhões de dólares por ano e responde por 40 por cento do marisco consumido nos Estados Unidos. A baía de Barataria é um santuário de aves [pelo caminho, vemos centenas e centenas de pelicanos, o animal que representa o estado do Luisiana] e, provavelmente, a zona mais fértil para a pesca do camarão em toda a América. “O famoso camarão castanho vem todo daqui. É uma especialidade, nenhum outro tem o mesmo sabor”, explica Dean Blanchard.

Num dia normal do início de Junho, a doca de Grand Isle teria um movimento de 1400 barcos. Uma média de 15 camiões frigoríficos partiriam com meio milhão de libras (mais de duas toneladas) de marisco, a maior parte dele fresco, algum congelado. Mas agora, para vir descarregar ao entreposto de Blanchard, um barco precisa de percorrer 14 horas — essa é a distância a que fica a zona de pesca mais próxima.

O empresário calcula que a crise da Deepwater Horizon lhe venha a custar qualquer coisa como 12 milhões de dólares de prejuízo. Essa foi a receita de 2009, e Blanchard esperava que esta temporada fosse bem mais rica: quando o Inverno é muito frio, o camarão castanho fica muito grande.

“Trabalho nisto há 28 anos. Não sou uma grande multinacional, não sou nenhuma BP, mas não sou irrelevante. Agora, o meu negócio nunca mais vai ser o mesmo. Nem sequer sei se vou ter um negócio no futuro: não tenho matéria-prima, não posso fornecer os meus clientes, não posso pagar aos meus funcionários [cerca de 80, no pico da temporada]”, lamenta.

“Nós nunca fizemos nada de errado, cumprimos todas as regras, até porque se não o fizermos temos as autoridades em cima de nós. E agora estamos arruinados só porque alguém não sabe gerir o negócio deles. Eu pergunto-me: se eu for a Inglaterra mijar na fonte da rainha, não vou logo para a cadeia? Então por que é que não acontece nada à BP, que veio cagar no nosso golfo?”, exalta-se Dean Blanchard.

O CEO da BP, Tony Hayward, é o alvo de toda a sua fúria: “Ele ainda teve o descaramento de dizer que queria a vida dele de volta... Então e nós? Se ele não nos compensar pelos nossos prejuízos, até ao último centavo, vou atrás dele. Vou dar cabo desse filho da puta. Não importa o tempo que demorar, não vou ter mais nada para fazer. Mas hei-de encontrá-lo e dar cabo dele. A vida toda pensei que iam ser os russos ou os chineses que nos iam matar, afinal são os ingleses... Estou tão enojado que deixei de comer english muffins ao pequeno-almoço.”

A BP pagou uma parcela inicial de 5000 dólares (cerca de 4200 euros) a título de indemnização a todos aqueles que deixaram de poder fazer o seu trabalho — e ninguém sabe quando poderão chegar novos pagamentos. Para Blanchard, o dinheiro não cobre sequer os custos de funcionamento da doca durante uma semana. Gerry O’Neill, um pescador de Venice, estava a fazer 3000 dólares por dia antes da proibição da pesca. “Do meu rendimento anual, 95 por cento é feito entre Maio e Setembro, se a BP vai calcular a minha indemnização com base no meu último salário, estou perdido”, especula. “Estou a contar com o Presidente [Barack Obama]. Ele agora está a falar grosso à BP. Gosto de tudo o que ele anda a dizer. Se o que ele prometeu acontecer, acho que vou ficar em bom estado.”

Economicamente, o impacto do derrame pode revelar-se fatal para as comunidades piscatórias que se estendem pela costa. São pequenas localidades, muitas vezes com menos de 500 habitantes, onde todos dependem das riquezas do delta e do golfo.

Ron Price tinha a agenda preenchida para todo o Verão e marcações até Dezembro. “Logo no segundo dia depois do acidente, as pessoas começaram a desmarcar. Os clientes não querem vir, ou porque não querem envolver-se na confusão, ou porque receiam os efeitos que o petróleo e os dispersantes possam ter nos peixes. Só na primeira semana, tive um prejuízo de 5000 dólares”, diz.

Se a pesca não regressar em breve, Ron não tem maneira de pagar a sua dívida de 300 mil dólares, herdada do Katrina (do total que precisou para reconstruir, só conseguiu um reembolso de 26 mil dólares da sua companhia de seguros). Mas o derrame, sublinha, “é 100 vezes pior do que o Katrina”.

“O furacão veio e foi-se embora. Demorou algum tempo a limpar a água e perdeu-se algum precioso terreno de pântano, mas, quando pudemos voltar a trabalhar, a pesca estava melhor do que nunca. O Katrina foi mau para os homens mas foi bom para os peixes. Agora este petróleo vem e dá cabo da cadeia alimentar, de alto a baixo.”

“Podem ser anos e anos de prejuízos. Odeio pensar que podem ser 20 anos sem vir para aqui trabalhar. Sou eu, a minha mulher e quatro filhos que dependemos disto, são muitas bocas para alimentar. Não vejo os meus filhos crescer, trabalho todos os dias, como um louco, para pagar o empréstimo do Katrina. Não sei o que vou fazer.”

Os prejuízos imediatos não se restringem aos trabalhadores do sector pesqueiro. Com o estabelecimento de uma moratória de seis meses na exploração petrolífera a grande profundidade (um conjunto de 33 plataformas entre as mais de 4000 que povoam o golfo do México, só duas das quais exploradas pela BP), dez mil postos de trabalho ficam imediatamente ameaçados.

“Todos nós temos pais, maridos, filhos, cunhados, amigos, vizinhos a trabalhar para a indústria petrolífera. Estamos perfeitamente conscientes da extraordinária importância que este sector tem para a economia do estado, para a nossa vida quotidiana”, refere Margaret Saizan, uma empresária e blogger, que no primeiro dia do Katrina começou a documentar exaustivamente a recuperação de Nova Orleães e da região do golfo.

“Ninguém quer morder a mão que lhe dá o pão. É isso que explica a ambivalência em relação às petroquímicas que sentimos aqui. Há muito que sabemos que todas estas plataformas e refinarias são uma ameaça ao nosso ambiente, mas aceitamos viver com essa realidade diária. Fechamos os olhos aos custos porque os benefícios são tremendos”, explica.

Onde está a liderança?

Ao estado do Luisiana, a moratória de seis meses pode custar entre 8 e 16 milhões de dólares por dia. Os legisladores e líderes políticos vieram a público criticar a decisão da Administração Obama e reclamar o levantamento da suspensão à actividade das plataformas de profundidade. Como assegurou o governador Bobby Jindal ao Presidente Barack Obama, aqui ninguém acredita que a resposta à crise passa pela interrupção da produção. O mantra Drill, baby, drill, imortalizado pela ex-governadora do Alasca e candidata à vice-presidência, Sarah Palin, ecoa por todo o Luisiana.

“Eu nem queria acreditar: esta tragédia não fez ninguém parar para pensar que não podemos continuar esta exploração selvagem dos nossos recursos?”, indigna-se Margaret Saizan. Como disse à Pública, ela esperava que confrontados com o desastre ambiental do golfo, os americanos percebessem que têm definitivamente — e urgentemente — que avançar para um novo modelo de produção e consumo de energia.

“As pessoas lamentam a maré negra mas continuam a comprar carros gigantes que engolem centenas de galões de gasolina”, nota. “Eu estava convencida de que depois disto nada poderia travar a aprovação da lei das alterações climáticas no Senado. Mas que ingenuidade a minha, a lei não vai ser aprovada...”, reconhece, com um olhar envergonhado.

Mas mesmo os apoiantes e defensores das petrolíferas certamente imaginaram que um dia podia haver um acidente? A resposta é quase sempre não. “Eu cá nunca imaginei que uma coisa destas fosse possível”, admite Ron Price. “Nunca pensei que eles pudessem fazer um furo que não soubessem tapar”, diz Gerry O’Neill. “Em retrospectiva, muitos dos avisos começam a fazer sentido. Havia gente que dizia que cada plataforma devia ter dois poços de apoio. Soava bem, mas os custos iam ser escandalosos...”, lembra Frank Campo.

“Onde está a liderança?”, quer saber Margaret Saizan. “Olho para estas pessoas que elegemos e vejo que não têm a mínima ideia do que fazer, é assustador”, declara. “Temos este exército que é supostamente o mais poderoso do mundo e dizem-nos que não podem fazer nada, que não nos podem proteger deste assalto? Como e que é possível? Como podemos viver com tanta incompetência e irresponsabilidade?”

Na sala repleta da Betsy Pancake House, onde a população do bairro de Treme vem comer o pequeno-almoço, Robert Thomas, que há décadas estuda a erosão do delta do Mississípi, explica como existe uma cultura — uma atitude ou uma mentalidade — que está habituada ao laxismo e à permissividade.

“É o que acontece aqui em Nova Orleães com os furacões. Se for perguntar a cada uma das pessoas desta sala o que devem fazer se houver um aviso de tempestade, garanto que não há uma única que não saiba exactamente o que é. Mas quantas delas levantaram um dedo para se preparar? Zero.”

As pessoas tornam-se complacentes, constata Thomas, é a natureza humana — que depois se traduz na cultura corporativa. “O último acidente no golfo foi há 30 anos. Foi gravíssimo, mas foi há 30 anos.”

O professor Thomas não estranha que a BP (e os seus subcontratados) tenham “facilitado”, “arrepiado caminho”, “poupado dinheiro” nos seus procedimentos de segurança. Não é só a BP que o faz, é prática comum da indústria, como se provou no inquérito ao Mineral Management Service do Departamento do Interior, responsável pelo licenciamento e supervisão das plataformas petrolíferas.

Mas Robert Thomas diz-se perplexo com a indiferença e até desprezo da companhia britânica pelas ofertas de ajuda provenientes do exterior. “Eles estão a lidar com a tragédia através dos tradicionais canais corporativos, recorrendo aos seus engenheiros e aos seus advogados. Eles deviam estar a aproveitar os empreendedores da indústria, que é das mais criativas: há pessoas que, da noite para o dia, descobrem uma solução, inovam, inventam novos métodos. Só que ninguém consegue chegar à BP.”

Para já, os danos ambientais deste acidente são impossíveis de compreender e quantificar. Nas primeiras seis semanas após o acidente, o centro internacional de salvamento de aves, em Fort Jackson, próximo de Venice, recebeu entre um e quatro pássaros por dia. Mas ao entrar na sétima semana, os números começaram a crescer: na quinta-feira, 2 de Junho, chegaram 53 aves cobertas de petróleo, e no dia seguinte mais 14 animais. As autoridades federais confirmaram (até 4 de Junho) a morte de 792 aves e de dezenas de tartarugas e golfinhos.

Os cientistas concedem que, dada a dimensão do desastre, esse é um número relativamente modesto, sobretudo se comparado com as dezenas de milhares de pássaros e lontras que morreram na sequência da maré negra do Exxon Valdez. A explicação, para já, é que a maior parte do petróleo ainda permanece em alto mar — no Alasca, a geografia confinou o derrame a uma linha de rochedos bastante próxima de terra.

E é precisamente no mar que reside a grande incógnita: quais os danos para a vida marinha, os microrganismos, o zooplâncton e os invertebrados que estão na base da cadeia alimentar e expostos a uma sopa tóxica de petróleo e dispersantes químicos?

Um inferno

Brittany Bernik e o namorado Antoine iludem a linha amarela da polícia que barra a praia de Grand Isle aos turistas e correm até ao mar, armados com recipientes de laboratório que tratam de encher de amostras de água e areia.

A jovem de 23 anos, aluna de doutoramento no Departamento de Biologia e Ecologia da Universidade de Tulane, em Nova Orleães, deu início a um estudo sobre as alterações na diversidade genética na areia da praia logo depois do início do derrame.

“A areia é um armazém de ADN, esta é uma forma de registarmos todas as modificações na genética deste ecossistema.”

Sem querer avançar qualquer opinião científica, Brittany diz sentir-se “muito triste” por todas as comunidades do golfo que correm o risco de perder o seu sustento. “Este é um acontecimento sem precedentes, ainda é muito cedo para saber o que vai acontecer. Mas é óbvio que toda a indústria de pesca está ameaçada, há uma probabilidade grande de que os pesqueiros sejam totalmente destruídos. Nesta região há milhares de espécies que estão neste momento a viver num sistema totalmente contaminado.”

“A minha primeira preocupação biológica é com o plâncton. As pescas de alto mar continuam boas”, complementa Robert Thomas. “Depois, obviamente, todos estamos preocupados com a saúde dos pântanos, que não só são a zona de reprodução e viveiro das pescas como também a primeira barreira e zona de amortecimento de tempestades. Estou muito nervoso.”

Muito mais difícil de quantificar do que os impactos ambientais e económicos são as consequências para a cultura das populações do golfo. “O país tem de se aperceber que os dois últimos grandes desastres da história dos Estados Unidos aconteceram aqui connosco. Ainda estamos a reconstruir e recuperar do Katrina e agora levamos com isto.”

Nos últimos cinco anos, as histórias do blogue de Margaret não mudaram muito. “Infelizmente, parece que estou sempre a escrever a mesma coisa. É sempre o mesmo enredo, que tem a ver com o desaparecimento da nossa linha de costa e com o desaparecimento de uma cultura e uma tradição.”

“Este é o nosso modo de vida, isto é o que nós somos”, declara Daryl Hoornann, um pescador de Yscloskey, a povoação antes de Shell Beach. “Aqui os negócios passam de pais para filhos por gerações. Eu faço o que fazia o meu pai, o que fazia o meu avô, o que fazia o meu bisavô... Mas será que é isto que vai fazer o meu filho?”

“Nós estamos habituados a resistir e reconstruir. Sempre que passa um furacão, lá vai tudo. Já sabemos que é assim, no dia seguinte voltamos e começamos tudo outra vez. Tudo isto à sua volta é tudo novo, foi tudo feito depois do Katrina. Pensávamos que íamos ter dois metros de água e acabamos por ter mais de seis, não sobrou nada de pé.”

No relvado fronteiro ao camp da família Schouest [camp é o nome que dão às palafitas que povoam todo o delta, uma sucessão de cabanas construídas em cima de estacas altas, com quatro ou cinco metros], foram enterradas 101 cruzes brancas numa homenagem a tudo aquilo que a maré negra do Deepwater Horizon ameaça fazer perder para sempre: além das ostras, caranguejos, atuns, pelicanos, também os passeios na praia, os castelos de areia, os churrascos com os amigos, os serões passados a olhar as estrelas...

Reclinados à sombra, nas suas espreguiçadeiras, Sue e Don gozam da companhia do neto Reva, que, tal como os avós, está mais do que “desconsolado” por não poder aproveitar a praia, do outro lado do passeio.

A Grand Isle é assim: há uma estrada comprida, em linha recta, que acompanha a língua de terra paralela à costa; de tantos em tantos metros é cortada por ruas perpendiculares, todas elas com um sinal de trânsito a indicar que não há saída, só água, de um lado e doutro.

Quem aqui vive, ou quem aqui passa férias, fá-lo por uma única razão — a pesca. Este pedaço de costa é considerado o sétimo melhor do mundo para a pesca desportiva. O seu Tarpon Rodeo, o torneio de pesca mais antigo dos Estados Unidos, atrai milhares de pessoas. Com as águas vedadas, a edição de 2010 acaba de ser cancelada.

Os Schouest montaram o seu camp em 1996; desde então, vieram quase todos os fins-de-semana desde Metairie, um dos subúrbios de Nova Orleães, e por temporadas maiores desde que Don se reformou. “Não há nada melhor do que isto”, garante, a pele curtida do sol, a música do sotaque a denunciar as suas origens Cajun. “Ele é bem daqui do delta, quando foi para Nova Orleães, ainda rapazinho, só sabia falar francês”, informa a mulher.

Nas traseiras do camp, encostadas a um comprido balcão de madeira onde os Schouest arranjam o peixe e marisco resultante das suas pescarias, estão uma dúzia de “gaiolas” para apanhar caranguejos. “Este ano não vamos ter hipóteses de as usar. No ano que vem, quem sabe?”

Os dois repetem que “é comum” apanharem 300 caranguejos por dia — um sucesso que garante que as suas festas estão sempre apinhadas. O casal já está preparado para um Verão triste e solitário, sem amigos a chegar para pescarias e churrascos. “Agora vamos comer o quê, frango frito?”, adivinha Sue.

Nos menus dos restaurantes do Luisiana não há apenas pratos de salmão e atum — como no resto dos Estados Unidos. Aqui come-se ostras e camarão, lagostim, caranguejo, truta de pinta, redfish e solha.

“Eu cá não sou de comer muita carne”, diz Frank Campo. Nos seus 68 anos de vida, só viajou para o Texas, a oeste, para Florida, a leste, e para o Tennessee, no norte do Luisiana. “E isso já foi há muitos anos. Eu gosto daqui. Nasci aqui e vivi aqui a minha vida toda, não saio daqui nem por um furacão. Aguentei o Betsy, o Camille; passei o Katrina dentro do meu barco, o Brandon Michelle, e foi o melhor que eu fiz, senão tinha ficado sem ele”, conta.

“Este é um lugar único, que não tem igual no mundo. O nosso marisco, o nosso peixe têm um sabor único. A nossa gente não se compara com nenhuma: somos honestos, destemidos e trabalhadores. Estamos habituados a tempestades, mas isto da maré negra é novo para nós”, observa. E acrescenta: “Já tivemos derrames, mas foram sempre incidentes contidos, nunca uma coisa como esta, um inferno. Pensamos que podemos resistir a tudo, mas este acidente pode acabar connosco.”